Gotas de chuva descem do céu artificial, pesadas e lentas, como se o próprio ar as carregasse de desespero. A chuva é tóxica, tingida de cinza pela fumaça que nunca cessa de subir das fábricas e dos incineradores dos Arredores. As pessoas dizem: "Estamos protegidos dos Condenados!" ou "Os demônios não nos alcançarão aqui!". Mas ninguém fala da proteção que falta: a proteção de nós mesmos.
Olho para uma poça d'água no chão, e nela vejo meu rosto refletido. Meus olhos castanhos são tão escuros que quase parecem pretos, como se a melanina tivesse fugido do meu semblante. Uso um gorro preto, desfiado e sujo, que encontrei no lixo há anos. Minha pele branca está manchada de poeira e das gotas de chuva que escorrem por ela. A máscara de ar que cobrem meu nariz e boca é transparente, frágil, como tudo aqui nos Arredores. Enquanto isso, a elite usa máscaras de alta tecnologia, tão avançadas que parecem saídas de outro mundo. A pobreza está em mim dos pés à cabeça: uma regata rasgada, uma bermuda desbotada e os pés descalços. Pra quem ainda não percebeu, eu sou Danme, Danme Arkanji. E essa é a minha vida.
Meus cabelos negros batem na testa, agitados pelo vento forte que faz os fios dançarem. Lembro-me de como Mercil, meu irmão, corta meu cabelo com uma tesoura enferrujada que encontrou no lixo. Mesmo assim, meu cabelo está bagunçado, com quase cinco dedos de comprimento. Mas, para quem vive na miséria, o que importa a aparência? Tenho uma mecha branca na franja, que nunca cortei. É como uma falha, uma desconexão. Assim como ela, eu também não me encaixo neste mundo.
— Bora logo, Danme. Você tá olhando pra essa poça d'água já faz quinze segundos — Mercil me puxa de volta à realidade.
Ele é meu irmão gêmeo, meu único sangue. A única diferença entre nós é que todos os pelos do seu corpo são brancos, dos pés à cabeça. Ele veste roupas velhas, uma camisa de mangas compridas com as pontas queimadas, uma bermuda empoeirada e os pés sujos, como os meus. Assim como todos aqui, ele usa a máscara de ar. Um dia, ele me explicou que a máscara é essencial para filtrar o ar tóxico da chuva. Sem ela, nossos pulmões entrariam em colapso, e a morte seria certa. Nem sempre foi assim. Há quatro anos, a poluição começou a se intensificar, trazida pela elite. Uma onda de doenças respiratórias varreu os Arredores, matando centenas. Vi pessoas morrendo na minha frente, sufocando, desesperadas. Agora, até a elite sofre com a toxicidade. Seria isso uma vingança dos que partiram?
— Pode ir na frente, eu te acompanho — digo a Mercil, ajustando minha máscara.
Afinal, onde eu moro? No Estrela, um domo espacial que orbita a Terra, vendido como a última esperança da humanidade. Um lugar longe dos Condenados que caem dos céus. Mas, como sempre, nem todos puderam pagar por essa promessa. Dos 300 mil habitantes do Estrela, 20% são a elite. Os outros 80%? Somos nós, os pobres, os ilegais, os esquecidos. O governo nos jogou nos Arredores, onde sobrevivemos como podemos. A Terra lá embaixo é hostil, inabitável. Aqui, pelo menos, respiramos. Mas será que isso é vida?
— Me acompanha mais rápido, então — Mercil começa a andar. — Você sabe que, se a gente chegar atrasado, perde o quarto.
— É... Eu sei — respondo, entendendo sua ansiedade. Ele não quer dormir no chão com as baratas de novo.
— Psiu! — Alguém nos chama de um beco escuro. — Ei, garotos, querem comprar Névoa? — O homem abre o casaco, revelando pós negros com reflexos roxos, seringas com líquidos azulados e um cartucho de inalação metálico, raro nos Arredores. Dizem que a Névoa é uma droga sintetizada de fungos geneticamente modificados, tão potente que pode destruir um pulmão em segundos.
— Hoje não — Mercil responde, dando um aceno de recusa e me puxando para continuarmos. — Acho que despistamos ele. Ele ia ficar enchendo a gente até nós comprarmos.
— Será que a Névoa é legal? Como deve ser o efeito de usar algo assim? — pergunto, curioso.
— A menos que você queira ficar com sequelas no cérebro, não queira descobrir — ele responde, sério. Mercil sempre sabe mais do que eu. Ele lê muito, sempre com a cabeça enfiada em livros velhos.
— Tem razão. Ouvi dizer que dá uma bad trip terrível — comento, enquanto observo a miséria ao nosso redor.
Pessoas andam de um lado para o outro, vestindo trapos e panos velhos, alguns com acessórios improvisados de metal. O estilo aqui é o que os livros chamam de "punk", um movimento de contracultura da Antiga Terra. Mas aqui, não é estilo. É sobrevivência. As casas são amontoados de metal e concreto, empilhadas umas sobre as outras, formando labirintos escuros e perigosos. Canos e fios desencapados serpenteiam pelas paredes e pelo chão, já tendo matado crianças desavisadas. O céu está sempre nublado, e o cheiro de mofo e morte impregna o ar. Este é o lugar que a elite nos deu para viver.
A luz do sol raramente chega aqui. Quando chega, é tão intensa que os raios violetas podem causar câncer de pele em segundos. Muitos morreram antes de descobrir isso. Agora, evitamos sair nos dias de sol. Cadáveres são comuns nas ruas, e o cheiro de decomposição se mistura com a chuva tóxica, criando um ciclo interminável de doenças. Será que a Terra é pior que isso? Talvez. Mas aqui, vivemos no inferno.
— Danme, tá vendo o que eu vejo? — Mercil me cutuca, chamando minha atenção.
— O quê? — pergunto, distraído.
— Olha aquele cara ali na frente — ele acena com a cabeça em direção a um homem que se destaca na multidão.
Ele é enorme, com quase dois metros de altura, um gigante de músculos e metal. Seus braços são cibernéticos, reluzindo sob a luz fraca. Na cabeça calva, uma tatuagem de uma meia-lua coberta por um eclipse. Ele emana uma aura de perigo, como se carregasse a morte nos ombros.
— Aquele cara é da Blood Moon — sussurra Mercil. — Uma facção criminosa. Pessoas como ele têm vantagens sobre gente como a gente.
— Aonde você quer chegar com isso? — pergunto, intrigado.
— Só pensando, Danme. Imagina o dinheiro que ele deve ganhar... — Mercil observa o homem com um olhar calculista, como se estivesse planejando algo.
Isso foi quando eu tinha 14 anos. E foi assim que minha vida começou a mudar. Foi assim que me tornei um criminoso.