Ao voltar para dentro de casa, algo ainda me incomodava. Por que aquele abraço? Por que a Senhora Vyresska estava chorando quando nada havia acontecido? E, ainda mais, por que ela me agradeceu? Enquanto caminhava em direção ao meu quarto, ponderando respostas para essas perguntas, minha mãe me parou e perguntou o que havia achado do dia, já que estava extremamente ansioso para o encontro no dia anterior.
- "E então, filho... Gostou do dia de hoje?" ela perguntou, sorrindo.
- "Sim, mãe, foi muito bom... Mas tem algo que eu não consigo entender. Por que a Senhorita Vyresska me abraçou? Por que ela estava chorando? E por que me agradeceu?" perguntei.
- "Hmm... Não tenho certeza exatamente, mas ela ficou emocionada assim depois de ver Scilia sorrindo para você. Naquele momento, percebi o espanto em seu rosto enquanto os olhos dela se enchiam de lágrimas..." ela respondeu.
Naquele instante, foi como se uma lâmpada acendesse, e eu automaticamente entendi o motivo de tudo aquilo. Lembrei-me da nossa conversa na padaria no dia anterior e de como não ver Scilia feliz era um fardo pesado para Vyresska. Ao ver Scilia feliz, tudo o que Vyresska havia feito até aquele momento tinha valido a pena, mesmo que aquele sorriso não fosse direcionado a ela. Pensar nisso me fez sentir feliz e ainda mais determinado a proporcionar mais momentos felizes para Scilia, porque isso não significava muito apenas para mim, mas também para a Senhorita Vyresska.
Dias se passaram, depois meses, e, nesse tempo, Scilia vinha à minha casa sempre que tinha oportunidade. Com o tempo que passamos juntos, ela começou a se abrir mais, a sorrir mais, embora ainda fosse bastante tímida, e a falar de forma muito mais calma comigo. Tornamo-nos grandes amigos. Sempre que nos víamos, mesmo quando não estávamos na minha casa, conversávamos e ríamos sobre tudo o que líamos e praticávamos.
Na última vez que nos encontramos na minha casa, lembro-me de ter dado a Scilia um dos livros da minha coleção como um sinal de quanto eu valorizava sua amizade e o tempo que passamos juntos. O livro que decidi dar a ela não era outro, senão, o primeiro que recebi quando ainda era bebê. Esse livro continha a maioria dos animais que habitam nosso mundo, desde os mais comuns até os mais fantásticos. Sempre foi o mais precioso da minha coleção, porque foi com ele que comecei a me interessar pela leitura e pelos incríveis animais que habitam nosso mundo. Dar esse livro a alguém era um sinal de quanto eu me importava com aquela pessoa. Nunca fui alguém que confiasse ou se apegasse facilmente às pessoas, mas com Scilia e Vyresska era diferente. Eu me sentia bem ao lado delas. Sentia-me feliz e podia ter grandes e saudáveis conversas com ambas.
Quando entreguei o livro à Scilia, na saída da minha casa, e disse a ela o quanto ela e Vyresska eram importantes para mim, Scilia tentou de todas as formas possíveis recusar o presente. Durante o tempo que passamos juntos, ela muitas vezes me ouviu falar sobre o livro com grande apreço e sabia o quanto ele significava para mim. Mas, como sou ainda mais teimoso que ela jamais será, deixei claro que recusar era inútil — o livro já era dela.
- "Scilia... Antes de você ir, desta vez, quero te dar algo," eu disse, mostrando a capa vermelha com padrões dourados e figuras de vários animais fantásticos contornadas em preto.
- "D-Dravyn, o quê?? Não, eu não posso aceitar este livro... É seu, e eu sei o quanto ele é importante para você. Por que está me dando ele?" ela perguntou, surpresa.
- "Veja bem, Scilia... Durante todo esse tempo que passamos juntos — eu, você e a Senhora Vyresska — percebi o quanto considero vocês duas pessoas especiais para mim. Além de vocês, apenas meus pais estão nessa lista, haha. Fora eles e vocês duas, mais ninguém. Estou te dando este livro porque confio que você vai cuidar bem dele. É um dos meus pertences mais preciosos e, como tal, só o darei a pessoas que considero igualmente importantes, mas que nem sempre podem estar ao meu lado. Não sei o que o amanhã trará, Scilia, então quero que você guarde este livro como um símbolo da nossa amizade. Mesmo que eu não esteja aqui amanhã, quero que você olhe para este livro e lembre-se do quanto você é especial para mim, e espero que isso te ajude a seguir em frente," eu disse, sorrindo, sem perceber o quanto minhas palavras haviam emocionado minha mãe e a Senhora Vyresska, que estavam próximas, esperando que terminássemos nossa conversa.
- "D-Dravyn... E-eu..." Scilia começou a falar, com a voz trêmula, mas eu a interrompi.
- "Ah, e nem pense em recusar; ele já é seu," acrescentei, rindo.
Visivelmente emocionada, Scilia pegou o livro com cuidado e, em um movimento rápido, me deu um grande abraço. Naquele momento, tudo parou. Os insetos que cantavam na vegetação silenciaram, o som do vento balançando as árvores cessou, e nada mais importava. Aquele abraço me trouxe a um estado em que nunca havia estado antes, mas que sentia toda vez que via aquela garota de capuz — toda vez que via Scilia — mas que, até então, eu não entendia. O que era aquele sentimento, afinal? Estava doente? Algo estava errado comigo? Não. Naquele momento específico, infinitesimal, percebi finalmente que havia me apaixonado por Scilia. E não era uma paixão simples — era algo extremamente intenso, mas profundamente puro.
Scilia então me agradeceu pelo livro, prometendo cuidar muito bem dele, e, com o rosto corado, correu de volta para Vyresska, que me olhava com um sorriso suspeito. Eu, porém, estava tão vermelho quanto Scilia e não consegui nem mesmo me despedir delas. A única coisa que consegui murmurar foi "Até logo...", o que entraria para a minha história pessoal como uma das "Grandes Vergonhas de Dravyn." pois horas depois, quando meu pai voltou do trabalho e ouviu tudo pela minha mãe, começou a rir e a me provocar, mas essa é uma história para outro dia.
Um dia depois
Um dia depois dos acontecimentos com Scilia, o silêncio que rodeava sua ausência e a da Sra. Vyresska era quase ensurdecedor. Nem uma notícia delas havia chegado, e, como se isso não bastasse, a padaria permanecia fechada, o que sugeria que talvez tivessem partido em uma viagem. Entretanto, isso não significava que tinham ido para sempre. Enquanto isso, o vilarejo — que mais parecia uma pequena cidade agora — fervilhava de rumores sobre os avanços de Falthur no norte. Os exércitos do reino de Cedrus recuavam devido à escassez de soldados, e Falthur, em uma façanha sem precedentes, aproximava-se perigosamente do coração de Cedrus — onde estávamos.
A esperança de muitos era que Falthur tivesse conquistado terras o suficiente, quase dobrando seu território, e que isso seria razão suficiente para encerrar a guerra. Contudo, subestimaram a ganância e a malícia humanas, e entre essas pessoas estavam meus próprios pais, para minha surpresa.
- "Mãe, pai, vocês ouviram o que estão dizendo sobre a guerra?" perguntei, inquieto.
- "Acho que deveríamos começar a nos preparar para o que pode vir ou até tentar fugir. Talvez ainda haja tempo…" completei, sentindo uma ansiedade crescente.
- "Não acho que eles chegarão até aqui. Já ganharam terras o bastante. O que mais ganhariam tomando este vilarejo? Não há muito aqui. Além disso, não temos soldados, o que torna qualquer negociação com eles bem mais fácil, caso venham. Honestamente, eu nem me importaria em ser anexado por eles. Talvez o reino de Falthur seja melhor do que Cedrus, que só abriga nobres corruptos e gananciosos," disse meu pai, com a calma habitual, enquanto tomava um gole de sua caneca de cerveja e mordia um grande pedaço de carne de Kaorthernung.
- "Hmm… Concordo com seu pai, filho. Mesmo que tentássemos fugir, eles nos alcançariam. Fugir só faria com que pensassem que somos nobres escondidos aqui," minha mãe disse, concluindo o raciocínio.
Confiei no julgamento deles, mesmo com a inquietação que me consumia por dentro. No fim, decidi ignorar meus temores. Mas naquela noite, mesmo me esforçando, o sono não veio. E, quando finalmente cedi ao cansaço, acreditei, ingenuamente, que o próximo dia seria como todos os outros. Contudo, ao amanhecer, me vi deixando um sonho e entrando em um pesadelo que parecia não ter fim.
A manhã estava coberta por nuvens densas, sem nenhum raio de sol. Um repentino dilúvio de flechas varreu o vilarejo, atingindo muitos que já estavam do lado de fora. Meus pais, ainda na mesa de café, foram alertados pelo som ensurdecedor e pelos gritos de desespero lá fora. Meu pai se levantou de imediato, pegou seu machado robusto e pediu que minha mãe me levasse para o porão, e ficassemos lá até que ele voltasse com informações sobre o que estava acontecendo. Fizemos exatamente isso.
Nosso porão era bem escondido, projetado para momentos como aquele — que até então pertenciam apenas às nossas imaginações.
As horas começaram a passar, e, junto com elas, os sons cada vez maiores de cavalos galopando e relinchando. De repente, ouvimos passos de pessoas que pareciam descer de seus cavalos. Eles abriram a porta da nossa casa e começaram a vasculhar toda a parte de cima, provavelmente em busca de coisas de valor ou pessoas escondidas, enquanto conversavam e riam:
- "Ha, bando de otários! Eles achavam mesmo que poderiam negociar com a gente, hahaha…" disse um dos cavaleiros.
- "Pois é, hahaha. Mas eu não acharia ruim negociar com uma bela moça, caso a encontrássemos," outro cavaleiro comentou, rindo. De repente, passos mais pesados se aproximaram da porta. Alguém a abriu, e os cavaleiros ficaram em silêncio até que uma voz rouca e macabra perguntou se haviam terminado o que deveriam fazer. Dessa vez, com um tom mais respeitoso, eles responderam:
- "Vocês terminaram o que deveriam fazer?" a voz perguntou, em um tom macabro.
- "Sim, senhor! Não encontramos nenhum sinal de pessoas na casa," disseram os soldados.
- "Vocês conferiram tudo? Até o porão?" a voz retrucou.
- "Senhor, esta casa não tem porão. É muito pequena," respondeu um dos soldados.
- "Idiota. Você conferiu para ter certeza?"
Naquele momento, um arrepio subiu pela minha espinha. Olhei para minha mãe e vi sua expressão de pânico, enquanto os sons de passos se aproximavam cada vez mais da entrada do porão. Ela parecia paralisada. Porém, naquele momento, não podíamos nos dar ao luxo de ficar imóveis. Cochichei para que ela me seguisse até a saída secreta que dava para fora da casa, diretamente para a floresta. Comecei a empurrar a porta escondida, mas ela estava emperrada devido ao tempo sem uso. Minha mãe tentou ajudar, mas, nesse momento, ouvimos um dos soldados dizer:
- "Olha só, não é que há mesmo um porão?"
Naquele momento, várias imagens horríveis passaram pela minha cabeça. Imagens de tudo que poderia acontecer comigo e, pior ainda, com minha mãe, se fôssemos descobertos. Então, como se uma força surpreendente surgisse em mim, empurrei a porta lentamente até que ela cedeu com um grande estrondo. Puxei minha mãe para fora, mas o barulho do estrondo que a porta havia feito ao ser aberta, chamou a atenção dos soldados, que ouviram e começaram a nos perseguir.
- "Mãe, CORRE E NÃO PARA!" eu disse, segurando sua mão.
- "SÓ PARA QUANDO ESTIVERMOS NO RIO, ENTENDEU? ATÉ LÁ, NÃO PARA!"
A floresta para a qual o porão de nossa casa estava virado, era na beira de uma colina, e ao pé dessa colina corria um rio que, diziam, terminava apenas quando chegava ao mar, com um grande percurso. Nós descemos a colina em direção ao rio, enquanto flechas voavam ao nosso redor e os gritos dos soldados ficavam mais próximos. Em um certo ponto, já cansados de tanto correr, não vimos que havia um tronco caído no caminho, assim, tropeçamos e rolamos até o pé da colina. Lá em baixo, estávamos muito machucados e cansados, porém, nós não podíamos parar, pois o rio estava à nossa frente, mais alguns passos e iríamos escapar, mas, os passos e gritos dos soldados estavam também cada vez mais próximos, fazendo me perguntar se conseguiríamos sobreviver àquilo. Eu já não conseguia me levantar, independente do esforço que fizesse, e minha mãe também estava mal, seria aquele nosso fim ?, eu me perguntava. De repente, minha mãe, que estava, talvez, até mais machucada que eu, e sem condições de andar, se levantou, me pegou em seus braços, e usando a força que ainda restava caminhou vagarosamente até a beira do rio, entrou um pouco, beijou minha testa e disse, com dificuldade:
- "... Argh.. huff…huff…huff.. F-filho, me desculpa por tudo isso… cough..cough… Isso é culpa minha, s-se não fosse por mim, talvez n-nada disso… cough .. cough… t-tivesse acontecido ..huff… huff … Mas v-você vai sobreviver, eu n-não vou ter ver morrer aqui" Ela disse enquanto suas lágrimas se misturavam com o sangue que escorria de sua cabeça
Naquele momento eu não conseguia falar nada, fossem pelos machucados, fosse por tudo aquilo, a única coisa que pude fazer naquele momento, foi me deixar ser levado pela água, enquanto minha visão escurecia e eu observava minha mãe, cada vez mais longe, que também me observava descer calmamente pelo rio, até o momento que uma flecha atravessou sua cabeça e ela também caiu dentro do rio. Depois disso, tudo escureceu, e eu torcia que fosse para sempre, pois independente do fato de eu acordar ou não, eu já havia morrido no momento que não pude salvar minha mãe, ou meu pai. E como nem tudo aquilo que queremos é o que acontece, de repente eu acordei, na beira do rio, em um lugar cercado por árvores e criaturas estranhas…