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Patrulha dos Sonhos

🇧🇷GilVilain
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Synopsis
E se você pudesse realizar seu maior desejo... mas a um preço? Você está disposto a deixar tudo para trás por apenas um sonho? Sua vida, suas memórias, quem que você conhece, tudo isso... por algo que só existe quando fecha os olhos? O Sonhar é um lugar onde desejos ganham forma, mas há perigos que rondam aqueles que se sonham demais. Você já se perguntou o que acontece quando os sonhos despertam e ganham vida? O mundo cobra seu preço. Com a mão estendida contra o vidro, a Mão Invisível te encara: até onde você consegue ir sem olhar para trás? Você pode ter aquilo que mais deseja... mas será que é capaz de lidar com o peso que os sonhos carregam? E quando os ecos do Sonhar começam a sussurrar no silêncio no seu ouvido, será que você encontrará o caminho de volta... ou se perderá entre aquilo que é e aquilo que poderia ter sido?
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Chapter 1 - Prólogo

- Fale então o que você prefere; viver mil vezes a mesma vida, cada uma dessas vidas se estendendo por cem anos, ou experimentar mil vidas distintas, cada vida durando apenas um dia? - questionou Daniela, seus olhos refletindo a luz pálida do anel que abraçava o horizonte.- Hmmm... - murmurou Kauã. - Mil vezes a mesma vida. Cem anos vezes mil vidas, não tem nem discussão aqui. E você, Dani?- Imagine. - Falou ela com as mãos formando um arco. - Poder morar em mil quartos novos, contemplar mil vistas diferentes da montanha, conhecer mil praças, mil cheiros na cozinha, mil gostos...- Seria interessante... mas. - disse Kauã, o olhar distante. - Você estaria sempre tentando se adaptar às novidades, sempre novas mudanças. Não sei. Mas se você vivesse mil vezes a mesma vida... - disse ele, seu rosto pálido ganhando cor por um momento. De vez em quando, seus eu via seus olhos vislumbrar algo no horizonte, algo que só ele parecia capaz de ver. - Você ficaria tão habituada às mudanças que elas nem pareceriam mais mudanças de verdade, apenas idas. Idas e vindas de um contorno, de uma volta única. Assim, até a mais repentina tempestade seria anunciada no horizonte, e nenhum mal assolaria a costa. - disse ele, um sorriso se firmando entre suas bochechas agora rosadas. - Pronto, agora é a minha vez, às suas perguntas demoram muito. - Disse, recostando a cabeça contra o tronco da árvore cinzenta. - Você prefere comer todos os dias pachamanca, ou... - fez uma pausa, seus olhos se estreitando em faixas firmes sobre os olhos. - Comer qualquer coisa, qualquer coisa, seja folha, seja grão, seja raíz, todo dia, qualquer coisa, alfajor, humita, tamales, qualquer coisa exceto... pachamanca?- Dramático. - Devolveu Daniela com as mãos erguidas, seus dedos balançando como fagulhas numa fogueira. - Acho que eu prefiro algo diferente todo dia.- Não! - Disse Kauã, com os olhos revirados para trás. Seu tom era tortuoso, como de quem procura um sapato, mas encontra um martelo. - Você está arruinando esse jogo, como pode largar tão facilmente a pachamanca, o milho, a fava, você disse que era sua comida preferida - Disse, fazendo um bico com os lábios. - Aposto que logo vai fazer isso com seus amigos também. - Completou, fechando os braços ao redor das pernas.- Você só diz isso porque a Vó Rita cozinha muito bem. - Disse Dani. - E é óbvio que eu não vou te esquecer, seu chorão! Não se compare a um prato de comida. - disse ela vendo um riso contornar o rosto de Kauã, formando duas covinhas em suas bochechas. - Quer dizer, eu precisaria de pelo menos uns três, talvez quatro pratos, bons mesmo, para te esquecer por completo. Um só acho seria difícil, mas quem sabe, dependendo do tamanho. Ou se tiver algum primo da quinoa junto. Talvez Llapingacho.- Disse, erguendo os ombros sem conseguir manter a piada por mais do que um momento e logo caindo no riso.- Ha. Ha. Ha. - Disse Kauã com o rosto fechado. - Vamos agora às perguntas sérias, então! - Disse ele, passando as mãos abertas uma contra a outra, como se estivesse prestes a fazer fogo com gravetos. - Mais dois pares de braços, ou... um rabo?- Isso... isso foi uma pergunta? Eu achei que agora era minha vez de perguntar. - Disse Dani, apertando seu queixo com os dedos. Sua pele negra emanava um tom castanho claro, como se fosse esculpida de uma árvore de angelim e polida até refletir qualquer mínima luz que a tocasse, emanando de volta um castanho próximo ao chocolate. Os cachos de cabelo eram ramos que compunham uma cascata ao redor do pescoço, emaranhado e soltando cachos conforme ela movimentava os ombros para cima e para baixo.- Na próxima vez, você faz duas. Eu começo respondendo então! - Disse Kauã, colocando a língua entre os dentes e fechando o lábio, adquirindo assim uma feição simiesca. - Eu seria o grande rei macaco de quatro braços! - Disse Kauã, começando a bater as mãos contra o peito. Sua pele branca adquiria uma aparência ainda mais opaca, como se fosse feita de areia do próprio anel celeste, contrastando aos seus cabelos cor de palha que erguiam-se sobrepostos em pontas, assemelhando-se a espinhos em um tronco.- Você quer se tornar um rei macaco... - Disse Dani, segurando o queixo com dois dedos em pinça. - E por isso escolheu mais dois braços. - Disse ela, esticando os olhos até que suas sobrancelhas questionadoras estivessem armadas. - E não um rabo?- Nem todo macaco tem rabo, Dani. - Respondeu Kauã como se fosse o fato mais óbvio que conhecesse. - Mas agora responda o que você faria? - Perguntou Kauã, mas a atenção dos dois foi atraída por uma melodia que ecoava bosque a dentro.O ritmo era veloz, com notas graves dando ao início da noite um tom melancólico. Era como se a névoa pudesse dançar através das cordas da viola ao bater na madeira. Em seguida, uma nota aguda pulou um tom, e então era como se as flores cantassem soltas, anunciando a colheita e regando a terra com suas pétalas rubras. Noite e dia pareciam entoar suas proezas, pensou Daniela, procurando a dupla de violeiros que tocava aquela melodia.- Eu escolheria o rabo. - Respondeu ela com um rosto pensativo, mas bastou um instante para deixar de lado a música e retornar ao jogo de perguntas. - Tudo bem, agora sou eu, você tem uma viagem para fazer. Uma viagem longa, muito longa, e cansativa. Você precisa fazê-la sozinho. Você sabe que, quando chegar onde deve chegar, todos os seus sonhos estarão realizados, mas apenas quando você chegar, e apenas naquele lugar. Tudo certo até agora?- Acho que sim. - Respondeu ele, concentrado.- Você não vai poder voltar para onde veio; é uma viagem só de ida. Então, você separa dois livros para irem com você. Um tem todo o conhecimento do seu povo. Você já o leu, mas o livro é tão longo e complexo que se ele sumir parte daquela história nunca mais será encontrada. O outro livro é um álbum seu. Ali existem pinturas de toda a sua vida, desde sua família até todas as pessoas que encontrou em sua jornada, todas até ali, até aquele momento. Os dois livros são grandes, e você os leva nessa sua ida sem volta.- Tudo bem, Dani, qual é a pergunta?- Antes de chegar, o frio aperta, e a única chance de sobreviver é fazendo uma fogueira. Você está quase lá, vai chegar, vai conseguir, mas, se não sobreviver àquela nevasca, não haverá futuro. Você se vê obrigado a escolher. Você queima a história da sua vila ou as lembranças daqueles que conheceu?No instante em que Dani terminou a pergunta, a música recomeçou. O ritmo grave descia enquanto o agudo subia, e a cada nota, os dois pareciam se aproximar mais e mais, como uma dança onde a dupla se prepara para o encontro, atraída ao centro por uma força invisível.O olhar de Dani saiu do rosto de Kauã e pulou para as árvores em busca da fonte da melodia, em busca dos violeiros, mas o som parecia vir de vários lados. Por um momento, perguntou-se se seriam apenas dois ou, na verdade, um grupo inteiro, com dez ou doze violeiros, e o que estariam fazendo ali.- Tudo bem. - Respondeu Kauã, concordando com a cabeça. - Mas essa é complexa; vou precisar pensar, então, contará como duas. - Disse ele com dois dedos erguidos. Dani concordou com uma elevação de queixo e uma virada do rosto para a direita. - Deixa eu te perguntar algo antes, só para ter certeza. - Disse ele, e, por um instante, seu rosto pareceu voltar no tempo, dez, doze anos, quando Dani ainda era pequena, e o conheceu. - Lá tem imagens do meu pai e da minha mãe? E da Vó Rita, e de você, e da Dalila?- Todos que passaram na sua vida têm um espaço lá. - Disse Dani, concordando com um sorriso.- Certo, então eu fico com o álbum. Se vou ver como eram meus pais, então tudo bem perder umas histórias dessa minha vila imaginária. Melhor ainda, porque eu poderia inclusive esquecer essas desgraças e inventar algo mais interessante, como pessoas gigantes lutando contra feras gigantes. - Disse ele, simulando com os braços o embate que ocorria em sua mente. - E você, Dani?- Eu? Bom, se as pessoas são gigantes e as feras são gigantes, então dá na mesma que elas não fossem gigantes, porque a escala é meio que a mesma, um para um, gigante para gigante. - Disse ela.- Primeiro que não. - Disse Kauã. - Porque o terreno ao redor ficaria do mesmo tamanho, assim como os espectadores. Segundo que eu me referia à pergunta sobre qual livro queimar para não morrer de frio.- Espectadores? Ah. - Disse Dani. - Tá, os livros. Hum, eu escolheria a história do meu povo. Ela ajudaria mais pessoas; meu passado é muito importante para mim. Mas já que vou chegar a um lugar tão fantástico, que eles conheçam de onde eu vim. Que o passado seja lembrado pelo futuro.- Mas, Dani. - Disse Kauã, os olhos apertados como asas de borboleta fechada. - Você não iria querer conhecer seus pais?- Aí é que está! Se meu maior sonho estivesse no final do caminho, então eu não precisaria lembrar deles. Todos vocês estariam lá. Esperando por mim. - Disse Dani, e a música começou a diminuir, como se estivesse entrando em seus acordes finais. Um galho se moveu, e a luz do anel refletiu a silhueta do violeiro.Os olhos de Daniela se estreitaram ao encarar aquele semblante, não que o conhecesse, mas, por algum motivo estranho, agora ela parecia ouvir todas as partes da melodia ecoando daquele mesmo lugar. Dani torceu o lábio e procurou pelos outros violeiros, mas não havia mais ninguém ali. Ela pensou em comentar isso para Kauã, contudo a música havia cessado, e tudo o que fez foi encarar a imagem do violeiro solitário que, sem pressa, desaparecia como se feito de fumaça contra o vento.