O frio cortava como lâminas invisíveis enquanto Ichiro seguia pela estrada coberta de neve. Apenas o farfalhar de galhos nus quebrava o silêncio desolador. Sua respiração formava pequenas nuvens diante de seu rosto, e ele apertava o casaco em torno do corpo, tentando manter-se aquecido. O peso de sua missão e da expectativa de sua família estava sobre seus ombros, mas ele mantinha o olhar firme no horizonte, determinado a chegar à capital de Theron para seu exame.
Enquanto avançava, um murmúrio à distância chamou sua atenção. Virando uma curva na estrada, Ichiro avistou um pequeno grupo de viajantes reunidos ao redor de uma fogueira improvisada. Suas roupas eram simples, mas práticas para o inverno severo, e suas expressões eram marcadas pelo cansaço e pela desconfiança.
Intrigado, Ichiro se aproximou devagar, suas intenções claras na postura relaxada, mas vigilante. Quando estava próximo o suficiente para ouvir a conversa, percebeu que o grupo também estava a caminho de Theron. Ele pigarreou baixinho antes de falar.
— Com licença, eu ouvi que estão indo para Theron. também estou seguindo para lá. Talvez possamos viajar juntos? — Ele tentou manter o tom amigável, embora seus olhos traíssem um traço de incerteza.
Os viajantes se entreolharam. Um homem mais velho, com barba espessa e olhar severo, foi o primeiro a responder.
— Não é nada pessoal, garoto, mas tempos como esses não deixam espaço para confiança fácil, ainda mais para cuidar de alguem. — Ele lançou um olhar significativo para os outros, que assentiram com um silêncio cauteloso. — De qualquer forma, fique atento. A estrada não é segura, especialmente perto da ponte. Os saqueadores estão mais agressivos do que nunca.
Ichiro sentiu o coração apertar com a rejeição, mas disfarçou sua decepção com um pequeno aceno de cabeça.
— Ah, Agradeço pelo aviso.
Ele se afastou, deixando o grupo para trás, mas suas palavras ecoaram em sua mente. "Os tempos estão difíceis demais."
Quando a noite começou a cair, Ichiro sabia que precisava de um lugar para descansar. Seguindo os ensinamentos de seu pai, encontrou um ponto discreto na floresta, onde montou um abrigo camuflado com ramos e neve. Satisfeito com o trabalho, tentou cochilar, mas o frio e os pensamentos sobre os perigos na estrada o mantinham inquieto.
No meio da noite, algo o despertou. Uma luz, fraca e distante, pulsava na escuridão como um farol misterioso. Ichiro abriu os olhos, imediatamente alerta. A luz parecia flutuar entre as árvores, oscilando como uma chama trêmula, mas sem o brilho quente do fogo.
Ele se levantou devagar, apesar de não ter demostrado sinal de magia seus sentidos eram aguçados. Caminhou silenciosamente ao seu redor, quase imperceptível na escuridão.
— "Será um viajante perdido? Ou algo mais?" — pensou Ichiro.
Com passos cautelosos, Ichiro começou a se aproximar da origem da luz, mantendo-se entre as sombras da floresta. A tensão crescia em seu peito enquanto a cena à frente se tornava mais clara.
Ichiro se aproximou da estrada de terra, os olhos atentos a cada detalhe sob a fraca luz da meia-lua. Apesar da visibilidade limitada, ele conseguiu distinguir uma figura feminina caminhando sozinha em direção à ponte. Era algo incomum, especialmente em tempos tão perigosos. Seu instinto o alertava, mas ele decidiu observar antes de agir.
De sua posição entre as sombras, Ichiro percebeu duas silhuetas agachadas sob a ponte. "Saqueadores," pensou, apertando o cabo da katana. Por um momento, hesitou: deveria alertar a mulher ou deixá-la passar? Ele optou por segui-la de perto, pronto para intervir caso fosse necessário.
Assim que a jovem atravessou a ponte, os dois homens emergiram das sombras e a agarraram.
— Olha só o que temos aqui — disse um deles, um sorriso malicioso no rosto. — Vai nos dar algo valioso, não vai?
A mulher gritou, a voz carregada de pânico:
— Por favor! Não tenho nada! Apenas me deixem ir!
Ichiro não esperou mais. Ele se abaixou, pegou uma pedra e a arremessou com precisão, atingindo um dos saqueadores na cabeça. O homem recuou, xingando alto:
— Quem fez isso? Mostre-se, desgraçado!
Usando a distração, Ichiro se moveu rapidamente para debaixo da ponte. Quando um dos homens foi investigar de onde vinha a pedra, Ichiro percebeu sua chance. Com a katana em mãos, ele avançou sobre o saqueador restante e cortou levemente o tendão de seu calcanhar. O homem caiu de joelhos com um grito de dor.
— Vamos! — disse Ichiro à mulher, puxando sua mão para afastá-la do perigo.
Mas assim que ela se levantou, algo inesperado aconteceu. A mulher segurou firme a mão de Ichiro, seu aperto dolorosamente forte. Lentamente, ela ergueu o rosto, e um sorriso perturbador se formou em seus lábios.
— Está vendo, fracotes? Eu disse que conseguiria um. — Sua voz, antes frágil, agora soava fria e carregada de sarcasmo.
Ichiro arregalou os olhos, confuso e alarmado.
— O que você... — Ele tentou se soltar, mas o aperto dela era inumano.
— Ah, não adianta fugir. — A mulher riu, sua voz ecoando de forma estranha, quase sobrenatural. — Você foi muito prestativo, mas agora... — Ela o puxou para mais perto, seus olhos brilhando com uma luz sinistra, como se algo a possuísse. — ...eu não vou deixá-lo ir.
Ichiro sentiu uma onda de desespero. Seu instinto gritava que aquilo não era humano. Ele precisava se livrar dela, mas como? A situação estava se virando contra ele, e rápido demais.
Com um movimento brusco, Ichiro puxou sua katana, a lâmina brilhando à luz da lua.
— Solte-me agora — ele disse, sua voz carregada de determinação, mas com um leve tremor. — Ou eu juro que não vou hesitar.
A mulher riu novamente, inclinando a cabeça para o lado de forma perturbadora.
— Ah, garoto... hesitar é a última coisa que você deveria fazer.
Ichiro recuou, o olhar fixo na mulher que agora segurava sua katana. Ela examinava a lâmina com interesse, como se avaliasse sua qualidade. Os comparsas, dois homens corpulentos com expressões sinistras, posicionaram-se ao lado dela, bloqueando qualquer rota de fuga.
A mulher sorriu, girando a katana no ar com uma habilidade inquietante.
— Tão jovem, e já com algo assim... interessante. — Ela encarou Ichiro, os olhos brilhando com uma luz antinatural. — Você é diferente, garoto. Mesmo sendo tão fraco, há algo em você que eu não posso ignorar. Algo que me lembra... — Ela parou, inclinando a cabeça como se ouvisse algo distante, algo que só ela podia compreender. O brilho estranho em seus olhos se intensificou, quase devorando qualquer traço de humanidade. — Não importa. Você não merece o que carrega.
Ela se aproximou, a voz baixa e sibilante, como o eco de uma prece antiga. — Há um lugar para você, um papel que já foi escrito. Meu mestre espera. Ele sempre espera. — Seus dedos tocaram o queixo do garoto, erguendo levemente seu rosto, forçando-o a encarar seus olhos. Havia um vazio neles, algo antigo e aterrador. — Você não entende agora, mas logo entenderá.
Ela se afastou, mas sua presença parecia preencher todo o espaço ao redor, como uma sombra que crescia sem fonte. — Venha. O tempo corre, e meu mestre não gosta de esperar. Logo você verá. Ele verá.
O garoto permaneceu em silêncio, o corpo rígido e trêmulo. As palavras dela não faziam sentido, mas o peso delas o prendia, como correntes invisíveis. A voz dela, no entanto, carregava algo que ele reconhecia: certeza. Não havia dúvida no que dizia, apenas uma determinação fria, como a lâmina de um machado prestes a cair.
Ichiro cerrou os punhos, sentindo a frustração e o medo lutarem para tomar conta. Ele tinha apenas doze anos, mas sabia que não podia se dar ao luxo de ceder. Ele precisava pensar rápido.
— devolva minha katana! — Ele exigiu, tentando manter a voz firme, apesar de sua juventude.
A mulher riu, como se ele tivesse contado uma piada.
— Oh, por que eu faria isso? Está em boas mãos agora.
Os dois comparsas deram um passo à frente, prontos para reagir a qualquer movimento de Ichiro.
Ichiro respirou fundo, tentando manter a calma. Ele não era páreo para três adultos, ainda mais sem sua katana, mas desistir não era uma opção. Ele começou a observar ao redor, procurando algo que pudesse usar a seu favor.
Ele notou o terreno ao redor: a ponte velha, as pedras cobertas de gelo abaixo e os restos de neve nas árvores próximas. Uma ideia malformada começou a se formar em sua mente.
— Muito bem, vocês venceram — Ichiro disse, levantando as mãos como se estivesse se rendendo. — Mas minha katana não vale tanto assim.
— Ah, É mesmo garoto? — A mulher deu um passo à frente, a voz carregada de ameaças e sarcasmos. — Est Então não lhe fara falta. — a mulher faz um leve sorriso.
Ichiro deu um passo para trás, como se fosse recuar ainda mais, mas na verdade estava calculando a distância. Ele sabia que precisava agir antes que os três o cercassem completamente.
De repente, ele chutou uma pedra coberta de neve em direção aos olhos de um dos comparsas. O homem gritou, esfregando o rosto, o que deu a Ichiro o tempo que precisava. Ele girou e correu na direção de uma árvore próxima, agarrando um galho baixo e puxando com toda a força.
A neve acumulada no galho caiu com um baque pesado sobre o segundo comparsa, que tropeçou e caiu de joelhos.
A mulher avançou, furiosa, mas Ichiro já estava em movimento. Ele correu em direção à ponte, agora parcialmente danificada, e parou no meio, olhando para baixo. O riacho congelado parecia assustador, mas era sua única chance.
— Ah, vai tentar fugir? — A mulher zombou, aproximando-se lentamente. — Não há para onde ir, garoto.
Ela avançou, mas Ichiro, aproveitando a estrutura instável da ponte, saltou para o lado, agarrando uma das cordas soltas. A mulher tentou alcançá-lo, mas perdeu o equilíbrio quando a ponte começou a ceder.
Com um movimento rápido, Ichiro balançou a corda, fazendo a estrutura instável chacoalhar. A mulher e seus comparsas caíram para o riacho abaixo, o impacto ecoando na noite silenciosa.
Ichiro puxou-se de volta para a margem, ofegante. Ele sabia que a queda não os deteria por muito tempo, mas pelo menos tinha um momento para respirar.
Ele olhou para as mãos, sentindo a falta da katana que agora estava nas mãos da mulher. Apesar do cansaço e do frio, Ichiro apertou os punhos, um brilho de determinação em seus olhos.
— Eu vou recuperar minha katana — murmurou para si mesmo. — E vou acabar com isso.
Agora, mais do que nunca, Ichiro sabia que precisava confiar em sua inteligência para sobreviver. A batalha injusta estava longe de terminar.
Ichiro mal teve tempo de respirar antes de ouvir o som cortante de algo se movendo a uma velocidade aterradora. Ele virou a cabeça instintivamente e viu a mulher pular para fora do riacho congelado com uma agilidade sobre-humana. A katana brilhava à luz da meia-lua enquanto ela a manuseava com maestria.
— Achou que tinha acabado? — ela zombou, os olhos brilhando com uma mistura de diversão e crueldade. — Agora vamos ver do que você é feito.
Sem aviso, ela avançou, a lâmina zumbindo no ar em direção a Ichiro. Ele saltou para trás, quase escorregando no gelo, mas o golpe passou a milímetros de sua pele. Não era um ataque comum. A mulher movia a katana como se fosse uma extensão de seu corpo, cada golpe mirando lugares específicos, mas sem intenção de matar.
"Ela está brincando comigo." A ideia era aterradora, mas Ichiro sabia que era verdade. Cada corte era propositalmente calculado para feri-lo sem atingi-lo em pontos vitais.
— Vamos, garoto! — gritou ela, desferindo outro golpe rápido que Ichiro conseguiu evitar por pouco.
Seus sentidos estavam em alerta máximo. Ele sabia que não poderia vencer uma batalha direta; sua única chance era usar sua velocidade e inteligência. Mas o cansaço e a dor começaram a pesar em seu corpo. Ele já sentia o sangue escorrendo por cortes superficiais nos braços e pernas, causados pelos ataques dela.
— Você tem habilidade..., vamos dançar então. — A figura em questão com seus movimentos parecendo uma dança mortal enquanto avançava novamente.
Ichiro desviou por reflexo, girando o corpo para evitar o próximo golpe. Ele usou a força do movimento para agarrar um galho no chão, erguendo-o como uma improvisada arma defensiva. Ele sabia que era inútil contra uma katana, mas precisava de algo para ganhar tempo.
— Um galho? Que sábio! — zombou ela, avançando com um golpe lateral.
O impacto da katana partiu o galho ao meio, mas Ichiro aproveitou o movimento para deslizar para o lado, jogando neve no rosto dela antes de se afastar rapidamente.
— Ainda não é bastante, seu moleque. — Ela limpou a neve dos olhos e sorriu.
Ichiro percebeu que os dois comparsas da mulher estavam se levantando do gelo, ofegantes, mas prontos para voltar à luta. Ele precisava pensar rápido.
Ele recuou mais alguns passos, o olhar fixo nos arredores. A ponte estava destruída, e o riacho abaixo estava congelado. Ele notou algumas pedras soltas na beira da encosta. Uma ideia perigosa surgiu em sua mente.
— Está ficando sem opções, garoto. — A mulher avançou novamente, a katana brilhando.
Ichiro esperou o momento certo, cada fibra de seu corpo gritando para que se movesse. Quando ela desferiu outro golpe, ele saltou para o lado, agarrando uma pedra grande e jogando-a na borda da encosta.
A pedra rolou, arrastando neve e gelo consigo. O impacto foi suficiente para criar um pequeno deslizamento que atingiu a mulher e os comparsas. Por alguns segundos, a neve e as pedras os cobriram parcialmente, dando a Ichiro uma breve abertura.
Ele correu o mais rápido que podia, o coração disparado. Sabia que eles não ficariam presos por muito tempo, mas precisava de distância.
— Péssima decisão! — a voz da mulher ecoou atrás dele, abafada pela neve.
Ichiro não respondeu. Ele apenas continuou correndo, determinado a sobreviver e quem sabe recuperar sua katana.
A fúria na voz da mulher era palpável, ecoando pela floresta escura. A neve ao redor parecia vibrar com sua presença, e Ichiro, mesmo em sua corrida desesperada, sentia o perigo se aproximando como uma sombra inevitável.
Antes que pudesse sequer formular um plano, um som cortante preencheu o ar — passos rápidos e determinados esmagando a neve congelada. Ele tentou olhar para trás, mas não teve tempo de reagir. A mulher estava sobre ele em um piscar de olhos, movendo-se com uma velocidade que parecia impossível.
— Não será hoje que deixarei uma criança me enganar. — A voz dela era um sussurro letal, carregado de desprezo e diversão distorcida.
A pancada foi tão rápida quanto ela. Um impacto preciso na lateral de sua cabeça, usando o punho da katana, foi o suficiente para fazer tudo ao redor de Ichiro girar. Ele tentou resistir, mas a visão se tornou um borrão de branco e preto, e seus sentidos começaram a falhar.
Ele desabou na neve, o frio penetrando sua pele enquanto sua consciência escorregava para longe. A última coisa que ouviu foi a risada da mulher, gélida e triunfante, cortando o silêncio da noite como um punhal.
Quando a escuridão tomou conta de sua mente, Ichiro não conseguiu deixar de pensar que essa poderia ser sua última falha.
Ichiro despertando lentamente, seus sentidos confusos e o corpo pesado como chumbo. Um sabor metálico de sangue e poeira preenchia sua boca. Ele abriu os olhos com esforço, na esperança desesperada de que tudo aquilo não passasse de um pesadelo.
O ambiente que encontrou, porém, destruiu qualquer esperança. Ele estava em uma cela apertada e suja, as grades de metal gastas, mas incrivelmente grossas, impossíveis de dobrar ou quebrar. As paredes eram úmidas e cobertas de musgo, com um cheiro forte de decomposição e ferro pairando no ar. O chão estava frio e irregular, com poças de água estagnada acumuladas em cantos escuros.
Uma única vela queimava em um nicho na parede oposta, lançando sombras tremeluzentes que pareciam ganhar vida nos contornos da cela. Ichiro forçou-se a se sentar, cada músculo em seu corpo gritando em protesto, e olhou ao redor. Seus olhos pousaram no fundo da cela, onde algo o fez congelar.
Crânios. Pequenos, humanos, empilhados desordenadamente. Alguns estavam rachados, outros ainda tinham resquícios de carne seca ou fios de cabelo. O garoto sentiu seu estômago revirar, e sua respiração ficou mais pesada. Ele tentou se convencer de que aquilo era uma ilusão, um truque de sua mente exausta, mas a realidade era inescapável.
— Não... isso não pode estar acontecendo... onde estou? — ele murmurou, sua voz rouca e fraca.
A visão roubou as últimas fagulhas de esperança que ele ainda possuía. Ichiro enterrou o rosto nas mãos, lutando contra o desespero que ameaçava engolir sua mente.
Depois do que pareceram horas, o silêncio opressivo foi quebrado. O corredor escuro além da cela começou a se iluminar com uma luz fraca e oscilante. O som de passos ecoava, lentos e deliberados, cada um reverberando como um prenúncio de algo terrível.
Ichiro levantou a cabeça, os olhos arregalados em direção à fonte do som. Um dos capangas da mulher apareceu, cambaleando, sua figura iluminada pelas tochas que agora acendiam ao longo do corredor. Um homem corpulento, bastante pálido com cicatrizes cobrindo o rosto e um sorriso de escárnio que mostrava dentes manchados.
Sem dizer uma palavra, o homem destrancou a cela com uma chave pesada, o som do metal ecoando alto naquele silêncio mórbido. Ichiro tentou reunir forças para resistir, mas seu corpo estava fraco demais. Seus sentidos estavam turvos, e ele mal conseguia ficar de pé quando o capanga o agarrou pelo braço com brutalidade.
— Hora do seu grande momento. — a voz do homem era um rosnado grave, cheio de malícia. — A Thalyra, está ansiosa por isso.
Arrastado pelo corredor, Ichiro sentia o chão irregular sob seus pés descalços. As paredes pareciam se fechar ao redor dele, cada vez mais sufocantes. No final do corredor, uma porta de madeira entalhada com símbolos grotescos esperava. O cheiro de sangue e incenso queimado tornava-se mais forte a cada passo.
Quando a porta se abriu, o coração de Ichiro disparou. A sala era um pesadelo vivo. No centro, um altar de pedra maciça estava manchado de sangue seco e cercado de velas negras. As paredes eram cobertas de tapeçarias rasgadas, mostrando imagens de sacrifícios e figuras sombrias ajoelhadas perante uma criatura gigantesca e amorfa. O teto parecia sumir na escuridão, como se a sala fosse infinitamente alta.
A mulher estava lá, à frente do altar, com um sorriso satisfeito e o olhar predatório fixo em Ichiro. Ao lado dela, outro capanga afiava uma lâmina em silêncio, a luz das velas refletindo na superfície da arma.
— Finalmente — disse a Thalyra, sua voz gotejando expectativa. — Nosso convidado especial chegou. Preparem-no para o sacrifício.
Ichiro tentou lutar, mas suas forças haviam desaparecido. Ele foi colocado no altar, as pedras frias mordendo sua pele. Seu coração batia freneticamente enquanto olhava para o teto infinito, rezando para que algum milagre o salvasse.
Mas a única resposta que recebeu foi o riso cruel da mulher e o som das runas no altar começando a brilhar em uma luz doentia.
— Você é um presente raro para Vampi— a Thalyra disse, sua voz gotejando euforia sombria enquanto os olhos brilhavam com um fulgor sobrenatural. — Ele aceitará sua vida... E nós seremos agraciados com um poder inimaginável.
Ichiro, deitado no altar, ainda fraco demais para reagir, sentiu as palavras reverberarem em sua mente. O nome "Asfre" ou "Asfrefir". Não sabia ao certo, mas soava como algo proibido, quase profano, e o simples som dele fez seu peito apertar. Era como se o nome trouxesse uma presença viva ao lugar, uma força invisível que preenchia o ar e o tornava sufocante.
Ele tentou se mover, puxar os braços presos pelas algemas de ferro, mas seu corpo não o obedecia. Sentia-se pequeno, insignificante, enquanto observava a mulher levantar as mãos para o alto, iniciando um cântico em uma língua que ele não entendia, mas que instintivamente sabia ser antiga, poderosa e perigosa.
A sala, antes opressivamente silenciosa, agora pulsava com uma energia maligna. As runas no altar começaram a brilhar, uma luz púrpura que parecia consumir a escuridão ao redor. O ar ficou mais frio, quase gelado, e uma sensação de desespero profundo se abateu sobre Ichiro, como se a própria sala estivesse viva, observando-o com olhos invisíveis.
Lentamente, uma sombra colossal começou a emergir das runas. Era amorfa, um vórtice de trevas líquidas que parecia se contorcer e mudar de forma a cada segundo. Tentáculos de escuridão se estendiam pelo espaço, tocando as paredes e apagando as velas uma a uma, mergulhando o ambiente em um crepúsculo gélido.
Ichiro tentou gritar, mas sua voz foi abafada pela presença esmagadora da entidade. Ele sentia sua energia vital se esvaindo, como se a sombra estivesse drenando sua alma.
— Não! Isso não pode estar acontecendo! — Ichiro gritou, sua voz finalmente saindo, desesperada e ecoando na sala. Ele lutava contra as algemas, lágrimas escorrendo pelo rosto. — Eu vou morrer aqui?
A sombra se aproximava, lenta, inevitável. Quando ela finalmente tocou sua pele, o mundo pareceu congelar. O coração de Ichiro parou por um momento, e ele sentiu um vazio infinito o envolver.
Mas, então, algo inesperado aconteceu. A sombra hesitou.
O ambiente foi preenchido por um som que não era um som — um rugido silencioso, como uma tempestade dentro de uma mente. A sombra se retraiu levemente, como se percebesse algo em Ichiro.
Uma voz profunda, ao mesmo tempo furiosa e cheia de uma dor ancestral, ecoou pela sala:
— Você... é um fragmento.
Ichiro não entendeu as palavras completamente, mas algo dentro dele se agitou, como se aquela voz tocasse algo adormecido e esquecido em sua alma.
A sombra, que antes parecia indiferente, agora tremia de raiva. Tentáculos de trevas giraram violentamente pela sala, derrubando as velas restantes e espalhando o brilho púrpura em padrões caóticos nas paredes.
A mulher, que até então mantinha um sorriso vitorioso, recuou com um olhar de puro terror.
— O que está acontecendo? Eu fiz tudo certo! — ela gritou, seus olhos arregalados fixos na entidade.
Mas a sombra não ouviu suas súplicas. Ela rugiu, lançando-se sobre a mulher e seus comparsas. O som que se seguiu foi horrível, como ossos sendo esmagados e carne sendo rasgada. Os gritos deles ecoaram por toda a sala, um lamento agonizante que parecia durar uma eternidade.
Ichiro, incapaz de se mover, observava tudo com um misto de horror e alívio. A sombra atacava com fúria incontrolável, despedaçando os corpos dos sequestradores em uma explosão de sangue, vísceras e pedaços de carne que se espalharam pelas paredes e pelo chão. A sala agora era um massacre, um cenário de pesadelo que ninguém poderia esquecer.
Finalmente, a sombra se voltou para Ichiro. Ele tentou se preparar para o golpe final, mas, em vez disso, sentiu a entidade o envolver suavemente.
— Você não é digno do poder dela, ainda... — sussurrou a voz, desta vez mais calma, mas ainda carregada de uma autoridade esmagadora. — Mas eu reclamo sua existência. Sobreviva, fragmento. Descubra seu lugar.
Ichiro sentiu a sombra o atravessar, como uma onda gelada que trouxe consigo um turbilhão de emoções — dor, medo, e uma centelha de algo mais profundo, uma conexão que ele não entendia.
Quando abriu os olhos novamente, a sala estava em silêncio. Os corpos dos sequestradores estavam despedaçados ao seu redor, uma cena aterrorizante que parecia saída de um pesadelo. Ichiro, ainda deitado no altar, percebeu que estava vivo. Fraco, ensanguentado, mas milagrosamente vivo.
Levantando-se com dificuldade, o cheiro de sangue e morte o fazendo engasgar. Cada passo parecia pesar toneladas enquanto ele se arrastava para longe daquele lugar. Sua mente estava um caos, cheia de perguntas, medos e uma nova determinação.
Ele não sabia por que a sombra o havia poupado tão pouco o que significaria, mas uma coisa era certa: ele precisava descobrir o que significava ser um Fragmento e porque a tal criadora daquela sombra o havia reivindicado como seu.
Ichiro caminhava lentamente, arrastando os pés pela neve densa que parecia querer engoli-lo a cada passo. O vento gélido chicoteava seu rosto como uma advertência, mas ele não podia parar. Sua mente estava um turbilhão de pensamentos, tentando juntar as peças do que havia acabado de viver.
A memória da sombra, do massacre e da voz profunda que ecoava em sua alma ainda pulsava dentro dele. Ele olhou para as mãos trêmulas, buscando nelas alguma explicação. Não havia sangue nelas, mas ainda assim ele sentia o peso da morte. Aquela entidade não era natural, e o fato de ter sido poupado apenas levantava mais dúvidas do que certezas.
Enquanto o frio parecia cada vez mais implacável, Ichiro avistou ao longe uma figura escura. Ele parou imediatamente, seu coração disparando. Não podia suportar outro confronto, não naquele estado. Apertando os punhos, ele recuou um passo, tentando se esconder entre as árvores, mas sua fraqueza o traiu. Um galho seco quebrou sob seus pés, ecoando como um trovão no silêncio da floresta.
A figura parou de andar e virou-se em sua direção. Um brilho fraco emanava dela, diferente da luz sinistra que havia testemunhado na câmara de sacrifício. Era quente, quase reconfortante, e Ichiro sentiu seus ombros relaxarem ligeiramente, como se algo dentro dele dissesse que não havia perigo.
— Está perdido, garoto? — perguntou uma voz rouca, mas não ameaçadora.
A figura se aproximou, revelando-se um homem mais velho, de aparência cansada, com uma capa grossa coberta de neve. Ele carregava um cajado de madeira, que parecia ser mais do que apenas um suporte para sua caminhada. Havia algo de diferente nele, uma energia sutil que fazia Ichiro hesitar em responder
— Não tenho certeza de onde estou — respondeu Ichiro, sua voz quase inaudível.
O homem o observou por um momento, seus olhos penetrantes parecendo enxergar mais do que apenas o físico de Ichiro. Ele deu um passo à frente, abrindo a capa e revelando um pequeno cantil de metal.
— Beba. Parece que está à beira de desmaiar.
Ichiro hesitou. Ele não sabia se podia confiar naquele estranho, mas a sede e o cansaço falaram mais alto. Ele pegou o cantil com mãos trêmulas e levou aos lábios, sentindo um líquido quente e doce descer por sua garganta. Uma sensação de calor imediato espalhou-se por seu corpo, afastando um pouco o frio e devolvendo alguma energia às suas pernas enfraquecidas.
— Obrigado... — murmurou Ichiro, devolvendo o cantil.
O homem sorriu, mas seu olhar permaneceu sério.
— Meu nome é Haruo. Não sou um inimigo, se é isso que está pensando. Você parece estar fugindo de algo... ou de alguém.
Ichiro apertou os lábios, tentando decidir quanto deveria contar. Ele sabia que a história era difícil de acreditar, mas algo no olhar de Haruo parecia dizer que ele já havia visto coisas que outros considerariam impossíveis.
— Eu... fui capturado por algumas pessoas, Thalyra, foi o que eu conseguir lembrar — começou Ichiro, tentando encontrar as palavras certas. — Elas queriam me sacrificar. Algo apareceu... uma sombra, uma entidade. Ela me poupou, mas... eu não sei o porquê.
Haruo permaneceu em silêncio por um longo momento, absorvendo cada palavra. Finalmente, ele falou, sua voz baixa e carregada de gravidade.
— Uma sombra, diz você? E ela falou com você?
Ichiro assentiu, sentindo um arrepio percorrer sua espinha.
— Disse que eu era... um fragmento. Que eu precisava sobreviver e descobrir meu lugar.
Haruo estreitou os olhos, como se as palavras de Ichiro tivessem despertado uma memória distante. Ele bateu levemente o cajado no chão, pensativo.
— Venha comigo, garoto. Este não é o lugar para conversar sobre coisas tão perigosas. Há olhos em todos os lugares, mesmo no vazio das florestas.
Ichiro hesitou por um momento, mas sabia que não tinha outra escolha. Ele precisava de respostas, e Haruo parecia saber algo.
Os dois seguiram juntos por uma trilha sinuosa na floresta, o vento uivando ao redor deles como um aviso constante. Após alguns minutos de caminhada, uma pequena cabana de madeira apareceu entre as árvores, camuflada pela neve, escondendo-se dos maus olhos. Haruo abriu a porta com um empurrão firme, revelando um interior simples, mas acolhedor. Uma lareira ardia em um canto, espalhando um calor reconfortante pelo ambiente.
— Sente-se. — Haruo apontou para uma cadeira próxima à lareira enquanto ele começava a preparar algo em uma panela.
Ichiro se acomodou, sentindo o calor começar a aliviar o frio que havia se infiltrado até seus ossos. Seus olhos vaguearam pelo interior da cabana, notando várias prateleiras cheias de livros e pergaminhos antigos. Em uma das paredes, havia um mapa detalhado da região, com marcas e símbolos que ele não reconhecia.
— Você disse que a sombra falou de um fragmento, certo? — perguntou Haruo, sem virar-se.
— Sim... — respondeu Ichiro, tentando manter a voz firme. — Mas eu não entendi o que isso significa.
Haruo virou-se, trazendo consigo duas tigelas fumegantes de sopa. Ele colocou uma diante de Ichiro e sentou-se na outra cadeira, encarando-o com um olhar sério.
— O que você encontrou não foi uma simples criatura, garoto. O que você descreveu acredito que seja uma entidade primordial, algo que existe além do nosso mundo. Se ela falou com você, é porque viu algo em você que ninguém mais pode ver.
Ichiro sentiu um nó se formar em sua garganta.
— Mas o que isso significa?
Haruo suspirou, sua expressão suavizando um pouco.
— Às vezes, o destino escolhe os menos preparados para carregar os maiores fardos. Você pode ser jovem, mas há algo em você que despertou o interesse dessa entidade. — Ele fez uma pausa, olhando profundamente nos olhos de Ichiro. — E isso significa que você está em perigo.
Ichiro engoliu em seco, sentindo o peso das palavras de Haruo. Ele sabia que sua jornada estava apenas começando, mas agora tinha mais perguntas do que nunca.
Haruo colocou a tigela de lado e levantou-se, indo até uma prateleira. Ele voltou com um livro antigo, suas páginas amareladas pelo tempo.
— Se quiser sobreviver, precisará entender o que realmente aconteceu com você naquela câmara. Este livro poderá ajudá-lo.
Ichiro pegou o livro com mãos hesitantes, olhando para a capa desgastada. As palavras escritas nela estavam em um idioma que ele não conseguia entender, mas sentiu uma estranha familiaridade ao tocá-lo, como se algo nele reconhecesse aquele objeto.
— O caminho que você seguirá será perigoso, garoto. Mas se quiser respostas, precisará ser mais do que apenas forte. Precisará ser sábio.
Ichiro olhou para o livro, sentindo um misto de medo e determinação crescer em seu peito. Ele não sabia o que o aguardava, mas uma coisa era certa: ele não podia mais fugir.
— Conhecimento é a coisa mais preciosa que temos nesse mundo, e esse livro o ajudara apesar de estar velho — Disse Haruo, observando a sua lareira.
Haruo continuou observando as chamas da lareira, pensativo, enquanto Ichiro ainda segurava o livro em suas mãos, sem saber o que fazer com ele. O peso das palavras de Haruo pairava no ar, mas a dor em seu corpo começou a cobrar sua atenção. Ele tentou esconder seu desconforto, mas Haruo, com sua experiência e olhar aguçado, percebeu.
— Você não está em condições de continuar, garoto. Está exausto, ferido e, francamente, com sorte por ainda estar vivo. Ele se levantou e apontou para uma pequena cama simples, com cobertores dobrados sobre ela.
— Fique aqui até se recuperar. Essa jornada que você está trilhando exige mais do que apenas força de vontade.
Ichiro hesitou. A ideia de ficar parado, mesmo que por um tempo, o incomodava. Cada minuto parecia precioso, especialmente com tudo o que ele havia passado. Mas, ao tentar se levantar para protestar, uma pontada aguda de dor atravessou seu lado, e ele cambaleou levemente.
— Não precisa fingir que é invencível — Haruo disse, segurando-o pelo ombro e guiando-o até a cama. — O orgulho pode ser mais perigoso do que qualquer espada.
Relutante, Ichiro assentiu e deixou-se cair sobre a cama, sentindo o corpo afundar nos cobertores macios. O calor da lareira parecia distante agora, mas o alívio de estar deitado, mesmo que por um momento, era inegável.
— Obrigado — murmurou ele, os olhos fixos no teto de madeira.
Haruo sentou-se novamente em sua cadeira, cruzando os braços enquanto estudava o garoto.
— Você mencionou Theron — começou Haruo, o tom casual, mas com uma ponta de curiosidade. — É um lugar perigoso para alguém da sua idade, especialmente em tempos caóticos como esse. O que o leva até lá?
Ichiro respirou fundo, ponderando o quanto deveria contar. Ele ainda não confiava completamente em Haruo, mas também sabia que não tinha muitas opções.
— Estou indo para o teste de linhação — respondeu, evitando o olhar do homem. — Estou pessimista quanto a isso, mas é uma obrigação minha conhecer a verdade sobre mim, quem sabe eu tenha uma categoria.
Haruo arqueou uma sobrancelha, surpreso.
— linhação, hein? Compreendo. Você parece determinado, mas... o que exatamente aconteceu com você? Por que está tão ferido?
Ichiro ficou em silêncio por um momento, os olhos perdidos nas chamas da lareira. Ele podia ouvir o eco da risada da mulher em sua mente, o som dos comparsas dela e a voz daquela entidade sussurrando em sua alma. Um arrepio percorreu seu corpo, mas ele afastou os pensamentos.
— Eu estava no caminho — começou ele, escolhendo as palavras com cuidado. — Uma mulher chamada Thalyra... forte, atroz... me capturou. Ela e seus comparsas. Fui levado a um lugar... sombrio. Foi... — Ele parou, o nó em sua garganta o impedindo de continuar.
Haruo não o pressionou, apenas assentiu lentamente.
— Você não precisa contar os detalhes, se não quiser. — Sua voz era gentil, mas carregada de entendimento. — Às vezes, as feridas que carregamos não são visíveis, mas são as mais difíceis de curar. so os deuses sabem pelo que passou meu jovem.
Ichiro respirou fundo, tentando se recompor.
— Tudo o que importa agora é chegar a Theron. Não posso me dar ao luxo de falhar.
Haruo balançou a cabeça, um sorriso quase imperceptível surgindo em seus lábios.
— Entendi. A determinação é admirável, mas lembre-se: um corpo ferido não chega a lugar nenhum. Você ficará aqui até que esteja em condições de continuar.
Ichiro abriu a boca para protestar, mas Haruo levantou a mão, interrompendo-o.
— Não discuta. Considere isso parte de sua jornada. A estrada até nação ainda é bastante longa, e se encontrou alguém como essa mulher no caminho, não será o último desafio que enfrentará.
Ichiro abaixou os olhos, derrotado, mas sabia que Haruo estava certo. O descanso era necessário, mesmo que ele não quisesse admiti-lo.
— Obrigado — disse ele, mais sincero desta vez.
Haruo assentiu e levantou-se.
— Agora, descanse. Quando estiver pronto, falaremos mais sobre o livro e sua inda a nação.
Haruo apagou algumas velas, deixando a luz da lareira como a única iluminação no ambiente. Ichiro fechou os olhos, tentando silenciar os pensamentos tumultuados que dançavam em sua mente. Mas uma pergunta não parava de ecoar em seu coração: o que Haruo sabia sobre a entidade? E por que ele parecia não estar surpreso com o que havia acontecido?
Apesar da exaustão, Ichiro sentiu que Haruo sabia mais do que estava revelando. Mas, por ora, ele estava seguro. Isso era tudo o que importava.
Haruo voltou para perto da lareira, onde o fogo estalava baixo, um som quase vivo que preenchia o silêncio vasto daquela sala esquecida pelo tempo. Sentou-se na velha cadeira de madeira, que respondeu com um ranger seco, como ossos antigos se movendo. Acendeu o cachimbo com mãos calejadas, a brasa iluminando por um instante os sulcos profundos de seu rosto. Ficou ali, tragando o fumo pesado, o olhar fixo na prateleira de livros e pinturas.
Eram coisas feitas por ele mesmo, ou ao menos era isso que lembrava, embora parte de si duvidasse. Os livros estavam cobertos de poeira, as capas enrijecidas pelo passar dos anos. As pinturas, manchadas, esquecidas. Ele olhou para elas como se fossem objetos de outro mundo, como se as tivesse roubado de outra vida. Não sabia dizer se era mais a mão do tempo que as deformava ou sua própria memória, esta que escorria como areia entre os dedos.
O fogo se mexia em seu reflexo nas molduras. Ele viu ali alguma coisa, ou achou que viu, mas não desviou o olhar. Tragou o cachimbo outra vez, o gosto amargo e familiar, como a terra seca que se abre em fendas. As imagens dançavam entre o calor e a sombra, e Haruo, de algum modo, sentiu que eram mais reais que ele mesmo. Uma pintura, em especial, parecia fitá-lo. Algo nela incomodava, como se fosse menos o que estava pintado e mais o que não estava. O vazio dentro do vazio.
E assim ficou, imóvel, enquanto o tempo se perdia em voltas silenciosas ao seu redor. O vento lá fora guinchava por entre as frestas das paredes, mas Haruo não o ouvia. Sua mente estava presa àquelas coisas que ele havia feito e não se lembrava de ter feito, como se sua própria existência fosse um reflexo do que já não podia ser recuperado.
Ichiro acordou lentamente, os olhos piscando contra a luz bruxuleante da lareira. A dor em seu corpo ainda estava lá, embora menos feroz, como um animal que havia aprendido a descansar. Ele não sabia ao certo quanto tempo havia passado desde que fora encontrado por Haruo, mas sabia que estava melhor. O velho, sempre reservado, o alimentara com sopas amargas e chá forte, aplicando unguentos em suas feridas com mãos que pareciam mais precisas do que deveriam ser para alguém tão desgastado pelo tempo.
Haruo, sentado em sua velha cadeira, fumava o cachimbo como sempre fazia, observando-o com aquele olhar impassível, que parecia carregar um peso que Ichiro não compreendia. Ainda assim, havia algo de tranquilizador naquela figura, como se o mundo inteiro pudesse ruir lá fora, mas ali, naquele espaço de madeira e pedra, tudo continuasse imóvel.
"Você está forte o suficiente para caminhar de novo," disse Haruo, rompendo o silêncio com sua voz rouca. Não era uma pergunta. Ichiro assentiu, sentindo os músculos de suas pernas acordarem aos poucos, como se tivessem estado adormecidos por anos.
Ele se levantou devagar, cambaleando de leve antes de se firmar. Haruo observava em silêncio, sem oferecer ajuda, como se aquilo fosse parte de um ritual que Ichiro precisava completar sozinho. Na prateleira, as pinturas e os livros pareciam ainda mais distantes agora, sombras de algo irrecuperável, mas Haruo não desviava o olhar para eles. Apenas tragava o cachimbo, soltando uma espiral de fumaça que subia preguiçosamente em direção ao teto.
Ichiro então questionou ao haruo – Quanto tempo eu apaguei? – Haruo, com um tom ríspido, respondeu sem rodeios– uns dois dias eu diria. É natural pelo que aconteceu – concluiu.
Então, está na hora - disse Ichiro, ajustando o manto que Haruo lhe havia emprestado. Ele olhou para o velho com gratidão silenciosa, mas não disse mais nada. Não havia palavras suficientes para o que sentia, e, de alguma forma, sabia que Haruo compreendia.
Quando chegou à porta, a madeira rangendo ao ser aberta, Ichiro olhou para trás. Haruo ainda estava lá, na cadeira, mas algo nele havia mudado. O velho o olhava com um brilho estranho nos olhos, algo que Ichiro não conseguia decifrar completamente. Assim que Ichiro fechou a porta de sua cabana, Haruo riu. Foi uma risada curta, seca, como um galho se partindo ao meio, mas que carregava algo... deslocado. Uma risada que tentava ser humana e não era, como uma máscara tentando encobrir um vazio.
Ichiro sentiu uma sensação correr pela espinha, mas não demonstrou, como se algo estive o observando. Puxando o manto sobre os ombros enquanto o vento frio o envolvia. A trilha diante dele estava coberta de neve, mas o céu acima estava claro, com estrelas que brilhavam como facas.
Ele caminhou, a jornada para Theron chamando-o novamente, uma voz silenciosa que o empurrava para frente. A presença de Haruo já começava a se apagar em sua mente, mas sua gratidão a ele sempre haverá.
Na cabana, Haruo ficou sozinho. O fogo continuava a crepitar, e ele tragava o cachimbo com lentidão. Seus olhos estavam fixos nas pinturas, mas seu rosto era inexpressivo. Por um instante, parecia que o velho Haruo havia se desvanecido, como uma sombra à mercê da luz. Algo diferente, insondável, ocupava agora aquele espaço. Olhava o mundo através de olhos que já não eram humanos.
Ichiro mantinha sua caminhada, os passos ritmados sobre a dura estrada de terra. O ar fresco da manhã envolvia sua jornada solitária, enquanto o céu, ainda tingido de tons alaranjados, prometia a chegada de um novo dia. As colinas à frente começavam a tomar forma com os primeiros raios de sol, florescendo como um quadro vivo diante de seus olhos.
Seus pensamentos vagavam em devaneios, ora refletindo sobre os motivos que o levaram a essa longa travessia, ora se perdendo nas memórias de tempos mais tranquilos. A estrada era árdua, pontilhada por pedras e marcada por vales silenciosos. Apesar disso, Ichiro seguia em frente, sentindo-se grato por nada de ruim lhe ter acontecido até então. Cada passo dado parecia ser uma pequena vitória contra as incertezas do caminho.
Dois dias se passaram desde que ele havia deixado o último vilarejo. O desgaste era evidente, mas a determinação em seus olhos permanecia firme. Finalmente, ao término de uma íngreme subida, avistou o que tanto buscava: o portão da Nação Theron.
Erguido no topo da colina, o portão era imponente, de uma grandiosidade que o fez parar por um instante. Duas estátuas colossais guardavam a entrada, ambas esculpidas em pedra escura, com expressões severas e ameaçadoras. Seus olhos pareciam seguir os viajantes, como se avaliassem cada alma que ousasse se aproximar. Uma delas empunhava uma espada longa, com a lâmina apontada para o céu, enquanto a outra segurava um escudo adornado com símbolos antigos, que Ichiro não reconhecia.
O vento soprou levemente, agitando o manto que Ichiro trazia sobre os ombros. Ele respirou fundo, sentindo o peso do momento. Este era o limiar de uma nova fase em sua jornada, e, por mais que o desconhecido o aguardasse além do portão, não havia espaço para hesitação.
Com passos decididos, começou a subir o caminho de pedra que levava até a entrada. Os guardas reais, vestidos com armaduras negras que refletiam a luz do sol nascente, observavam atentamente cada movimento seu.
Quando finalmente parou diante do grande portão, Ichiro ergueu a cabeça e declarou sua chegada com a voz firme, mesmo que o coração pulsasse forte no peito.
"Vim de Vibrando, meu teste foi requisitado."
A resposta, porém, não veio imediatamente. Um silêncio sepulcral se instalou, quebrado apenas pelo sutil ranger das árvores ao redor. Ichiro aguardou, sabendo que a aprovação ou a rejeição dos guardiões seria o início de algo maior do que ele podia prever.
O guarda alto e em tom quase hostil falou – Vibrando... tudo certo garoto, prossiga logo quanto mais soldados melhor, assim eu posso me aposentar de vez – falou em tom de desesperança e sarcasmo.
Primeira grande cidadela de Theron – Arkanfhon – A imperatriz solene e impiedosa.
O portão rangeu, abrindo-se lentamente diante de Ichiro. Uma rajada de ar fresco veio acompanhada por uma visão que o deixou sem palavras. Ele deu alguns passos hesitantes, cruzando o limiar e contemplando pela primeira vez o vasto território da Nação Theron.
O que se estendia à sua frente era monumental. Estruturas colossais erguiam-se em cada direção, como se fossem destinadas a desafiar o próprio tempo. Colunas gigantescas adornadas com relevos detalhados representando heróis antigos, batalhas gloriosas e feitos lendários sustentavam passarelas elevadas que pareciam flutuar no ar. A pedra usada na construção tinha um tom dourado sob a luz do sol, mas sua textura era marcada por séculos de história, como se cada rachadura contasse uma história esquecida.
As ruas, pavimentadas com um mosaico de pedras brilhantes, conduziam para o coração da cidade. Guardas marchavam em perfeita sincronia, suas armaduras negras reluzindo com uma luz quase mágica. A organização era impecável, e o movimento das pessoas tinha um ritmo quase mecânico, refletindo a rigidez que governava aquela terra.
Não haviam espaço para o acaso. Cada construção, cada torre, cada praça era planejada com uma precisão fria. Palácios de proporções imponentes dominavam o horizonte, suas torres pontiagudas quase perfurando o céu. As janelas estreitas e vitrais sombrios davam às construções um ar intimidador. Era impossível não sentir a presença do poder autoritário que emanava.
Ainda assim, havia uma beleza exótica e única. Jardins suspensos adornavam os terraços das construções mais grandiosas, suas flores vibrantes contrastando com o tom severo do entorno. Fontes mágicas, cujas águas brilhavam em tons de azul e prateado, eram espalhadas pelas praças principais. O som do fluxo constante era o único alívio no silêncio disciplinado que reinava na cidade.
As pessoas de Arkanfhon eram tão impressionantes quanto sua arquitetura. Usavam vestes elegantes, decoradas com bordados metálicos que pareciam brilhar com magia. Seus semblantes eram sérios, mas havia um brilho de orgulho em seus olhos, como se todos carregassem a responsabilidade de pertencer a algo maior do que eles mesmos.
No centro da cidade, uma enorme arena se destacava, circundada por arquibancadas que poderiam abrigar milhares. Seu design era peculiar como se um triângulo tentasse engolir um círculo, mas com uma aura de mistério, graças às runas que cintilavam nas paredes externas. Era aqui que as grandes demonstrações de força e poder da nação ocorriam, e Ichiro sabia que não tardaria a ver aquilo de perto.
Ele parou por um momento em uma das praças maiores, os olhos subindo pelas escadarias que levavam a um templo monumental. O templo tinha o formato de uma fortaleza, com estátuas de deuses e guardiões que o observavam de cima. Ichiro sentiu a imponência daquele lugar pesar sobre seus ombros, como se até mesmo respirar ali exigisse permissão.
Ao longe, podia ouvir o som abafado de ordens sendo dadas, espadas se chocando e magias sendo conjuradas. Era o coração pulsante de Theron, uma nação que misturava o esplendor das eras passadas com a rigidez de uma ordem autoritária que não deixava brechas para a liberdade.
Apesar da opressão evidente, Ichiro não pôde deixar de admirar aquela visão. Theron era tanto um monumento à grandeza quanto uma advertência ao que a busca por poder absoluto poderia criar.
Com o coração ainda pesado pela imensidão do que via, Ichiro continuou a caminhar, seus pensamentos se embaralhando entre a fascinação e o desconforto. Ele estava dentro da nação mais poderosa da região, e agora precisava encontrar seu lugar naquele mundo que era tão belo quanto implacável.
Ichiro retomou sua caminhada pela grande praça, seus olhos explorando os detalhes que compunham a vastidão de Theron. O peso da grandiosidade ao seu redor fazia com que cada passo parecesse mais lento, como se a cidade em si o estivesse avaliando, medindo sua determinação.
Enquanto avançava em direção à arena, sentiu o olhar frio dos guardas e transeuntes recaindo sobre ele. Não era hostilidade, mas uma curiosidade desconfiada, como se sua presença fosse um desafio à ordem inabalável daquela nação. Ichiro ignorou, mantendo a postura firme e o olhar fixo em seu destino. Ele sabia que precisava se provar digno.
Ao se aproximar da entrada do quartel principal, onde todos os candidatos do teste eram registrados, um velho oficial de uniforme escarlate o interceptou. Seu rosto era marcado por cicatrizes, e o olhar carregava o cansaço de décadas de serviço.
"Você é o recém-chegado de algum vilarejo próximo?" perguntou o oficial, sem rodeios, enquanto analisava Ichiro de cima a baixo.
"Sim, Vibando." respondeu Ichiro, a voz firme apesar da tensão.
O oficial fez uma anotação em uma placa de anotações e depois o encarou novamente. - Bem, garoto, espero que esteja preparado. O Teste acontecerá amanhã no templo de Nerathos. Seguindo ao nordeste, no alto da colina. – Apontando ao longe.
Ichiro assentiu, sentindo o peso de suas palavras. Ele sabia que este era apenas o começo. O teste não era apenas uma avaliação de força física, mas de resistência mental e coragem.
Conduzido até um alojamento simples, Ichiro finalmente encontrou um breve momento de solidão. Deitou-se em um catre estreito, os olhos fixos no teto de pedra. Lá fora, o som contínuo da cidade parecia ecoar em seu peito, sincronizando-se com os batimentos acelerados de seu coração.
Enquanto o cansaço começava a pesar em seus olhos, ele sussurrou para si mesmo:
"Não importa o que venha, estou pronto. Este é o meu caminho."
A noite avançava lentamente, enquanto a cidade de Theron mantinha sua vigília incansável. As ruas desertas murmuravam histórias de tempos antigos, e as sombras das lâmpadas a gás dançavam nas fachadas desgastadas, como se ecoassem a inquietação da madrugada.
Ichiro repousava sob um teto modesto. Não era reconfortante, mas sem dúvidas oferecia mais segurança do que as vastas florestas onde passara tantas noites. Lá, predadores espreitavam entre as árvores retorcidas, e o frio, cruel e impiedoso, misturava-se à aspereza da neve repleta de pedregulhos. Aquilo, ao menos, era uma pausa.
Sabendo que precisava daquele descanso. Seus músculos cansados reclamavam cada passo dado, cada caminhada percorrida. Naquele breve momento de trégua, ele permitiu que o sono o levasse. Um sono pesado, mas, ainda assim, inquieto, como um rio que corre sob a superfície de gelo fino.