Tá chovendo lá fora, como, quase todos os dias? Tenho estado muito pensativo... Sobretudo, a chuva parece acompanhar meu ritmo. Ontem eu e Mercil comemoramos nosso aniversário, fazendo uma última entrega de drogas, mas isso não é nem de longe nosso ato final. A tempestade lá fora pinga sem parar, gotas caindo fortemente no chão, se espalhando em gotículas que molham todo o lugar. A graduação se aproxima como um açoite, para me punir pelos meus pecados. Me graduar, me tornará algo diferente? Eu sou uma linha tênue como uma lâmina que brilha sob a luz, mas que pode ter seu brilho manchado por sangue a qualquer momento. Até onde eu sou eu?
Uma dúvida que outrora eu tento evitar, mas ela sempre consegue me esbarrar. Porém, não é hora de ponderar, é a hora em que eu vou avançar para a próxima etapa da Blood Moon.
— Danme! Você tá aí.
Smatcill, aquele que chamou atenção de Mercil anos atrás, aquele que nós fisgou para essa facção. Atroz, seria essa sua definição por seus crimes hediondos? — Tá pronto pra sua graduação?
— Claro que eu tô, né...
Me perguntava se eu conseguia disfarçar bem. Talvez algum gesto cedia minha máscara, essa que, uso desde que cheguei a esse lugar. Não só para embustear aqueles ao meu redor, como para eu não cair, e me afundar nessa chuva.
— Ótimo, pode ir se adiantando. O Mercil já tá lá na sala do chefe. — ele deu passos a frente, se distanciando, desaparecendo nas sombras do corredor. — Antes de eu ir Danme, vai usar essa touca desfiada com o chefe na sua frente?
— Tem razão. — removi a touca da minha cabeça, e coloquei na bolsa do meu casaco. — Alvo é um cara perfeccionista, não é?
— Ainda bem que você sabe. — ele desapareceu por completo, virando seu rosto e indo em direção ao seu ato de ocisão.
A tormenta lá fora cessou. Olho por uma última vez pela janela atrás de mim, e vejo as ruas encharcadas, será que eu serei manchado, como essas ruas? Então eu soltei um suspiro, tentando tirar o peso da culpa da minha garganta. Mal conseguia respirar, meu corpo suando frio, temendo a desventura que virá. "Já não é hora de pensar, Danme, você precisa continuar", palavras que reverberam em minha mente. "Você precisa ser homem, você precisa ser forte."
Ouvi um barulho agudo e aflitivo, era como se o universo me avisasse que não tenho saída. Era a porta da sala de Alvo se abrindo, Mercil me aguardava na porta.
— Sua vez, Danme. — cruzou seu braços e esperou minha ação. Mercil conseguia ser tão frio, tão distante, queria ser como ele. Até a roupa que ele vestia era mórbida, um traje de compressão completamente negro.
— Beleza... — coloquei minha mão no colar que Niik me deu, o metal gélido da cruz me reconfortava, me sentia protegido por uma esperança que parecia vir de outro mundo. Então levantei a cabeça, e... — Tô pronto.
Assim que entrei naquela sala, senti uma sensação esmagadora, a presença da malevolência dominava a gravidade daquele ambiente. Pra piorar, a sala ainda era pequena, o que aumentava a aura angustiante dele: Alvo. Sentado no sofá de couro com um crânio conpurscado por sangue em sua mão, ele me deu uma leve olhada, analisando-me de cima a baixo.
— Você deve ser o Danme. — por que eu sentia sua voz entrar nos meus ouvidos, e escorregar na minha espinha como uma lâmina de gelo? — Mercil, por favor, feche a porta. — uma voz tão calma, mas tão afiada, sentia como se ele rasgasse meu crânio ao meio só de falar.
Eu tentei ajeitar minha postura, apesar de que o chão parecia me puxar pra baixo, a iluminação sangrenta da sala piorava tudo.
— Está nervoso, Danme? — Alvo desfez o coque em seu cabelo, deixando seus fios negros soltos como a escuridão de sua alma.
— Não! Imagina... Éeee... Só tô um pouco com f-fome. — PORRA! Postura, Danme! Com essa voz trêmula de gatinho assustado você não passa credibilidade nenhuma!
Alvo colocou a caveira humana no braço do sofá, e se levantou lentamente. Ele exibia seu físico definido marcado por cicatrizes de batalha, cortes brutais em todo seu corpo, exceto a cabeça. Mas o que mais chamava atenção era a tatuagem da Blood Moon em seu peito, ele está marcado com a facção até no seu coração. Ele ajustou o cinto da sua calça jeans rasgada, nem parecia ser feito pra proporção do corpo dele.
— Me diga, Danme. — ele se aproximou de mim, me encarando de frente, com seus olhos escuros. — Até onde você é?
Eu quebrei. "Até onde eu sou?", o que isso significa? — Como assim?
Ele foi até o sofá de couro, pegou o crânio, e estendeu na minha direção. — A natureza é algo intrigante, não é mesmo, Danme? O homem saiu da natureza mas a natureza não sai do homem. — ele se senta. — Desde eras, o homem luta pelas suas próprias convicções e objetivos. Diante ao caos, a humanidade se mantêm da mesma forma. — ele pôs a cabeça sem pele ao chão. — Me diga algo que não mudou desde que o homem saiu da natureza, Danme.
Eu ponderei minhas palavras, algo que não mudou? Talvez... — Sociedade?
— Resposta errada. — ele levantou o crânio a frente do seu rosto, parecendo a representação da própria morte. — Sobrevivência.
Por que ele tá falando disso? Eu não entendo, o que esse cara quer afinal?
— A lei principal da natureza. Sobreviver. O que você faz pela sobrevivência? Você trabalha? Conquista? Domina? Mata?
De forma repentina, ele simplesmente bateu a testa violentamente contra o crânio, partindo-o ao meio. O sangue quente começou a escorrer pela sua testa, ele parecia nem se afetar por isso.
— A humanidade nunca deixou isso de lado, Danme. Isso está inserido no nosso DNA, é inevitável você lutar pela sua sobrevivência. Como um traidor de merda na nossa facção. — Alvo puxou um cigarro e isqueiro de seu bolso, tragando lentamente. — Por acaso você conhece... Niik Bowskovi?
O Niik?... — Eu... Eu conheço sim... Por quê?
Alvo fumava seu cigarro lentamente, assoprando a fumaça pro ar. — Sobrevivência, Danme. Cada pessoa luta pela sua. E nós também lutamos pela nossa. Vou resumir pra você.
Alvo estalou os dedos, dando ordem ao meu irmão, que logo me entregou uma pistola. Minha mão tremia, meu peito esvaziou com um desconforto agonizante.
— Vamos derrubar o sistema, e eu tenho um plano pra isso. Porém, Niik é um filho da puta que trabalha com os agentes da D.G, um verdadeiro inseto traíra, atrapalhando meu plano, entretanto... — ele relaxou sua postura no sofá. — Vocês estão encarregados de cuidar disso. Não permitem que ele impeça os meus objetivos. Vejo vocês no inferno.
Matar... O Niik? Meu amigo... Eu... Eu não posso matá-lo.
— Quando você matá-lo, Danme, você responde minha pergunta. — Alvo me pressionou, e em seguida, amassou o cigarro no corte em sua testa.
— Que... Que pergunta?
— Até onde você é? — me respondeu.
Mercil me puxou pelo ombro — Bora. A essas horas, ele já deve ter chegado lá.
Meus olhos estavam travados. Várias cenas vinham a minha cabeça. A primeira pessoa que vou ter que matar é meu melhor amigo? Até onde eu sou eu?