"Não se sinta mal por quem faz o mal, Danme. Um dia isso vai te matar."
"BANG!!!"
O tiro ecoou como um trovão no silêncio. Sangue escorreu pelo chão rachado, formando um riacho escarlate que se perdia nas sombras. *Quando foi que tudo começou?* A pergunta martelava em meu crânio enquanto encarava o corpo sem vida. *Devo voltar... refazer meus passos.*
"Procure pelos Sepultadores, irmão... Eu acredito em você..."
A voz familiar ainda ecoou na minha cabeça, e logo acordei desse pesadelo terrível. Eu não entendi nada do que seria isso no meu sonho.
5 de julho de 2079. Meu aniversário de 16 anos.
Faltava um dia para a graduação na Blood Moon. Não era o futuro que eu queria, mas agora estava preso nele, como um rato em uma roda girando para o abismo.
— Fwu... — Soltei o ar pelos dentes cerrados. O colchão no chão rangiu quando me virei de lado. Mercil jurara que a Blood Moon nos daria uma vida digna, mas dois anos depois, meu "quarto" ainda era um cubículo de mármore sujo, sem janelas, onde baratas faziam sombra nas paredes. A única decoração era o espelho rachado acima da pina, onde me forcei a encarar o rosto que mudara tanto: mandíbula angular, rosto mais maduro, e as olheiras um pouco mais fortes. Mas o olhar mórbido permanece, isso é o que impressiona.
O bilhete de Mercil estava colado no espelho, escrito com a letra dele, apressada e desleixada:
"Danme, dormiu até tarde de novo. Missão às 14h. O Alvo preparou algo — última chance como Amador. Não atrase. Mercil."
Amassei o papel com força. Graduação. A palavra queimava como veneno. Por dois anos, evitara matar, limitando-me a espionagem e roubos. Mas todos sabiam o que a Blood Moon exigia de seus graduados: sangue como prova de lealdade.
O corredor do dormitório era um pesadelo de concreto. Luzes vermelhas tremeluziam sobre rachaduras que se alongavam como artérias expostas. O ar era denso, úmido, com um cheiro azedo de mofo e cloro — a ventilação era tão precária que alguns recrutas morreram no ano passado, sufocados por infecções que se espalharam como praga. Dois garotos do primeiro andar, lembrei. Tossiram sangue por uma semana até apodrecerem por dentro.
No segundo andar, uma mancha escura no chão marcava onde um recruta saltara para a morte. "Tenho que sair...", murmurei, evitando o vão aberto. Cada passo ecoava como um gemido.
O Porto era meu refúgio. Um bar de madeira envelhecida, com mesas lascadas e uma jukebox enferrujada tocando jazz melancólico. Não entrava muitas pessoas no período do dia, normalmente eu costumava vir a noite pra observar cada pessoa sair e entrar. Sr. Hwill, o bartender, limpava copos inexistentemente sujos, enquanto um bêbado choramingava sobre um divórcio. Escolhi o canto mais escuro, onde podia observar sem ser visto.
— Ei, esquisitão! — Niik entrou como um furacão, seu casaco de couro rangendo com cada movimento, e o cheiro de tabaco barato e gasolina grudando no ar ao seu redor. — Sabia que te encontraria aqui. Você é previsível feito relógio quebrado.
— Previsível é você com esse casaco de wannabe motoqueiro — retruquei, sentindo o aperto de mão áspero dele quando me cumprimentou, as palmas marcadas por calos de anos segurando armas. — Parece que roubou de um tiozão em crise de meia-idade.
Niik olhou para o próprio casaco, fingindo indignação. Seus dedos passaram pelo couro gasto, revelando manchas de óleo nas pontas das unhas. — Tiozão? Isso aqui é clássico! Já você... — apontou para meu casaco preto desbotado. — Parece um corvo em luto eterno.
— Pelo menos não pareço um *poser* de filme de ação ruim.
Ele riu, puxando uma cadeira. Seus cabelos loiros, curtos e eriçados como escova, refletiam a luz fraca do bar, e a barba por fazer arranhava a palma da mão quando ele coçou o queixo. — Tudo bem, tudo bem. Pelo menos meu estilo não atrai moscas.
— Atrai é pena. — revirei os olhos, mas ele cutucou meu gorro desfiado.
— Sério, Danme. Isso aqui parece ninho de rato. Te dou um novo de presente.
— Nem pensar — ajustei-o, defensivo. Aquele gorro preto era a única coisa que lembrava de quem eu era antes de tudo isso.
Niik suspirou, brincando com um colar de prata que tirou do bolso. A cruz no pingente era afiada, quase ameaçadora. — Olha, hoje é seu aniversário, então vou ser clichê. — Estendeu o objeto. — É de uma religião antiga.
— Uma "restrição"? — perguntei, não tinha entendido direito, na verdade, não fazia ideia o que aquela palavra significava.
— "Religião", Danme. — ele sorriu, e inclinou-se para frente, deixando o cheiro de mentol barato do seu enxaguante bucal invadir meu espaço. — Na Antiga Terra, as pessoas acreditavam em algo maior... Algo que dava sentido à merda toda. — O dedo dele traçou a cruz, a pele áspera do indicador arranhando levemente o metal. — Dizem que isso aqui guia os perdidos.
— Guia como? — perguntei, hesitante.
— Não faço ideia — ele riu, o som rouco ecoando como o ronco de um motor velho. — Só sei que, amanhã, quando você se graduar... — a voz fraquejou. — Bem, talvez precise de algo pra lembrar que ainda tem alma.
O colar era frio, mas algo nele pulsava, como um coração minúsculo. — Por que tá fazendo isso, Niik?
Ele se levantou rápido demais, o casaco de couro estalando como um chicote, e virou o rosto. — Porque você é o único aqui que ainda não virou monstro.
Antes que eu respondesse, ele desapareceu na névoa do lado de fora.
O colar pendurado no pescoço parecia pesar toneladas. Missão às 14h. Graduação amanhã. Os pensamentos giravam em minha cabeça, sincronizados com o piano da jukebox. No escuro, fechei os olhos e toquei a cruz.
Guia-me, pensei, sem saber ao certo de como fazer isso.
Algumas horas depois, estaria diante do Alvo. E no dia seguinte... talvez não restasse nada do Danme que observava estranhos para esquecer seu próprio reflexo.