O silêncio era esmagador.
Eu estava ali, parado, sem saber como ou por quê. O ambiente ao meu redor era um vazio nebuloso, onde a luz parecia não existir, mas, ao mesmo tempo, tudo era visível. O chão, se é que havia um, parecia instável, como se a qualquer momento eu pudesse afundar na escuridão.
E então, diante de mim, ela apareceu.
Flutuando no ar, uma katana magnífica estava suspensa no nada, irradiando uma presença quase divina. Seu cabo era de uma tonalidade peculiar, como leite misturado com café, uma coloração quente e serena que contrastava com o vazio ao redor. Pequenos adornos de bronze decoravam sua empunhadura, brilhando com uma luz discreta, mas imponente. A lâmina era reluzente, refletindo uma claridade que não existia no ambiente, como se carregasse dentro de si um fragmento do próprio céu.
Ela me chamava.
Eu não sabia como, mas sentia isso. Algo dentro de mim gritava para que eu a pegasse. Dei um passo à frente, minha respiração estava pesada, minha mente dizia para ter cautela, mas meu corpo já se movia por conta própria.
Estendi a mão.
No instante em que meus dedos se aproximaram da empunhadura, um impacto brutal me atingiu. Uma força invisível me lançou para trás, como se o próprio espaço tivesse se revoltado contra mim. Meu corpo foi empurrado com violência, e, por um breve momento, vi tudo girar.
E então, uma voz sussurrou.
Me virei, instintivamente buscando a origem daquele som, e foi quando a vi.
Uma silhueta feminina, envolta em uma luz intensa e sobrenatural, estava parada não muito longe de mim. Sua presença era esmagadora, quase irreal. A luminosidade que emanava de seu corpo era quente, mas ao mesmo tempo fria, e ao seu redor, várias mãos surgiam do nada – algumas estavam abertas, como se quisessem tocar algo, outras se contorciam em espasmos inquietantes.
Ela murmurou algo.
Palavras em um idioma desconhecido ecoaram pela névoa, ressoando em minha mente como se fossem gravadas diretamente na minha alma. Eu tentei falar, tentei perguntar quem ela era, o que significava tudo aquilo, mas minha voz não saía.
E então, o alarme soou.
O barulho estridente me arrancou daquele lugar, e quando meus olhos se abriram, eu estava deitado na minha cama, suando frio.
Por um momento, permaneci imóvel, encarando o teto. Meu coração ainda estava acelerado, minha respiração irregular. Aquilo parecia tão real...
Suspirei, passando a mão pelo rosto.
— Mais um dia...
Olhei para o relógio. Droga. Já estava quase atrasado.
Levantei-me de um pulo, indo direto para a janela. O céu estava nublado, e o barulho do trânsito já começava a encher as ruas. O mundo seguia seu curso, indiferente ao que quer que tivesse acontecido comigo naquela noite.
Meu quarto estava uma bagunça. Roupas espalhadas pelo chão, embalagens de comida jogadas no canto, móveis desalinhados. Eu não era o melhor em manter a organização, mas também não podia sair de casa deixando tudo naquele estado. Joguei algumas roupas no cesto, empilhei algumas coisas, fiz a cama do jeito mais preguiçoso possível e fui direto para o banheiro.
Escovei os dentes rapidamente, entrei no chuveiro e deixei a água fria me despertar de vez. O choque térmico me fez arrepiar dos pés à cabeça, mas pelo menos agora eu estava completamente desperto.
Troquei de roupa e fui para a cozinha. Coloquei ração para o cachorro, tomei um café às pressas e joguei a mochila no ombro. Não tinha tempo para enrolar.
O trânsito, como sempre, estava um inferno.
Entrei no ônibus lotado e me espremi entre os passageiros, tentando achar um espaço para respirar. Coloquei os fones de ouvido e deixei a música me isolar do resto do mundo. Enquanto olhava pela janela, minha mente voltou para o sonho.
Aquela espada... Aquela mulher...
O que diabos significava tudo aquilo?
Não era a primeira vez que tinha pesadelos estranhos, mas aquele foi diferente. Parecia mais... vívido.
Mas não tive tempo para pensar muito sobre isso.
Ao chegar ao trabalho, percebi que já estava atrasado. Seis minutos. Maldito ônibus.
— Kendrick! — A voz do Sr. Marcos soou no instante em que pisei no restaurante.
Fechei os olhos por um segundo, respirando fundo antes de me virar para encará-lo. Ele estava com os braços cruzados, me olhando com aquela expressão de exasperação misturada com preocupação.
O Sr. Marcos era o dono do restaurante, um homem de idade avançada, mas com uma presença forte. Ele tinha sido amigo da minha mãe antes do acidente... e depois que ela morreu, foi ele quem me ajudou a não afundar de vez.
— Eu sei, eu sei. Trânsito, imprevistos, desculpas esfarrapadas... — tentei argumentar.
Antes que ele dissesse algo, uma voz surgiu ao lado dele.
— Dá um desconto pra ele, pai. O cara já sofre pegando aquele busão lotado todo dia.
Mateus, filho do Sr. Marcos, apareceu com um sorriso no rosto. Ele sempre tinha esse jeito descontraído, sempre tentando aliviar as tensões.
O Sr. Marcos suspirou.
— Só não deixa isso virar rotina, Kendrick.
Assenti, sem muita vontade de prolongar a conversa.
O trabalho como garçom era o mesmo de sempre. Anotar pedidos, levar pratos, limpar mesas, lidar com clientes exigentes. Meu corpo estava ali, mas minha mente vagava.
Eu não conseguia parar de pensar em tudo o que aconteceu.
Minha mãe morta em um acidente de avião.
Stella, minha ex-namorada, me traindo com um traficante.
O buraco em que me afundei depois disso.
A depressão tomou conta de mim. Eu me isolei de tudo e de todos, e por muito tempo, achei que nunca sairia disso.
Tentei me matar. Várias vezes.
Mas nunca tive coragem suficiente para terminar o que comecei.
Se não fosse pelo Sr. Marcos e pelo Mateus, eu provavelmente nem estaria mais aqui. Foram eles que me convenceram a procurar ajuda, a ver uma psicóloga, a tentar seguir em frente.
Mas no fundo... Eu ainda não tinha desistido completamente.
Meus pensamentos foram interrompidos quando tropecei.
Antes que pudesse reagir, perdi o equilíbrio e fui direto para o chão, derrubando uma bandeja cheia de bebidas em cima de algumas clientes.
— Merda!
Elas gritaram, e eu senti o impacto das garrafas batendo no chão ao meu redor. O restaurante inteiro se virou para olhar.
O Sr. Marcos apareceu imediatamente.
— Kendrick, você está bem?
Assenti rapidamente, me levantando enquanto limpava a bagunça.
— Só distraído...
— Você precisa pegar leve.
Ele resolveu a situação com as clientes, e eu passei os minutos seguintes limpando tudo.
O dia passou, e quando o expediente terminou, me despedi de todos e já ia saindo quando o Sr. Marcos e Mateus me chamaram.
No centro do restaurante, havia um pequeno bolo com algumas velas.
— Feliz aniversário, Kendrick.
Por um momento, fiquei sem palavras.
Eles lembraram.
O Sr. Marcos me entregou uma sacola com pães.
— Leva isso pra casa. Você precisa comer direito.
Agradeci, me sentindo um pouco melhor do que antes.
Mas a sensação não durou muito.
No caminho para casa, a chuva começou. Eu já estava encharcado quando avistei um posto de gasolina com uma loja de conveniência e fui me abrigar lá.
Foi então que percebi.
A loja estava sendo assaltada.
E um dos ladrões... Era ele.
O homem que destruiu minha vida.
O tempo pareceu parar.
Eu congelei na entrada da loja de conveniência, a chuva ainda escorrendo pelo meu rosto. O chão estava molhado sob meus pés, mas o frio que percorreu minha espinha não tinha nada a ver com a água.
A cena diante de mim era surreal.
O assaltante segurava uma arma apontada para o caixa, onde o atendente tremia visivelmente. Dois outros clientes estavam no chão, mãos na cabeça, sem ousar se mover. O cheiro de suor e tensão impregnava o ar.
Mas eu só conseguia olhar para ele.
O homem segurando a arma… O homem que arruinou minha vida…
Victor.
O desgraçado que destruiu tudo que eu tinha.
Minha visão ficou turva por um instante, a raiva queimando meu peito como brasas vivas. Flashbacks começaram a explodir na minha mente. Stella, minha ex, rindo ao lado dele. As mensagens que descobri no celular dela. O dia em que fui espancado por capangas dele, humilhado, jogado como lixo em um beco qualquer.
A noite em que tentei me matar.
E agora ele estava ali, agindo como se nada disso tivesse acontecido, apontando uma arma para um atendente inocente, pronto para acabar com mais uma vida.
Eu podia ter dado meia-volta. Podia ter fingido que não vi nada.
Mas algo dentro de mim gritou.
Minha mão se fechou em um punho.
Victor ainda não tinha me visto. Ele estava concentrado demais em intimidar o caixa. Isso me deu tempo para pensar.
Eu poderia atacá-lo.
Eu poderia acabar com ele.
Minha respiração ficou pesada.
Minha mente gritava que eu não era um herói, que eu não tinha nada a ver com aquilo. Mas meu coração dizia outra coisa.
E então…
Ele me viu.
Seus olhos se arregalaram por um instante. Depois, um sorriso debochado se formou em seu rosto.
— Kendrick…? — Ele riu, balançando a cabeça. — Mas que coincidência.
Minha mandíbula se contraiu.
— O que foi? Ainda tá vivo? — Ele zombou. — Pensei que já tivesse se jogado de uma ponte.
O atendente olhou para mim, desesperado, como se eu pudesse fazer algo.
— Você não mudou nada… — murmurei, a raiva crescendo dentro de mim.
— E você continua um lixo — Victor riu. — Sabe, até que foi divertido ver você se arrastando, implorando pra Stella ficar com você. Uma pena que ela preferiu um homem de verdade.
Meu sangue ferveu.
— Vai se foder…
— Ah? — Ele arqueou a sobrancelha, girando a arma no dedo. — E o que você vai fazer, hein? Me encarar até eu morrer de tédio?
Eu sabia que não podia agir por impulso. Ele tinha uma arma. Mas ao mesmo tempo… eu não conseguia pensar racionalmente.
O atendente aproveitou a distração e se moveu. Victor percebeu na mesma hora.
BANG!
O tiro ecoou pelo ambiente.
Por um instante, tudo ficou em câmera lenta. O atendente caiu no chão, gritando enquanto segurava o ombro ensanguentado.
Victor bufou, apontando a arma para ele de novo.
— Devia ter ficado quieto, otário.
Eu me movi sem pensar.
Antes que Victor pudesse atirar novamente, me lancei sobre ele.
Minha mão agarrou a arma, empurrando seu braço para o lado. O segundo tiro saiu errado, acertando uma prateleira.
Ele tentou me empurrar, mas eu já estava tomado pelo ódio. Acertei um soco no seu rosto, fazendo-o cambalear.
A arma caiu no chão.
Victor xingou, tentando reagir, mas eu usei um pouco da capoeira que havia aprendido há muito tempo e com uma meia lua de compasso acertei o queixo dele o derrubado quando me dei conta já estava sobre ele.
Outro soco.
E outro.
E outro.
Meus punhos se chocavam contra seu rosto repetidamente. Tudo que eu sentia era a raiva acumulada de anos sendo liberada de uma vez.
Victor tentou se defender, mas não adiantava. Ele já não estava no controle. Eu estava.
— SEU DESGRAÇADO! — Gritei, acertando outro golpe.
O sangue escorria do nariz dele.
Ele riu.
— Isso… Isso é tudo que você tem…?
A raiva se transformou em puro ódio.
Meus dedos agarraram seu pescoço.
Eu podia matá-lo ali mesmo.
Podia acabar com ele de uma vez.
Mas antes que eu pudesse fazer qualquer coisa…
BANG!
A dor veio como um choque elétrico.
Minha visão escureceu por um segundo.
Olhei para baixo.
Uma poça de sangue se formava no chão.
Uma mulher estava na porta da loja, segurando uma pistola.
Ela me olhava com um olhar frio, indiferente.
E então…
A escuridão me engoliu.
O som da chuva se misturava aos ecos dos tiros, que ainda reverberavam na minha mente. Minha consciência flutuava entre a realidade e um abismo escuro, sem forma. Meu corpo estava pesado, como se fosse feito de chumbo, e a dor pulsava em cada fibra do meu ser.
O gosto metálico do sangue tomava minha boca, enquanto o cheiro de pólvora e álcool derramado dominava o ambiente.
Eu tentei me mover.
Nada.
A dor no meu peito era insuportável, o ferimento quente e pulsante, me lembrando de que eu ainda estava vivo. Mas por quanto tempo? Eu não sabia.
Esforcei-me para abrir os olhos, forçando minha visão a se ajustar.
A primeira coisa que vi foi ela.
Stella ainda segurava a arma, com os dedos trêmulos no gatilho. Mas seu olhar... seu olhar era gelado. Distante. Indiferente.
Ela não hesitou.
Não teve remorso.
Atirou em mim como se eu fosse apenas um obstáculo.
Victor, por outro lado, gemia de dor no chão. Seu rosto estava ensanguentado, o nariz quebrado, os lábios partidos, mas ainda estava vivo.
E ainda ria.
— V-você é patético… Kendrick… — ele cuspiu sangue no chão. — Sempre foi… sempre será…
Minha visão ficou turva por um momento. Meu corpo gritava para desistir.
Mas algo dentro de mim se recusava a morrer ali.
A loja estava um caos. O atendente ainda estava caído, segurando o ombro ferido. Os outros clientes continuavam no chão, aterrorizados, sem se mover.
E então, ouvi os passos.
Passos rápidos.
Victor estava se levantando. Stella ainda o cobria, com a arma apontada para mim. Eles estavam indo embora.
Meu coração disparava.
Eu sabia que, se os deixasse escapar, nunca teria outra chance.
Minha mão deslizou pelo chão, os olhos turvos procurando qualquer coisa.
Foi então que senti.
Vidro.
Os cacos das garrafas quebradas estavam ao meu alcance. Meus dedos se fecharam em torno de um pedaço afiado, ignorando o corte que abriu na minha pele.
Eu não podia deixar que isso acabasse assim.
Com um movimento brusco, atirei o pedaço de vidro em direção a Stella.
Ela se moveu instintivamente, desviando-se. E, por um segundo... apenas um segundo, sua mira vacilou.
Foi tudo que precisei.
Ignorando a dor, me impulsionei para frente.
Minhas mãos se fecharam ao redor da arma dela, mas antes que eu pudesse tomá-la, Victor apareceu, interferindo com mais tiros, atingindo-me novamente. O impacto me derrubou, mas a raiva me manteve consciente.
Em meio à confusão, o atendente, aproveitando a distração, conseguiu escapar da vista de Stella.
Stella, vendo a fuga, chamou Victor e, sem hesitar, os dois correram até a moto estacionada do lado de fora, a qual estava aguardando para a fuga. Eles partiram rapidamente, deixando-me ali, ferido e furioso.
Minha visão estava turva, o sangue misturando-se à água da chuva que caía ao meu redor. Mas não podia deixar aquilo acabar assim.
Ainda com a dor pulsando no peito, mal eu sabia o que estava por vir.