Nota do autor: Como autora, aconselho que leiam o prólogo. Ademais, boa leitura!
Capítulo 1 - Nova vida
Lian estava no pós-morte. De novo.
O vazio o devorava como uma prisão sem forma, sem som, sem fim. Era uma vastidão silenciosa que esmagava seus pensamentos, como um peso invisível que tornava impossível qualquer noção de tempo ou espaço.
Ele tentou gritar, mas não havia ar, nem voz, apenas o absoluto silêncio que corroía sua sanidade. Cada instante ali se alongava em uma eternidade sufocante, onde o único vestígio de existência era a sensação de ser... nada.
E então, começou novamente.
Uma força invisível o agarrou, arrastando-o como uma marionete sem controle. Era um redemoinho de energia que queimava sua pele e revirava suas entranhas, como se estivesse sendo despedaçado e reconstruído ao mesmo tempo.
Seu corpo parecia um quebra-cabeça sendo montado e desmontado em um ciclo torturante, onde cada fragmento da sua essência era rasgado e remendado em um loop insano. A dor era do tipo que ultrapassa o físico e consome a alma.
Ele não sabia o que estava acontecendo, mas a sensação de ser tragado por uma força maior era esmagadora. E então, no centro da escuridão, algo começou a surgir.
Uma luz. Não era uma luz comum, mas uma presença, uma energia viva e pulsante. Era como se o próprio tecido do universo estivesse se reconstruindo à sua volta, vibrando em cores e formas que ele mal conseguia compreender.
"De novo? Não... Não, não, não! Tá falando sério que essa merda tá acontecendo de novo?", os pensamentos de Lian borbulhavam, sua mente em frenesi enquanto a luz se aproximava. "Primeiro eu morro e revivo no meio do nada, no meio de uma guerra, e agora tô voltando de novo? Talvez isso seja o inferno? Porra... talvez eu devesse ter acreditado que Deus era real..."
Seu coração, ou o que restava dele, acelerou enquanto era sugado para o brilho no fim do túnel.
"Oh, Satanás, ou seja lá qual entidade esteja no comando disso, me escuta aqui: só não me joga no meio de outra guerra!" A súplica de Lian veio carregada de sarcasmo, mas também de um desespero genuíno, enterrado sob o peso de sua incredulidade.
De repente, a luz o engoliu por completo. A sensação seguinte foi calor, como o abraço de um fogo brando que o envolvia de todos os lados. Logo, sons abafados começaram a romper a escuridão, palavras que chegavam até ele como ecos distantes. Pouco a pouco, as vozes ficaram mais claras, até que percebeu que estava sendo segurado por alguém.
Mãos ásperas e experientes o envolviam com cuidado. Ele abriu os olhos – ou pelo menos achava que sim – e viu o rosto de uma senhora idosa. Sua expressão era séria, e os lábios se moviam em uma língua que Lian não reconhecia. Cada palavra parecia uma melodia estranha, mas cheia de propósito.
A primeira coisa que Lian sentiu de verdade foi o peso. Não o peso de memórias ou responsabilidades, mas o simples e inconfundível peso de estar vivo novamente.
Seu corpo pequeno parecia tão frágil que mal parecia seu. Ele tentou mexer os braços, mas eles eram ridiculamente curtos e finos.
"Ah, não... Não pode ser... Não me diz que..."
Um cheiro forte invadiu suas narinas, uma mistura de sangue, suor e um aroma agridoce que ele não conseguiu identificar. O ar parecia mais denso, mais vivo. Antes que pudesse raciocinar mais, foi interrompido pela voz da senhora.
(Só um adendo, as palavras que Lian não entende, colocarei um **)
*"Você deu sorte, Lia. A criança sobreviveu,"* disse ela, com um misto de alívio e cansaço. *"Diria que é quase um milagre."*
A mãe – a mulher deitada em uma cama de palha ao lado – se inclinou para ver. O suor escorria por seu rosto pálido, mas os olhos brilhavam com uma emoção que beirava o êxtase.
*"Meu bebê... meu bebê está vivo! Oh, Yana, você salvou ele!"* As palavras dela saíam entre soluços.
A velha, que parecia ser chamada Yana, fez um gesto tranquilo com a mão, como quem já havia passado por situações parecidas muitas vezes antes. Ela pousou suas mãos enrugadas sobre o pequeno peito de Lian e recitou:
"Purificatio totalis."
Antes que ele pudesse sequer processar o que estava acontecendo, um brilho quente emanou das palmas da velha. Era diferente de qualquer coisa que ele já havia sentido. Não era apenas calor; era algo vivo, pulsante, como se cada célula de seu corpo fosse tocada e revitalizada. Em um piscar de olhos, ele estava limpo, seco, como se ele nunca estivesse sujo a segundos atrás.
*"Mas ele... ele não está chorando," murmurou a mulher na cama, com uma preocupação crescente em sua voz. "Isso é normal? Nenhuma das minhas outras crianças ficou assim. Todas choraram desde o primeiro segundo."*
*"Hum, não é comum, de fato,"* respondeu Yana, franzindo o cenho. *"Bom, mas como pode ver, a criança está respirando. Vamos confirmar algo. Passe ele aqui novamente."*
A velha pegou Lian de volta em seus braços, seu olhar afiado como o de alguém que já havia visto muito na vida. Ela murmurou novamente algo em sua língua estranha, e então, como um comando, disse em tom firme:
"Manus invisibilis!"
Lian sentiu um beliscão leve, mas preciso, em suas partes mais baixas. O suficiente para provocar um choque imediato.
*"Ei, ei, ei sua velha maluca! Que diabos você tá fazendo comigo?!" Ele quis gritar, mas, ao invés disso, o que saiu foi um conjunto inarticulado de guinchos infantis.
Então uma sensação veio de repente, como uma maré inevitável. Lian sentiu o incômodo crescer, uma pressão que parecia invadir cada parte de seu pequeno corpo. Não havia muito o que fazer, e, no fundo, ele sabia disso. Apenas aceitou o inevitável.
Em um instante, uma onda de excrementos e urina foi liberada com precisão cirúrgica sobre o vestido impecável da velha.
Yana parou por um momento, o olhar fixo na confusão recém-instalada. Primeiro veio a surpresa, uma sobrancelha arqueada em total incredulidade.
*"Hah! Eu realmente mereço... Um bebê que não chora, mas faz isso com tamanha pontualidade."*
Depois, o desgosto fez sua entrada triunfal, acompanhado de um suspiro longo e profundo.
*"É isso. Estou velha demais para esse tipo de serviço. Não me pagam o suficiente para lidar com esse tipo de coisa."*
Com movimentos precisos e uma expressão que oscilava entre o cansaço e a resignação, Yana limpou o vestido com o mesmo feitiço que limpou Lian. Em seguida, o devolveu à mãe com a mesma delicadeza com que se livrava de um problema que não era mais seu
*"Achou pouco, né, velha maldita? Belisca meu fiofó de novo pra você ver o que acontece com esse rostinho todo cheio de ruga,"* pensou Lian, com uma carinha maliciosa escondida atrás de seu rostinho de recém-nascido.
*"Aqui está, Lia. Pegue seu pequeno milagre e cuide dele você mesma. Para alguém que quase cruzou o véu da morte, ele está cheio de energia – e de personalidade, pelo visto."*
A mãe de Lian recebeu-o de volta com cuidado, um sorriso cansado mas amoroso no rosto, enquanto olhava para o pequeno ser em seus braços. Lian, por outro lado, apenas deixou a cabeça cair para o lado.
*"Christian, Christian Raymond, será seu nome,"* disse a mulher de voz doce e olhar cansado, mas cheio de ternura. Seu rosto estava iluminado pela pequena lamparina no canto do quarto, a única fonte de luz na penumbra acolhedora. Naquele momento, Lian percebeu que ela era sua nova mãe, e, por mais estranho que fosse, havia algo genuinamente reconfortante em sua presença.
Enquanto ela falava, Lian notou que não estavam sozinhos. Além dela e da velha parteira que estava de saída, havia um homem corpulento com traços rudes, mas um olhar emocionado, parado ao lado da cama.
Uma criança, aparentemente com oito anos, olhava para ele com curiosidade evidente, enquanto outra menina, mais velha, por volta dos treze, separava os panos ensanguentados do parto, dobrando-os com cuidado para serem lavados.
"O homem deve ser o pai... e aquelas duas, provavelmente irmãs. Que alegria..." Lian pensou, com um toque de sarcasmo misturado à resignação. Ele lançou mais um olhar para o grupo, tentando processar a cena enquanto sua mente ainda lutava para se acostumar à ideia de sua nova existência. Mas não teve muito tempo para refletir; sua atenção foi atraída de volta para Yana, a parteira, que parecia estar finalizando sua tarefa.
"Bom, meu serviço aqui está concluído," disse Yana, limpando as mãos com um pano. "Passar bem, Lia. Se precisar de algo, é só me chamar. Tenha uma ótima recuperação." Sua voz era firme, mas cansada, enquanto ela caminhava até a porta de madeira simples e saiu com passos medidos, desaparecendo na escuridão da noite.
"Bom, ao menos a velha mostrou algo útil nesse lugar," pensou, com uma ponta de curiosidade despertando em sua mente. " Magia... Então, esse mundo realmente tem magia."
O homem se aproximou, inclinando-se para olhar o bebê mais de perto. Seu sorriso era largo e sincero.
"Que susto esse rapaz nos deu, hein?" disse ele, acariciando o rostinho delicado de Lian com dedos calejados, mas gentis. "Olha só pra ele, é a minha cara! Quando seus irmãos voltarem da caçada, vão ficar surpresos. Mais um pequeno para a nossa família."
"Ahh, alguém me mata de novo! Sai fora, cara!" Lian pensou, incomodado pelas carícias do homem. Ele tentou mover os braços para afastar a mão, mas seus movimentos eram desajeitados e descoordenados, como se seu corpo recém-nascido zombasse de sua frustração.
A garotinha de oito anos se aproximou, os olhos brilhando de excitação.
"Mamãe! Eu posso segurar ele? Por favor!"
A mulher riu suavemente, balançando a cabeça. "Ele ainda é muito pequeno, querida. É tão delicado quanto uma florzinha recém-brotada."
A menina fez um beicinho de frustração, mas logo voltou a observar o bebê com curiosidade, como se tentasse entender quem era aquele pequeno ser que agora fazia parte de sua família.
Lian, por sua vez, sentiu algo que nunca havia experimentado em suas vidas passadas. Enquanto estava aconchegado nos braços de sua nova mãe, um calor acolhedor o envolveu. Não era apenas o calor físico – era algo mais profundo, algo que tocava sua alma. "Então esse é o poder do amor materno... É tão confortante," pensou ele, quase sem querer, enquanto seus olhos começavam a pesar.
Antes de cair no sono, Lian observou os arredores com um olhar analítico. O quarto era pequeno e humilde, com paredes de madeira desgastada e um chão de terra batida. A cama de palha onde sua mãe repousava era coberta com um tecido simples, mas limpo. Não havia nenhuma fiação ou sinal de tecnologia – apenas a lamparina no canto, que emitia uma luz cálida e surpreendentemente forte para algo tão rudimentar.
"Definitivamente medieval," concluiu Lian, antes de sucumbir ao sono inevitável. Seu corpo recém-nascido parecia funcionar como um relógio de hibernação, algo que ele não podia controlar, mas que, pelo menos naquele momento, era bem-vindo.