Nythera primeiro Z.1455 ano da serpente
O inverno começava espalhando-se como um véu gelado sobre vilarejos solitários, cidades e capitais. Camponeses, resignados, enfrentavam a estação com descontentamento, enquanto outros olhavam para a neve caindo no solo humilde de suas terras como se fosse a primeira vez.
Longe da capital, em tempos difíceis, cada decisão de uma família era ponderada com cautela. Guerras, saques e assassinos rondavam incessantemente, alimentados por orgulho, ambição ou um falso senso de reconhecimento — nada que realmente preenchesse os vazios da perdição que carregavam.
No vilarejo pacato e oculto de Vibando, ao sul de Theron, vivia a família Kurozuki. Liderada pelo patriarca Rennosuke e pela matriarca Mizuki, a família incluía seus dois filhos: Ichiro, o primogênito, nascido no ano da Serpente, em janeiro de 1443, carregava a presença de quem já conhecia o peso das responsabilidades. Sua estatura mediana não chamava atenção à primeira vista, mas seus cabelos negros caíam de forma rebelde, e o brilho intenso de seu peculiar olho laranja parecia conter segredos que ele próprio ainda não compreendia.
Eiko, por outro lado, nascida no ano do Dragão, em 1446, era uma visão que contrastava com o irmão. Seus cabelos azul-escuro tinham o tom das profundezas noturnas, como se absorvessem a luz ao redor, enquanto sua pele era tão branca quanto a neve recém-caída. O olho azul dela, frio e sereno, parecia enxergar mais do que simples formas e cores — uma janela para algo além do que este mundo podia oferecer. Em Vibando, os Kurozuki viviam da terra, dedicando-se ao desenvolvimento de seu
Apesar dos conflitos que assolavam o mundo, a economia local ainda resistia. Ichiro e Eiko, alheios à decadência ao seu redor, viviam suas infâncias sem imaginar o papel que o destino cruel lhes reservava.
Em 1455, Rennosuke viu seu negócio florescer. Mesmo assim, a família permaneceu no vilarejo, valorizando sua conexão com a terra. Ichiro, com doze anos, e Eiko, com nove, passavam seus dias ao lado de Sora, um garoto peculiar e vizinho que, com dez anos, adorava contar histórias de suas aventuras atrás de lebres. Os três dividiam uma amizade inabalável, alimentada por brincadeiras e explorações pelos arredores de Vibando.
Uma manhã pacata, cinzenta e lenta, como um corvo arrastando asas sobre o vale. Rennosuke preparava-se para o trabalho, amarrando o casaco ao corpo com mãos endurecidas pelo frio, o rosto tão gasto quanto o couro de suas botas. Ichiro o seguia em silêncio, o menino já sabia o peso de um dia de labuta, mesmo com seus poucos anos. O serviço não ficava longe, um campo de cultivo modesto junto ao casebre, onde Rennosuke plantava o bastante para passar os invernos.
Quando chegaram, viram os estragos. A terra, antes selada com pequenos talismãs para afastar o gelo, agora estava pisoteada, um lamaçal sujo e despido de cuidado. Rennosuke parou e observou em silêncio. Mais adiante, três homens se escoravam uns nos outros como cães bêbados, os rostos inchados pelo álcool e pelo riso. Um deles apontou para Rennosuke, a boca escancarada em zombaria, revelando dentes amarelos e apodrecidos.
Ichiro olhou para o pai, os olhos do garoto carregados de uma preocupação que não combinava com a juventude. — Não vale a pena — disse Rennosuke, a voz firme, mas baixa, como se temesse que o vento carregasse suas palavras para ouvidos errados. Ichiro assentiu e se dirigiu ao campo, começando a preparar a terra novamente. O pai permaneceu ali por um momento, os olhos presos nos homens. Mas logo abaixou a cabeça e o seguiu.
O trabalho avançava lentamente, as mãos de Rennosuke afundando na terra fria, quando um dos homens começou a cambalear na direção deles. Seu andar era irregular, os pés tropeçando nas próprias sombras, mas havia algo na sua postura, nos ombros erguidos e no peito inflado, que mostrava a confiança cega dos embriagados ou dos insanos. A cada passo, ele se aproximava, o sorriso torto colado no rosto como uma cicatriz.
Rennosuke ergueu o olhar, e por um momento, o mundo pareceu se contrair no espaço entre eles, como o fio de uma lâmina prestes a cortar.
— Rennosuke, ouvi dizer que suas colheitas estão ainda melhores este ano. — A voz de Haruto chegou primeiro, rouca e arrastada, como madeira seca rachando ao fogo. Ele se aproximava com o equilíbrio precário de um barco no meio de uma tormenta, mas seus olhos, pequenos e vidrados, eram como lâminas estreitas, cortando na direção de Rennosuke.
Rennosuke levantou-se devagar, limpando as mãos na calça suja de terra. — Trabalhamos duro, só isso. — A voz era baixa, medida, como quem fala ao vento e não a um homem.
Haruto parou, os pés plantados na lama, inclinando-se para frente como uma fera farejando fraqueza. — Ou será que é sua magia que faz o trabalho por você? — disse ele, as palavras escorrendo da boca num sorriso que parecia mais uma ameaça do que um gesto de humor. — Alguns de nós não têm essa sorte, sabe?
Rennosuke não respondeu de imediato. Sentiu Ichiro parando o trabalho atrás de si, a tensão no silêncio do garoto como um fio puxado até o limite. Os olhos de Haruto, inchados pelo álcool e pelo rancor, não piscavam. Eles esperavam uma reação, um erro, algo que justificasse o que quer que já estivesse fervendo dentro dele.
— Sorte não planta sementes, Haruto. — As palavras saíram de Rennosuke como pedras, sem calor, sem pressa. Ele voltou ao trabalho, abaixando-se sobre a terra como se Haruto fosse apenas mais um vento gelado que passava. Mas ele sentiu a presença do homem, pesada, pairando como uma sombra que se recusa a partir.
Haruto permaneceu parado, os pés afundados na lama, como se esperasse que suas palavras ainda pudessem perfurar Rennosuke. Mas não havia mais resposta. Apenas o som do vento varrendo o campo e o leve raspado das mãos de Rennosuke trabalhando na terra. Por fim, Haruto cuspiu no chão, murmurou algo inaudível, e cambaleou de volta aos outros dois homens, que o receberam com risadas e tapas nas costas.
Rennosuke não ergueu os olhos, mas sabia que Ichiro estava olhando, a mandíbula tensa como a corda de um arco. — Continue, Ichiro. — A voz era firme, mas o menino demorou um instante para obedecer, hesitando, antes de voltar ao trabalho.
O resto do dia se arrastou em silêncio, o frio corroendo o tempo, até que a luz do sol começou a desaparecer por trás das montanhas. Rennosuke e Ichiro carregaram as últimas ferramentas de volta para o casebre, os pés pesados pela lama e pelo cansaço. Haruto e os outros haviam ido embora horas antes, levando consigo suas risadas ásperas e a ameaça pairando no ar como uma tempestade que nunca chega. Rennosuke parecia alheio, mas Ichiro sentia o peso daquele silêncio.
— Está tudo bem, pai? — perguntou o garoto, finalmente quebrando o silêncio. Rennosuke parou na soleira do casebre, olhou para o céu que já escurecia, e assentiu.
— Amanhã será outro dia — disse Rennosuke, a voz calma como água que escorre por entre pedras. — Não carregue no peito as palavras de um bêbado. Homens como Haruto nascem assim, Ichiro, e não há culpa que pese sobre nós por isso.
Enquanto jantavam em silêncio, Ichiro não conseguiu evitar que os pensamentos se desviassem. A imagem de Haruto e de suas palavras ficava presa em sua mente como um espinho. Ichiro observava Rennosuke, que parecia perdido em lembranças antigas, fixando o olhar no fogo que queimava fraco. Havia algo naquilo, uma sombra no rosto do pai, que o fez pensar em dias mais simples.
Escapadas para a floresta. Riu sozinho, pensando em como ele, Sora e Eiko eram livres. Embora os pais desaprovassem suas aventuras, a curiosidade infantil sempre vencia. Assim era com Ichiro, e assim havia sido com os outros dois antes que o peso das responsabilidades os puxasse de volta à terra. Havia algo nos limites da floresta, na promessa de coisas escondidas entre as árvores, que chamava as crianças com uma força irresistível, como se o vento ali cantasse apenas para elas.
Foi em um dia particularmente frio, quando o sol parecia ter abandonado o céu, que a tragédia os encontrou. O gelo sobre o rio Turan, ao noroeste do vilarejo, refletia a melancolia do céu cinzento. Os três perseguiam um louva-a-deus, e Sora, como sempre, foi o primeiro a correr.
— Eu vou pegá-lo dessa vez! — exclamou ele, equilibrando-se no gelo frágil.
— Cuidado, Sora! — advertiu Ichiro, pressentindo o perigo.
Mas Sora não ouviu. O som de estalos cortou o ar gélido quando o gelo sob seus pés cedeu. Em um instante, ele desapareceu na água gelada. Todos no vilarejo sabiam que os rios, nessa época, eram extremamente perigosos.
— SORA! — gritaram Ichiro e Eiko.
Ichiro correu até o local, deitando-se no gelo para tentar alcançar o amigo com as mãos trêmulas.
— Segure-se! Estou aqui! — gritou Ichiro, desesperado.
Com esforço, conseguiu puxar Sora para fora da água. Mas o garoto estava imóvel, seus lábios pálidos e olhos semicerrados.
— Ele não está respirando! — Eiko exclamou, a voz embargada pelo desespero.
Ichiro tentou reanimá-lo, lágrimas caindo de seus olhos enquanto pressionava o peito de Sora. — Por favor, acorde!
Eiko colocou as mãos nos ombros do irmão para acalmá-lo, mas no instante em que tocou Ichiro e o corpo frio de Sora, uma energia estranha percorreu seu corpo. Seus olhos perderam o foco, mergulhando em um transe involuntário.
Ela viu Sora correndo e sorrindo, seguido por sussurros desconexos que pareciam vir de seus pais. Então, a visão se dissipou, e ela voltou à realidade.
Sora arfou, respirando fundo por um momento, antes de sua cabeça tombar para o lado. A vida o abandonou tão rapidamente quanto retornara.
O silêncio tomou conta. Ichiro segurava o amigo nos braços, incapaz de aceitar a realidade.
— Não pode acabar assim... — murmurou ele, a voz tremenda.
Eiko, confusa e assustada, chorava em silêncio. O vento frio parecia ignorar sua dor, enquanto flocos de neve começavam a cobrir o corpo inerte de Sora.
— Precisamos voltar já vai anoitecer... — sussurrou Eiko, hesitante.
Ichiro, relutante, finalmente cedeu. Eles carregaram o amigo de volta ao vilarejo, o caminho coberto de neve tornando cada passo mais doloroso.
Ao chegarem em casa, o impacto da tragédia os atingiu como uma onda. Rennosuke, sempre firme, levou as mãos à cabeça, incapaz de falar ao ver o corpo de Sora. Mizuki correu para os filhos, agarrando-os em um abraço que tremia de desespero.
— O que aconteceu? — perguntou Rennosuke, a voz carregada de preocupação.
Enquanto Ichiro tentava explicar entre soluços, Mizuki notou o olhar perdido de Eiko, que parecia mergulhada em pensamentos. Rennosuke, com os olhos marejados, pegou o corpo de Sora nos braços e o levou para dentro, a dor visível em cada movimento.
Naquela noite, a família Kurozuki lidava com o luto ao redor da lareira. Sozinha em seu quarto, Eiko olhava pela janela, sentindo que algo mudara naquele dia. As palavras que ouvira em sua visão ecoavam em sua mente.
A neve continuava a cair, cobrindo Vibando com um silêncio quase reverente. Eiko sabia que aquele era apenas o começo de algo maior — algo que ela ainda não conseguia compreender, mas que mudaria suas vidas para sempre.
Na manhã seguinte o sol ainda tímido diante de Vibando, a familia Kurozuki levaram o corpo pálido e tão lamentável de se olhar com a angustia que os pais de Sora o esperavam.
Chegando lá, uma pequena casa, não era das mais arranjados e típica casa medieval rudimentar construída às pressas, os Suvitons assim eram conhecidas a familia do Sora, pouco estranhos e afastados dos demais moradores, não gostando muito de visitas. Citana como mãe e Seroni como pai do jovem Sora.
— Rennosuke bate na porta.
Seroni pergunta "quem eres que está a bater em minha porta...?" continuando "Se não for do agrado, não estou a receber visitantes."
— Rennosuke então o responde.
"É de seu interesse, meu senhor.... se trata do seu filho Sora".
— Seroni e Citana logo abrem a porta, ao abrir Seroni faz uma breve pergunta enquanto estava a abrir "O que o Sora apront...." porem ao ver seu filho gélido e sem emanar sequer uma fagulha de vida, eles correm para segura-lo desesperados estão sem entender nada sobre o que havia acontecido. Citana e Seroni caiem aos pratos, como se tivessem perdido parte de seus seres, e realmente havia perdido.
— Mizuki, então oferece explicações sobre o ocorrido os convidando para entrar em suas casas para não gerar mais tumultos e alardes na região.
Seroni logo recuperado e momentaneamente apático os convida para que entrem em sua casa. Ja dentro Ichiro, Eiko percebem como é uma residência bastante humilde claramente, haviam se mudado a poucas luas.
Rennosuke então a explicar como a situação aconteceu, Ichiro cabisbaixo contou em detalhes o que havia acontecido, porém, Ichiro relembrando o ocorrido e no exato momento em que a Eiko o havia tocado. Ichiro por um breve momento fica paralisado, se dando conta deste detalhe tão importante que acabou não lembrando enquanto contava para seus pais anteriormente, mas por pura intuição decide omitir e continuar contando a versão que assim contava-lhe para os Suvitons.
Após entrarem na casa dos Kurozuki, Citana e Seroni se acomodaram, ainda tentando processar a perda devastadora de seu filho. Mizuki preparou uma infusão quente, tentando proporcionar algum conforto em meio à dor insuportável.
— Contem-me o que aconteceu, por favor — pediu Citana, sua voz um fio trêmulo de desespero.
Ichiro, com lágrimas nos olhos, relatou os eventos do dia anterior, sua voz entrecortada por soluços. Descreveu como Sora caiu no gelo e como tentaram, desesperadamente, salvá-lo.
— Fizemos tudo o que podíamos, mas foi rápido demais... — explicou Ichiro, culpando-se em silêncio.
Citana abraçou Mizuki em busca de consolo, enquanto Seroni permanecia imóvel, processando a amarga realidade.
— Ele era um bom menino... sempre tão cheio de vida... — murmurou Seroni, lágrimas escorrendo por seu rosto enrugado.
Eiko, sentada perto da lareira, olhava para as chamas dançantes, perdida em pensamentos sobre a visão que tivera. Sentia uma mistura de culpa e confusão. Por que ela tivera aquela visão? E o que isso significava?
— Precisamos preparar o funeral... — disse Mizuki suavemente, tentando trazer alguma ordem ao caos.
Os dias seguintes passaram num borrão de dor e tristeza. O funeral de Sora foi simples, mas carregado de emoção. Os moradores de Vibando se uniram para prestar suas homenagens ao garoto, oferecendo condolências à família Suviton, Rennosuke exclusivamente ofereceu ajuda o tempo que for necessário para eles.
Eiko e Ichiro ficaram ao lado dos pais, observando enquanto Sora era enterrado sob a neve. No entanto, Eiko não conseguia afastar a sensação de que a visão que tivera era um sinal de algo mais profundo.
Após o funeral, a vida em Vibando lentamente começou a retornar ao normal, mas a tristeza pendia sobre o vilarejo como uma nuvem permanente, mas apesar dos sofrimentos e amarguras a vida não poderia parar, em mundo tão impiedoso como esse. Eiko, determinada a entender sua experiência, começou a investigar sobre visões e magia ou quaisquer pistas.
Seu querido irmão, era o único que eiko poderia conversar sem represálias, então assim Eiko contou sobre a visão que teve naquele fatídico dia. Ichiro com seu escasso conhecimento de magia, supôs que ela talvez naquele momento tivesse um lapso de despertar magico, mas com nove anos ainda é peculiar para Ichiro, geralmente este despertar magico acontece quando se completa doze anos. O que não é seu caso ainda. Enquanto Ichiro, com seus já doze anos nem sinal ainda de qualquer magia que ele conheça.
Ichiro assim teorizou para sua irmã que ao tocar em Sora, ela conseguiu visualizar o passado nos momentos antes dele cair na água, porem ele acha que deve ter acontecido alguma coisa que no momento em Eiko o tocou, algo bem estranho que ele ainda desconhece.
Eiko somente concordando sem conseguir compreender sua peculiaridade, acreditando um dia entende-lo.
Mas seu irmão falou — "Não se preocupe Eiko assim que completastes doze anos, Nerathos a aguardará.
Eiko então olha diretamente para o Ichiro, bufando impacientemente, querendo conhecer tal magia tão apressadamente, continuando a conversa eiko fala:
— Mas Ichiro, não tem um jeito melhor não? odeio esperar!
— Ichiro retruca. Também queria saber logo, mas não tem atalho. Você vai ver quando chegar sua vez. Inclusive minha irmã, daqui a um mês já irei a Nerathos e quem sabe eu descubra se tenho algo glamoroso.
Eiko continua — "Com certeza vai ser voar, para assim viajarmos por todo o mar meu irmão. Estou ansiosa por ti, so desejo sorte."
Ichiro fala — "Com toda certeza Eiki *risos*, se quiser pode ficar com minhas coisas quando eu partir, passarei um longo tempo lá so levarei o necessário. Espero que você consiga aguentar a nova rotina sem mim.
Eiko retruca — "Claro que vou aguentar, sou bastante forte olha so o meu braço *risada orgulhosa*, mas vou sentir sua falta meu irmão *eiko abraça Ichiro logo em seguida*."
Ichiro a abraça junto e logo diz "É eu também Eiko, eu também."
Os dias seguintes trouxeram à família Kurozuki uma mistura de expectativa e incerteza. Enquanto o vilarejo de Vibando continuava a enfrentar o inverno severo, Rennosuke e Mizuki tentavam equilibrar o luto dos Suviton e as responsabilidades crescentes de sua fazenda elementista. Ichiro, por sua vez, preparava-se para sua partida para Nerathos, enquanto Eiko continuava intrigada com a visão que tivera no dia da morte de Sora.
Nos dias que se seguiram à morte de Sora, o inverno parecia ainda mais cruel. Eiko e Ichiro evitavam falar sobre o ocorrido, mas a floresta que antes era um refúgio de aventuras agora parecia carregar o peso da perda. Foi durante uma dessas caminhadas silenciosas que o inesperado os encontraria.
Certa manhã, enquanto o sol surgia timidamente entre as nuvens, Ichiro e Eiko decidiram explorar a floresta mais uma vez antes de sua despedida. Era um ritual dos dois: uma última aventura juntos antes que a distância os separasse. Eiko carregava uma pequena bolsa com itens que considerava "essenciais" — alguns biscoitos, uma pedra que dizia ser de sorte, e um graveto que ela jurava ter formato de uma serpente.
— Vamos até o velho carvalho? — sugeriu Eiko, com o mesmo entusiasmo de sempre.
— Pode ser, mas nada de subir nele! Você lembra que o papai quase surtou da última vez — disse Ichiro, rindo.
Ao chegarem ao carvalho, encontraram marcas no solo ao seu redor. Pareciam ser de patas grandes, diferentes de qualquer animal que já tivessem visto na região. Ichiro examinou as marcas com cuidado, franzindo a testa.
— Isso não é de um cervo ou lobo... Eiko, fique atrás de mim.
— O que você acha que é? — perguntou ela, com uma mistura de curiosidade e preocupação.
Antes que Ichiro pudesse responder, um som grave e profundo ecoou pela floresta. Era um rugido que fez os pássaros voarem em disparada e o vento parecer carregar um aviso sombrio. Eiko agarrou o braço do irmão, seu coração acelerado. Logo então tudo se escurece, e ar inexplicável atingem todos os instintos de sobrevivência dos irmãos.
— Vamos voltar... Ichiro, rápido — disse ela, baixinho.
A neve caía em espirais silenciosas, o mundo sufocado num silêncio que parecia vivo, como se alguma coisa se ocultasse atrás de cada floco que tocava a terra. O bosque de Vibando se erguia como uma congregação de velhos juízes, as árvores inclinando-se, seus galhos longos e ossudos em uma reverência muda a algo que Ichiro e Eiko não sabiam nomear. O vento cantava um lamento baixo e estranho, arrastando-se entre os troncos como um espírito sem lar.
Nas sombras profundas do bosque, onde a luz morria como um último suspiro, algo começou a emergir. Um zumbido inquietante tomou o ar, invadindo as mentes de Ichiro e Eiko, enquanto sussurros desconexos ecoavam como ecos distantes. Suas cabeças foram inundadas por visões estranhas e perturbadoras, e, em suas mentes, a figura começou a tomar forma. Era uma "coisa" enorme, incompreensível, envolta por um fundo negro, vasto e sem fim, como o próprio espaço. E, ainda assim, a criatura parecia maior, sua presença transcendendo as dimensões, como se fosse algo que não deveria existir na realidade.
A brecha fugaz de sua presença nas mentes de Ichiro e Eiko era suficiente para congelar o sangue, um vislumbre tão aterrador que desafiava a sanidade. Cada detalhe daquela visão parecia escapar à lógica, como se a criatura brincasse com os limites da percepção humana.
Paralisados, os dois permaneceram imóveis, de volta a realidade a criatura surge lentamente, primeiro uma forma, depois um contorno. A criatura, com seus três metros, era desproporcional, a pele pálida como a neve. Seus olhos, duas fendas negras e sem vida, pareciam sondar o vazio, indiferentes ao mundo ao seu redor. A fedora sobre sua cabeça, vestindo um sobretudo envelhecido, deslocado, só aumentava o desconforto que causava, parecia se esconder sua forma original mascarando-se
E aquilo se movia. Deslizava como névoa espessa que aprendesse a andar. Os passos, se havia passos, não faziam som. Não quebravam galhos, não perturbavam a neve. Ele veio até eles, uma parede de trevas que respirava.
Parou. A cabeça se inclinou, devagar, como se estivesse examinando alguma coisa que nenhum humano podia ver. Quando a voz veio, parecia sair de algum lugar além da boca, além do corpo. Era baixa, densa como a própria noite, e sua cadência vibrava na pele e nos ossos.
— Não tenhas pressa.
A palavra caiu entre eles como uma pedra num poço seco. A criatura inclinou-se mais, o rosto descendo até ficar à altura de Ichiro e Eiko. Os olhos vazios pareciam ler alguma coisa dentro deles, algo enterrado profundamente, que talvez nem eles soubessem que existia.
— Duas criaturas. Perdidas aqui. Buscando o abraço da progenitora. Mas não é nos meus braços que encontrarão a afabilidade.
O rosto da criatura se moveu, e algo que poderia ser um sorriso dançou em sua boca magra.
— Há um caminho. Um só. Estreito. Escuro. Implacável.
Ichiro sentiu o calor da mão de Eiko apertando a sua, mas não conseguiu se mover. As palavras da criatura não eram som, mas pensamentos empurrados para dentro de suas mentes.
— Não temam a mim. Não sou eu quem decide o peso do destino que carregam. — Uma pausa. Um sorriso que não era sorriso. — Mas quem sabe. Talvez nos cruzemos outra vez. No breve sopro do tempo.
O corpo da criatura se ergueu com uma velocidade impossível. Ela se dissolveu nas sombras tão rapidamente quanto havia emergido, como se nunca tivesse estado ali. Apenas o vazio permaneceu, um silêncio mais pesado que antes.
Ichiro respirou fundo, puxou Eiko para mais perto. Ambos encararam o bosque, onde a escuridão parecia rir baixinho, aguardando.
— O... o que foi isso? — sussurrou Eiko, a voz embargada de medo.
— Não sei..., mas precisamos sair daqui — respondeu Ichiro, tentando manter a calma, embora sua respiração estivesse acelerada. Ele começou a conduzir Eiko de volta pelo caminho que haviam vindo, mas algo dentro deles havia mudado. As palavras da criatura permaneciam gravadas em suas mentes, como um enigma que insistia em ser desvendado.
E enquanto caminhavam de volta ao vilarejo, o vento parecia murmurar algo que nenhum dos dois podia compreender.
A jornada de volta ao vilarejo foi marcada por um silêncio pesado. O som da neve sob os pés e a respiração entrecortada dos dois irmãos eram os únicos ruídos que quebravam a quietude. Mesmo a floresta parecia ter retido o fôlego após o encontro com a criatura. Ichiro lançava olhares furtivos para Eiko, que mantinha a cabeça baixa e os punhos cerrados. Ele sabia que ela estava tão assustada quanto ele, mas precisava manter a compostura, pelo menos por enquanto.
Assim que alcançaram a borda do bosque e avistaram as primeiras casas do vilarejo, Ichiro parou abruptamente. Segurou Eiko pelos ombros e olhou-a nos olhos, os dele cheios de uma determinação que contrastava com o tremor em sua voz.
— Eiko, ninguém pode saber disso. Nem o papai, nem a mamãe. Ninguém. — Ele falou em um sussurro urgente.
— Mas, Ichiro... aquela coisa... ela falou conosco. Não podemos simplesmente... — começou Eiko, mas foi interrompida.
— Ninguém vai acreditar em nós! Eles vão dizer que foi nossa imaginação, que inventamos tudo. — Ichiro apertou os ombros da irmã suavemente, mas firme o suficiente para demonstrar seriedade. — Precisamos prometer um ao outro que nunca contaremos isso a ninguém. Nunca. É a única forma de proteger o que vimos.
Eiko hesitou. Sua mente ainda estava repleta das palavras da criatura, o eco daquela voz que parecia ter vindo de outro mundo. Mas algo no tom de Ichiro a fez concordar. Ele não estava apenas preocupado com a descrença alheia; ele temia algo mais, algo que talvez nem ele mesmo entendesse completamente.
— Tudo bem. Eu prometo, Ichiro. — Ela assentiu, a voz trêmula.
Ichiro estendeu o mindinho, e Eiko entrelaçou o dela no dele, selando o acordo com um gesto infantil, mas carregado de seriedade.
— É melhor assim, Eiko. — Ele suspirou aliviado.
Os dias que se seguiram foram estranhos. Apesar da rotina do vilarejo continuar normalmente, Ichiro e Eiko sentiam que estavam desconectados da realidade à sua volta. Toda vez que fechavam os olhos, a figura da criatura emergia em suas mentes, junto com as palavras enigmáticas que ela havia pronunciado.
Certo dia, enquanto arrumava suas coisas para a jornada à capital de Theron, Ichiro olhou pela janela de seu pequeno quarto. O bosque de Vibando parecia distante, mas a memória do que acontecera lá nunca esteve tão próxima. Ele sabia que sua vida tomaria um rumo completamente novo após o
Na manhã de sua partida, Eiko o abraçou forte no portão de casa.
— Seja o que for que você encontre lá, Ichiro... — Ela hesitou, mas terminou com um sorriso tímido. — Não esqueça de sua irmã.
Ele bagunçou os cabelos dela com um riso fraco, tentando aliviar a tensão que sentia.
— Nunca, maninha. Você é a única pessoa com quem posso dividir meus segredos.
— Com um ar de tristeza, Ichiro abraçou sua mãe, Mizuki, e seu pai, Rennosuke. Assim se despedindo-se de sua familia.
Enquanto Ichiro se afastava em direção ao horizonte, o bosque de Vibando parecia observá-lo, silencioso, como se guardasse algo que ele ainda precisaria enfrentar. A jornada ao templo de Nerathos e ao teste Nyfaris seria apenas o começo de um caminho que o destino havia traçado — um caminho estreito, sombrio e cruel, exatamente como a criatura havia previsto, ou talvez A criatura tenha falado de outro assunto, apenas os ventos dirão.