Sekire despertou com esforço, como quem emerge de um pesadelo denso demais para se dissipar. As pálpebras se abriram lentamente, revelando a luz tremulante de uma fogueira que a cegou por um instante. Por um breve momento, ela acreditou estar de volta ao vilarejo gélido, aquele inferno de gelo e desespero. Mas o calor reconfortante do fogo e o estalo hipnótico da madeira em combustão arrancaram-na dessa ilusão. Tentou mexer os braços, depois as pernas, mas percebeu que estavam firmemente atados. O peso da impotência a envolveu como um manto frio, mas foi rapidamente rompido por uma voz firme, calculada, como o estalo de um chicote na quietude.
— Finalmente. Achei que não fosse acordar.
Com esforço, Sekire virou o rosto em direção à voz. Do outro lado da fogueira, uma figura masculina emergia das sombras como uma extensão do próprio breu. Alto, envolto em mantos negros que pareciam engolir a luz do fogo, ele era uma presença espectral. O rosto pálido, de traços austeros, contrastava com os olhos que brilhavam como punhais, analisando-a com uma precisão quase cirúrgica. Apesar da calma, havia algo na forma como ele segurava uma faca, talhando madeira, que sugeria uma ameaça latente.
— Onde... onde estou? — balbuciou Sekire, a voz rouca e hesitante.
O homem ergueu o olhar, mas permaneceu em silêncio. Terminou de esculpir o que parecia uma ponta de flecha antes de responder, como se a prioridade fosse o objeto em suas mãos, e não a vida dela.
— Em um lugar onde sua sorte pode acabar a qualquer momento. — Ele pausou, observando-a com um interesse quase clínico. — Agora fale. Quem é você?
A garganta de Sekire estava seca, cada palavra era uma batalha contra o vazio. Ainda assim, ela reuniu a pouca coragem que restava.
— Meu nome... é Sekire. Eu sou... — hesitou. Que verdade poderia oferecer? — Eu sou do vilarejo ao norte.
O homem ergueu uma sobrancelha, mas seu semblante permaneceu imóvel, como uma máscara de gelo.
— O vilarejo ao norte — repetiu, o tom carregado de uma curiosidade afiada. — Está vazio. Todos mortos. E, no entanto, aqui está você. Viva. Amarrada. E com o olhar de quem viu algo que não devia.
As palavras dele cravaram-se em Sekire, trazendo à tona lembranças que ela desejava enterrar. Antes que pudesse formular uma resposta, ele a interrompeu.
— Conte-me. Como sobreviveu?
Ela respirou fundo, lutando para controlar o pânico que a consumia. A tranquilidade dele era pior que uma lâmina, tão cortante quanto o julgamento oculto em seus olhos.
— Foi um demônio... — começou, a voz mal ultrapassando um sussurro. — Ele surgiu do nada, massacrou todos. Eu... consegui fugir antes que me encontrasse.
O homem inclinou levemente a cabeça, como um predador curioso. Então, soltou um riso seco, desprovido de qualquer humor.
— Demônio? — Ele sacudiu a cabeça, zombeteiro. — Histórias para crianças. Demônios são apenas nomes que os fracos dão ao que não compreendem.
Sekire calou-se, seus olhos perdidos no brilho da fogueira. Ele não acreditava nela, isso era claro, mas parecia disposto a deixar o assunto morrer. O silêncio que se seguiu era denso, pesado como as nuvens de neve lá fora.
Quando ele falou novamente, sua voz era uma lâmina fina.
— Por que estava vagando na neve?
— Eu... — ela procurava as palavras, como quem tateia no escuro. — Não sabia para onde ir. Só queria fugir.
O homem soltou um suspiro, mais reflexivo do que impaciente.
— E ainda assim não morreu. Estranho.
Ele se levantou, e Sekire recuou instintivamente. Apesar das vestes pesadas, seus movimentos eram ágeis, como os de um lobo deslizando pelo gelo. Ele apanhou um pedaço de carne próximo à fogueira e o jogou para ela.
— Coma.
Ela hesitou, mas sua fome era maior que o medo. Tentou comer, mas as mãos amarradas tornavam o gesto quase impossível. Ele observou sua luta com um olhar que mesclava curiosidade e desprezo.
— Vida no vilarejo deve ter sido dura. — O tom era distante, mas com um traço de interesse genuíno. — Isso explica sua resistência. Poucos sobreviveriam tanto tempo na neve.
— Era horrível — murmurou Sekire, mais para si mesma do que para ele. — Não importava o quanto você tentasse. Nunca era suficiente.
— E você acha que o mundo te deve algo por isso? — A pergunta dele cortou o ar, gelada como a neve lá fora.
Sekire ergueu os olhos, surpresa pela dureza das palavras.
— Eu... só queria algo melhor. Algo que não fosse tão miserável.
O homem a estudou por um momento antes de responder, sua voz carregada de um desprezo quase filosófico.
— O mundo não oferece "melhor". Ele dá o que você toma. Nada mais. Se acha que o sofrimento acabou, está enganada. Ele está apenas começando.
As palavras dele eram como pedras lançadas em um lago, cada uma reverberando na mente de Sekire. Ela fechou os olhos, tentando encontrar no calor da fogueira algum consolo para a frieza que parecia consumir sua alma.
O silêncio dentro da caverna se estendeu por mais tempo do que Sekire teria esperado. O calor da fogueira ainda pulsava ao seu lado, mas seu corpo estava gelado pela frustração, medo e cansaço. Quando Feitan finalmente falou, sua voz cortou o ar como lâmina afiada, sem misericórdia, sem emoção.
— Eu vou te dar uma última chance, criança. — Ele se aproximou um passo, os olhos sombrios fixados nela. — Responda com sinceridade, ou vou considerar você uma ameaça a ser eliminada.
Sekire engoliu em seco. Ela sabia que o homem diante dela não estava brincando. Ele era calculista, direto e perigoso.
— Eu... eu... — Ela hesitou, os olhos desviando para o chão, tentando organizar seus pensamentos. — Eu sou a única sobrevivente... da minha aldeia. Um monstro... ele destruiu todos...
Feitan a observou sem dar qualquer sinal de dúvida. Ele não parecia surpreso com a história dela. Afinal, ele já havia visto coisas semelhantes antes. Mas ainda assim, sentia que havia algo a mais naquela história.
— Um monstro, é? — Sua voz era fria, cortante. — Então você está dizendo que foi um monstro, e não um general de algum reino ou qualquer outra força humana que destruiu a sua aldeia?
Sekire se encolheu ao ouvir a pergunta. O homem não parecia acreditar nela, mas ao mesmo tempo, ele não a desafiava diretamente. Ele apenas... esperava.
— Sim... um monstro. Eu vi os olhos dele, e ele... ele me atacou. Mas eu... consegui escapar.
Feitan a encarou em silêncio por um longo momento. A expressão em seu rosto nunca mudou. Ele não acreditava nela, mas também não parecia interessado em confrontar uma criança sobre fantasias.
— Você é uma criança — disse ele, com uma leveza quase imperceptível. — E como toda criança, imagina coisas. Se você quer viver, vai precisar ser mais forte do que isso.
Sekire mordeu os lábios, tentando esconder a dor em suas palavras. Ele estava certo, mas ela não sabia o que mais poderia dizer. Ela não tinha como provar nada, e isso fazia com que sua mente ficasse ainda mais turva.
Feitan se afastou um passo, observando a jovem com um olhar calculista, mas indiferente. Ele fez um gesto como se já tivesse perdido o interesse e, sem olhar para trás, começou a caminhar em direção à saída da caverna.
— Vá embora então, pequena. Como eu disse, sua vida não me interessa. Sobreviva, se conseguir. — Ele parou por um momento, e sua voz soou quase impessoal. — Mas saiba que o mundo não vai ser gentil com você. Você não é nada. Uma plebeia, sozinha no gelo. Não há futuro para pessoas como você.
Sekire olhou para ele, as palavras que acabara de ouvir ecoando em sua mente. O vazio que ele sugeria parecia impossível de preencher. Ela se sentia tão pequena. Ela se sentia sem propósito. Sem ninguém.
— Por favor... — Sua voz falhou, os olhos marejados de lágrimas. — Eu não quero viver assim. Me leve para algum lugar... onde eu possa ter uma chance. Eu só... eu só quero viver.
Feitan parou novamente, sem virar o rosto. Ele não se virou, mas sua expressão era clara. Era como se ele já tivesse visto muitas dessas súplicas antes. O tom com que falou não mudou, mas suas palavras cortaram como um punhal.
— Sua vida não vale nada. Nenhum lugar vai te acolher. E mesmo que te acolham, você será usada. Vai virar uma prostituta de nobre, ou uma servente que não vale mais que um saco de batatas. Não há redenção para você, criança. Não há para ninguém como você.
As palavras dele causaram um choque em Sekire. Cada uma delas se cravou mais fundo, fazendo com que ela se sentisse ainda mais inútil. Era como se ele tivesse dado voz ao seu maior medo, o de ser nada. De não ter valor.
Ela não podia aceitar isso. Não queria. A dor de ouvir a verdade brutal a fez agir. Sem pensar, ela se levantou e correu até ele, suas mãos agarrando a capa de Feitan com toda a força que ainda possuía.
— Por favor, eu... eu imploro! Não me deixe aqui! Me leve para longe daqui, para qualquer lugar! Eu não... não quero morrer aqui!
Feitan olhou para as mãos dela que ainda apertavam sua capa. Seu olhar frio não mudou, mas a paciência dele se esgotou. Com um simp
les movimento, ele a afastou com um empurrão brutal. Sekire foi lançada para trás, caindo com um baque no chão gelado da caverna. A dor que sentiu fez seu corpo estremecer, mas ela não se importou. Ela queria mais. Ela queria lutar.
Feitan olhou para ela, seus olhos se estreitando, e as palavras que saíram de sua boca foram uma ameaça simples, mas mortal:
— Não me toque novamente. Se insistir, vou acabar com você aqui mesmo.
Sekire não se importou. Ela se levantou, o rosto sujo de terra e lágrimas. Seus punhos estavam cerrados, e algo em seu interior queimava com uma determinação desesperada.
— Eu vou lutar! — gritou, avançando em direção a Feitan com tudo o que tinha.
Feitan observou a garota se aproximando com um olhar desinteressado. Ela era apenas uma criança, fraca, descontrolada. Mas havia algo na intensidade de sua expressão que despertou, por um breve momento, um leve interesse. Era mais do que desespero. Era uma chama interior, ainda que frágil.
Sekire desferiu uma sequência desajeitada de golpes, que Feitan desviou com facilidade. Ela avançava de forma desorganizada, motivada pela adrenalina e pela raiva, mas ele permaneceu inabalável, bloqueando e desviando cada movimento com precisão assustadora.
Com um golpe rápido e calculado, Feitan acertou o pescoço de Sekire, fazendo-a desmaiar.
— Você tem potencial. Mas sem controle... nada disso importa.
Ele a pegou nos braços, saindo da caverna. O destino dela não era revelado al.