Atravessar o espelho foi como ser engolido por um abismo sem fim, uma queda sem fundo, onde o tempo não se fazia mais sentido e a realidade parecia se despedaçar em mil pedaços.
Era como se o universo inteiro estivesse desmoronando sobre mim. Um instante antes, meus pés tocavam o chão firme. No seguinte, fui arrancado da minha própria existência, como se minha alma tivesse sido dilacerada e lançada ao vazio do tempo.
Eu não estava caindo. Eu estava sendo puxado. Para onde, eu não sabia.
Forças invisíveis torciam minha consciência, desmembrando o tecido do espaço e do tempo, criando imagens que minha mente não podia compreender. Cores começaram a se misturar em espirais caóticas, se dobrando em formas impossíveis. Era como se tudo o que eu já soube sobre o mundo estivesse sendo desfeito diante dos meus olhos.
Num piscar de olhos, fui levado a uma floresta vibrante, onde as árvores estavam cobertas por folhas verdes tão intensas que pareciam pulsar com vida. Eu podia quase ouvir o som delas se movendo, respirando com o ritmo da natureza. Mas, antes que pudesse compreender o que estava acontecendo, tudo mudou. As folhas secaram instantaneamente, se desfazendo como cinzas. Os troncos se tornaram esqueléticos, as cores se esvaindo para dar lugar a um vazio cinza e morto. O som da vida se transformou em um silêncio gelado e absoluto.
E então... eu vi o que não queria ver.
Guerra. Conflitos. Sangue.
Espadas cortando carne. Gritos cortando o ar. Soldados caindo, dilacerados, seus olhos congelados em terror absoluto. O chão, ensanguentado, coberto de corpos empilhados. O cheiro de morte no ar. Eu queria desviar o olhar, fugir daquilo, mas algo me prendia. Eu não podia me mover. A dor daquelas cenas queimava minha mente. Algo estava me segurando, me forçando a testemunhar aquele inferno sem fim.
E então, sem aviso, um impacto me arremessou contra o chão com uma violência que me arrancou um grito. A dor me invadiu como uma lâmina fria. Minhas pernas estavam quebradas, meus ossos se estilhaçando. Por um momento, tudo ficou escuro, e o gosto metálico do sangue tomou minha boca. Eu senti o sangue escorrendo, mas não consegui reagir. Só consegui respirar, ofegante, e tentar me recompor.
Quando minha visão clareou, vi a floresta... mas não era a mesma floresta.
Ela estava morta. O ar estava carregado de uma energia podre, sufocante. As árvores não eram árvores normais. Seus troncos retorcidos pareciam corpos pendurados, suas raízes esqueléticas e galhos secos como dedos de ossos, prontos para me agarrar. A névoa vermelha rastejava pelo chão, deslizava como serpentes, se contorcendo em movimentos orgânicos, como se tivesse vida própria. O ar estava pesado, saturado com um cheiro nauseante de carne apodrecida e madeira queimada.
E então, a sensação de que não estava sozinho tomou conta de mim. Um frio cortante subiu pela minha espinha. Meu corpo se travou. Algo estava me observando, de longe. Era uma presença invisível, mas palpável, como se a própria floresta fosse uma armadilha, uma criatura que me caçava, esperando o momento certo para me devorar.
Com um esforço quase insuportável, abri o Olho Negro. O mundo ao meu redor distorceu imediatamente. A névoa vermelha se retorceu, formando sombras de contornos indefinidos que se moviam sem seguir a lógica do espaço. O ar parecia pulsar, vibrar, como se fosse feito de algo que não pertencia à realidade.
E então, no fundo da floresta, as sombras tomaram forma.
Olhos escarlates.
Não um par ou dois, mas dezenas... centenas... brilhando na escuridão, pulsando, observando-me. Cada um deles refletia uma intensidade impossível de se descrever, como se eu fosse o único ser vivo em um mundo de pesadelo. Eles me encaravam fixamente, penetrando minha alma.
O ar tornou-se espesso, quase insuportável. Meu peito parecia prestes a explodir, os pulmões incapazes de respirar. O espaço ao meu redor se aquecia, como se o próprio ar estivesse em chamas. A pressão que me esmagava era tão intensa que meu corpo parecia se retorcer, como se estivesse sendo esmagado por uma força invisível.
A Morte me encarava com seus olhos ardentes.
Eu fechei o Olho Negro com um movimento brusco.
Tudo sumiu. A floresta. Os olhos. A dor. O medo. Tudo desapareceu em um instante.
Mas eu sabia a verdade. Aquilo ainda estava lá, esperando, observando à distância. Uma sombra eterna, uma ameaça que jamais deixaria de me perseguir.
Eu nunca deveria ter atravessado esse espelho.
Mas não havia mais volta. O espelho estava completamente quebrado, e os cacos de vidro se espalhavam pelo chão, como fragmentos de uma realidade que já não existia. A única opção era seguir em frente.
E então, sem hesitar, dei o primeiro passo.
Foi um erro. E eu logo saberia disso.
A floresta, que antes parecia um cenário de morte, agora parecia devorar minha mente, arrastando-me para um pesadelo interminável. Cada passo era um mergulho mais fundo na escuridão. O silêncio era absoluto, mas havia algo de estranho nesse silêncio, algo dissonante. Não havia som. Não havia vento. Nenhum som de folhas se movendo. Nada.
Mas... algo estava errado. Muito errado.
As árvores começaram a se mover. Não pelo vento, porque não havia vento. Mas cada vez que eu piscava, elas mudavam de posição. Como se tivessem vida própria, como se caminhassem. Seus galhos se esticavam, os troncos retorciam, se contorcendo em ângulos impossíveis.
O silêncio foi quebrado por um som rastejante, como o farfalhar de folhas secas. Mas logo, sussurros começaram a ecoar em minha mente.
"Você não deveria estar aqui."
Minha garganta secou. Meu corpo se recusava a se mover.
E então, ouvi minha própria voz.
"Fuja." "Agora."
O medo tomou conta de mim, paralisando cada músculo. Ativei o Olho Negro novamente, esperando que isso me desse alguma resposta, alguma saída. Mas foi um erro ainda maior.
O mundo se despedaçou diante de mim.
O deserto negro tomou lugar da floresta. O céu, um vermelho sinistro e vibrante, parecia pulsar como um coração macabro. O cheiro de carne queimada e sangue seco invadiu meus sentidos, causando náuseas.
Eu vi.
Montanhas de corpos carbonizados, empilhados como oferendas esquecidas. Ossos enegrecidos brilhavam sob o céu sangrento.
E entre aqueles corpos...
Melissa.
Seu rosto estava intacto, mas seus olhos... vazios. Como se sua alma tivesse sido arrancada à força. Sua pele queimava, marcada por cortes e cicatrizes. Uma marca vermelha, como um cordão de ferro, apertava seu pescoço.
Eu corri até ela, minha mente turvada, o pânico tomando conta de mim. Eu a segurei em meus braços, tentando encontrar qualquer sinal de vida, qualquer vestígio do ser que eu amava.
"Melissa..."
Seu corpo estava frio.
Mas então, ela me olhou.
E sorriu.
Não era um sorriso de alegria. Não era um sorriso de tristeza. Era um sorriso... de decepção.
"Você me abandonou, Zarte."
Minha respiração falhou. Eu queria explicar. Queria gritar que não era real, que ela não estava morta. Queria gritar que eu nunca a deixaria.
Mas então...
Ela fechou os olhos.
O sorriso se desfez.
E eu percebi a verdade, brutal e imutável.
Eu estava pedindo desculpas para um cadáver.
A visão explodiu em um clarão de sangue. A dor me consumiu. Meu corpo foi engolido por uma agonia indescritível.
Eu voltei à floresta, caído de joelhos. O ar me faltava, meus ossos se partiam. E então, as lágrimas vieram.
Eu não conseguia parar. Aquela imagem, o sorriso, estava cravada em meu coração como uma lâmina enferrujada.
Ela estava morta? Aquilo era real? Ou apenas mais uma ilusão de um mundo que não fazia mais sentido?
Eu não sabia se aquilo era real, ou se minha mente estava me jogando para um abismo de loucura. Mas, no fundo, eu sabia: a verdade estava ali, me encarando com olhos vazios. Eu nunca deveria ter atravessado o espelho. Eu nunca deveria ter...
Mas eu fiz uma promessa. Por ela, eu seguiria em frente.
Mas o destino é cruel.
E naquele dia, ao cruzar a fronteira da floresta amaldiçoada, eu selaria meu próprio destino.
A verdade, como um veneno, começou a se espalhar dentro de mim.
E no fim...
Ela me levou à morte.