Chereads / Corvos Ravens / Chapter 6 - Capítulo 6

Chapter 6 - Capítulo 6

— Banho quente realmente é a única coisa boa em ser um Corvo – disse Gabriel para si mesmo. 

Ele deixou a água quente bater nos hematomas aliviando um pouco as dores, pegou a toalha que compartilhava com Naomi e se enxugou rapidamente. Deixando o banheiro, apanhou suas roupas que havia deixado sobre a cama e em menos de um minuto estava pronto. Abaixou-se com alguma dificuldade e pegou os equipamentos debaixo da cama, igual a parceira havia feito mais cedo. Prendeu uma faca na coxa direita e o resto segurou no colo, de mau jeito. A katana não ajudava muito. Por fim, quando conseguiu organizá-los de um modo que não caíssem, saiu do quarto atravessando o corredor rapidamente. 

Não sabia como a madeira nunca quebrara sob o peso de alguém, mas não queria ser o primeiro, então acelerou o passo. Passando pelas portas todas fechadas, atingiu a escada, sem nenhum problema. Desceu de dois em dois degraus chegando, por fim, no salão quase vazio. Alguns Corvos conversavam pelos cantos e poucos comiam nas mesas. Naquele momento, Gabriel soube que estava com fome, e pegando um leve desvio do seu objetivo, colocou a cabeça na entrada da cozinha. 

— Vicente! 

O cozinheiro levantou a cabeça da panela em que mexia com uma longa colher de madeira. 

— Como está? – indagou Vicente. 

— Meio moído. Mas então, o que tem pra hoje? 

— Lentilha. 

Gabriel sentiu uma onda de desânimo acertá-lo por um momento. Não deixou transparecer, mas agora entendia o desânimo dos que estavam sentados comendo. 

— Vai querer? 

— Daqui a pouco – respondeu de má vontade. – Preciso falar com Will primeiro. 

— Boa sorte então, ele está num dia daqueles. 

— Quando não?! 

— Pois é! – respondeu Vicente voltando sua atenção para a panela. – Vou deixar um pouco separado para você 

— Obrigado! 

Ele deixou o cozinheiro e se dirigiu ao aposento de Will, mas antes, deu uma espiada no campo de treino, já que deixaram a porta aberta. Alguns membros faziam musculação enquanto outros praticavam lançamento de facas nos pequenos alvos pregados às paredes. Com um esticar de pescoço foi possível ver mais ao fundo. Outros dois praticavam uma luta dentro de um círculo pintado ao chão e usavam facas de madeira enquanto golpeavam um ao outro. 

Gabriel pretendia ir lá praticar tiro ao alvo, mas conhecia Naomi o suficiente para saber o quanto escutaria por não ter feito o que ela falou. Tirando a ideia de sua mente, o Corvo entrou no aposento de Will, sendo recebido por um bafo quente de fogo no rosto no mesmo momento. 

O aposento era no mínimo curioso, Gabriel sempre pensou. Em um dos lados, material de forja, objetos de todos os tamanhos para amolar, junto de um fogão a lenha e um barril cheio de água. Havia alguns sacos com pedaços de armas e ferro, e no canto perto da porta de entrada, outro barril, mas com pólvora. Tirando a parte mais rústica, do lado esquerdo, o teto fora retirado e inúmeros vasos com plantas se encontravam colocados nos muros e plantados no chão, junto de uma variedade supercolorida de cogumelos. No fundo do jardim, havia uma pequena cabana onde Susan esmagava freneticamente algo em seu pilão de mão. 

Susan era uma senhora alta e muito magra, tinha seus longos cabelos brancos presos em um rabo de cavalo, e não percebeu a entrada do rapaz no aposento. Já Will o vira de cara. 

— Realmente, vaso ruim não quebra, hein? – resmungou o velho. 

Gabriel, por fim, viu o Corvo por trás de seu balcão amolando uma faca. O rapaz não conseguiu esconder o sorriso ao ver os olhos severos do outro. Conhecia Will desde que era aprendiz e se lembrava dele sendo velho desde sempre. Diferente de Susan, Will era baixo e careca, mas tinha um bigode que não raspava de maneira alguma e era extremamente musculoso pela vida que levava. 

— Como vai, Will? Sentiu minha falta que eu sei! 

— Fiquei sabendo que levou praticamente uma pedrada no peito, de tão roxo que está. 

— Se preocupou, não é mesmo? 

— Eu ri. 

— Todo mundo sabe que você não é capaz disso. – Vendo o velho fechar a cara, Gabriel se aproximou colocando as armas e facas no balcão, recebendo um olhar fuzilante. – Vou deixar as armas aqui e já vou indo. 

Antes que Gabriel conseguisse sair, a mão do homem apertou forte o ombro dele, fazendo o rapaz se virar na mesma hora. 

— Vamos ver o estrago desta vez, e você trate de ficar parado aí. 

Sem muita opção, o rapaz obedeceu. Will começou com o equipamento de Naomi, tirando da bainha de couro a longa lâmina da katana. Deslizou o dedo de leve, levantou-a em direção ao céu, olhando o estado da arma por todos os ângulos, e quando se deu por satisfeito, foi para a faca curta, repetindo o mesmo processo. Logo em seguida, foi às lâminas de arremesso. 

— Muito bom – disse Will. – Só um pouco sem corte, o que é esperado, mas muito limpas e em ótimo estado. Agora é a vez das suas. 

Gabriel sorriu de forma inocente, mas foi ignorado. Desta vez, Will começou pela arma principal do rapaz, sua espada curta, que era uma faca com quarenta e cinco centímetros. 

Will tirou a arma da bainha e no mesmo momento fez uma cara de cansaço. Esfregou o dedão com força contra o ferro para demonstrar que não tinha nada de corte. 

— Você bateu contra uma pedra por acaso? 

— De certa forma – respondeu Gabriel lembrando da pele dura do urso. 

— Além de que claramente pegou água e tem um pouco de sangue seco. 

Deixando a lâmina de qualquer jeito, foi para a faca, e novamente a irritação voltou. Estava com o aço muito gasto e com um pouco de sujeira de gordura, que ficou quando a guardou na bainha. Por fim, chegou às facas de arremesso. 

— Está faltando uma. 

— Perdi. 

— Você quer me matar de trabalhar?!! 

Terminou olhando a Magnum modificada e sua feição se suavizou. Olhou o cano, a empunhadura, o barril e viu que faltava uma bala. 

— A arma, como sempre, está bem cuidada. 

Um presente daqueles era o tesouro de Gabriel, um presente de seu mestre. 

— Você sabe que as balas são feitas uma por uma, certo? – indagou Will. – Tente usar com moderação. 

— Will, Will! Sei que você gosta de fazê-las pra mim! 

Antes que o velho estourasse novamente, Susan apareceu de supetão levantando a camisa de Gabriel, que por sua vez levou um susto. A velha apalpou sem piedade o peito e as costelas do rapaz, procurando por fraturas. 

Gabriel segurou os sons de dor, afinal, viu Will olhando com uma satisfação mórbida para seus machucados. Assim que ficou satisfeita, Susan abaixou a camisa dele. 

— Realmente nada quebrado. Com sorte como sempre. 

— Podia ter me avisado antes de levantar minha roupa. – Mas viu que foi completamente ignorado pela curandeira, que ia em direção a seu pilão. – Susan, eu trouxe as bolsas de veneno e remédios para você encher. 

Com movimentos rápidos, ela retirou tudo o que havia dentro de ambas e analisou. 

— Gostaram do veneno de Víbora Marrom? 

— Não muito, é meio lento. Em uma situação rápida, é meio inútil. 

Susan somente concordava sem dizer nada. Assim que Gabriel falou tudo, ela pensou por um momento, voltou para o balcão e remexeu em diversos frascos, tirando por fim um com um líquido amarelado dentro. 

— Então vai gostar de extrato concentrado de Corneta de Anjo, efeitos rápidos e silenciosos. 

— Perfeito. Bom, vou deixar as coisas aqui com você, então já estou indo. Vou comer. – Mas percebeu que já estava sendo ignorado pela senhora, que voltara a atenção novamente aos frascos. 

— Espere um pouco – disse Susan, de supetão, oferecendo um pequeno frasco com um líquido verde-musgo. – Beba isso, vai ajudar com as dores. 

Gabriel pegou o pequeno potinho de vidro, analisando o conteúdo. O líquido parecia ser pastoso e escorria lentamente dentro do pote. Ele abriu a tampa levando-o ao nariz. 

— Eu não faria isso se fosse você. – Susan tentou alertar quando percebeu o que ele estava fazendo, mas já era tarde. 

Retirando rapidamente o objeto de perto do rosto, Gabriel respirou fundo para tirar o cheiro de bolor do nariz. Precisou respirar várias vezes para obter sucesso. 

— O que tem nessa coisa? – conseguiu dizer por fim. 

— Umas misturas. Sei que o cheiro pode não ser dos mais agradáveis, mas irá te ajudar. 

Ele conhecia a curandeira e podia confiar nela plenamente. Tomando coragem, ele levou o frasco até a boca e engoliu seu conteúdo, que por incrível que pareça, não tinha um gosto tão ruim quanto o cheiro. 

— Que coisa horrível – falou enquanto passava o frasco vazio para Susan. – Obrigado. 

— Ótimo! Agora vá comer alguma coisa. 

Antes que Gabriel pudesse falar algo, viu que Susan tinha a atenção voltada novamente para os frascos. Vendo que aquela era sua deixa, foi embora do cômodo deixando o casal de velhos Corvos trabalhando. 

Novamente no salão principal, Gabriel seguiu o conselho da velha indo diretamente para a cozinha, onde Vicente estava ao lado da grande panela, sentado e perdido em pensamentos. 

— Voltei! 

— Como foi? – indagou o cozinheiro enquanto pegava um prato de ferro um pouco amassado, e com uma grande colher de madeira colocava uma porção generosa no prato. 

— Melhor do que esperava, para falar a verdade. Will está calmo hoje. 

Vicente andou até a janela e passou o prato com lentilha para o colega, que pegou agradecendo. Uma colher estava enfiada no meio da comida. 

— Ainda está um pouco morno. 

Gabriel aquiesceu com a cabeça indo em direção a uma das mesas, mas no meio do caminho mudou de ideia e passou pelas grandes portas de madeira, indo se sentar na pequena escadaria que dava na rua. O sol começava a descer trazendo a noite. 

Como sempre, o movimento naquele horário diminuía drasticamente, fazendo com que várias das ruas ficassem desertas. Um garoto passou correndo com um isqueiro acendendo as velas. Eles eram responsáveis pela iluminação, e mesmo sendo crianças cumpriam com a obrigação, pois recebiam duas ou três moedas por isso. A criança passou pelo Corvo não prestando nenhuma atenção no rapaz, empenhada no seu trabalho e principalmente na recompensa. 

Gabriel levou uma colher à boca, e mesmo que a comida estivesse fria, agradeceu por conseguir tirar o gosto do remédio da boca. Continuou a prestar atenção no garoto, mas este sumiu em uma das ruas. Continuou atacando seu prato enquanto a escuridão dominava lentamente a cidade. 

Um movimento voltou a chamar sua atenção. Quando uma figura de preto veio em sua direção, mesmo com a iluminação fraca, conseguiu distinguir que era um Corvo, com facilidade. 

— Gabriel! – cumprimentou o recém-chegado. 

No mesmo momento, ele soube que era Samuel, um dos Corvos que entrou na mesma época que ele. 

— Em patrulha? 

O homem se aproximou e foi possível vê-lo nitidamente por causa das luzes de neon do Ninho. Ele era mais alto e forte, com o cabelo encaracolado, um pouco abaixo do ombro. 

— Sim – respondeu parando no primeiro degrau. – Mas não por muito tempo, amanhã cedo já vou para o Oásis. 

Gabriel sentiu uma leve pontada de ciúmes. Conhecia o Oásis, um local no meio do deserto em que não havia um Ninho, então os Corvos somente passavam algum tempo para dizer que estavam por lá. Um local com poucas regras, das quais os próprios habitantes tomavam conta. Gostava do Oásis. 

— Cadê a Bia? – indagou Gabriel procurando a parceira de Samuel. 

— Provavelmente ainda está patrulhando, mas logo menos estará por aqui, vamos dormir cedo. 

— Entendo. – Com uma última colherada, acabou seu prato. – Vai ficar quanto tempo pra lá? 

— Pelo que Jonas falou, uma semana, duas, no máximo. – Olhou o prato do outro com curiosidade. – O que Vicente fez pra hoje? 

— Lentilha. 

— Ah, que alegria. – Sentou-se por um momento ao lado do rapaz. – Ouvi dizer que você levou uma bela pancada. 

— As fofocas voam mesmo, hein? 

— Vai me dizer que nunca participou de nenhuma? Nossa vida não são só emoções. 

— Pois é – disse colocando o prato de lado. – Levei mesmo. 

— Posso ver? 

— O seu interesse mórbido me enche de alegria. 

— Gabriel, por favor, já vi você após várias surras e você também me viu. 

— Ok, ok. – Levantou a camisa mostrando o dano ao outro. 

— Nossa, realmente nunca deixa a desejar. 

— Sua amizade me comove – brincou Gabriel com o outro que já se levantava. 

Com um movimento rápido, Samuel se abaixa pegando o prato do colega. 

— Vou passar na cozinha, eu levo pra você. 

Gabriel agradece enquanto o outro entra no Ninho, fechando a porta logo atrás de si. E novamente o silêncio reina, sendo interrompido somente por algum gato que passava em disparada entre as sombras. 

Quando o sino do Transportador chamou sua atenção, na direita de onde estava sentado, uma figura grande completamente coberta por um capuz, levava atrás de si um carrinho. A figura misteriosa mancava da perna esquerda, quando foi parada por uma porta que se abriu, uma mulher saiu rapidamente levando em seus braços um embrulho, junto a um homem. 

Ambos olharam para o Transportador, com medo e algo semelhante a nojo, mas a grande figura não demonstrou se importar indo em direção ao casal. A mulher abraçou mais forte o embrulho enquanto seu companheiro sussurrava coisas em sua orelha. Por fim, com os braços trêmulos, ela passou, com cuidado, o embrulho para o Transportador, que com o mesmo cuidado pegou e levou até seu carrinho de mão, colocando-o ali delicadamente. 

Tanto a mulher quanto o homem entraram rapidamente na casa, sendo possível escutar o som de choro. O Transportador somente voltou à frente de seu carrinho, puxando-o novamente. 

Gabriel apenas o seguia com os olhos, pois sabia que não podia fazer nada. Logo, de um dos becos, quatro homens com não mais de vinte anos saíram, e pelo jeito que andavam estavam claramente bêbados. O mais alto que parecia ser o líder, se aproximou do carrinho. 

— Ei, pessoal, olhem que coisa mais feia! 

Todos riram olhando os embrulhos dentro do carrinho. O Transportador, por sua vez, vai mancando para interferir, mas leva um pontapé que o derruba no mesmo momento. 

Gabriel, casualmente começa a procurar algo no chão, quando o som do choro começou a sair dos embrulhos. 

— Que horror! – disse um mais baixo apontando enquanto ria. – Este não tem nariz! 

Antes que os homens continuassem, Gabriel achou o que procurava, e com um movimento amplo, arremessou uma pedra, atingindo a mão do líder dos rapazes que soltou um uivo de dor com o estalo de seu osso. 

Todos se viram para Gabriel, cheios de ódio, mas quando o viram, toda a raiva se tornou medo. Os Sussurros de Corvo eram claramente ouvidos pelas vozes grogues do grupo, que começaram a arrastar o líder com um dos dedos quebrados de volta ao beco de onde saíram, mas antes, o rapaz que o arrastava conseguiu gritar: 

— Os Corvos estão realmente do lado dessas aberrações. 

Mas o movimento do Transportador chamou a atenção deles, que conseguiram enfim ver um dos braços do homem, os quais continham tantos músculos, maior que a coxa de qualquer um deles. 

— Na verdade – disse Gabriel voltando a se sentar. – Eu acabei salvando a vida de vocês, mesmo vocês não merecendo muito. 

Por fim, o grupo sumiu na escuridão. Gabriel olhou para o homem, que já de pé, brincava com um pano para acalmar os bebês. O Corvo sentiu uma fisgada no peito e desta vez não era de dor. 

Transportadores eram moradores da Vala, e uma vez por semana passavam a noite na Cova recolhendo crianças com deformações, levando-as para o lugar que, segundo o Bunker, pertenciam. Essa era uma prática cruel do mundo, assim como diversas outras. Quando o último bebê dormiu, o brutamontes continuou o seu caminho, levando sua preciosa carga silenciosamente, sendo possível ouvir o triste sino. 

Gabriel conseguiu ouvir um "obrigado" do Transportador, e somente acenou com um sorriso triste. Seguiu-o até que virasse em outra rua. O som do sino durou mais um tempo, ficando cada vez mais baixo até finalmente desaparecer na noite. Gabriel continuou olhando para o céu enquanto um ou outro pedestre ou Corvo passavam, até que por fim vê Naomi vindo. 

A jovem estava com as orelhas vermelhas, que era característico de quando bebia, e ao vê-lo se sentou ao seu lado. Ele sentiu o cheiro de álcool na hora. 

— Pelo jeito bebeu bastante hoje – disse. Não em tom de censura, mas, sim, brincadeira. 

— Quando eu vi, tanto eu quanto a Aldrey estávamos na quinta garrafa. 

— Vai dar prejuízo pra ela. 

— Falei pra ela que pagaria, mas sabe como ela é, Gabriel. Nada de aceitar, porque bebeu junto. 

Naomi se encostou nele, e antes que o rapaz falasse que vira o Transportador, a parceira adormeceu. Ficou parado olhando as estrelas e respirando o ar noturno. 

— Um pouco de paz não é nada mau – disse à noite.