A luz formou uma mancha no horizonte, e mesmo que Daniela tivesse mantido os olhos abertos veria apenas o branco pálido a iluminar toda a imensidão da terra. As trevas da noite voltaram conforme o clarão se extinguia, ainda que Dani apenas encarasse o chão em sua cegueira momentânea.Seu corpo parecia se torcer de dentro para fora quando ela virou o pescoço para o céu. Os arredores de suas vistas ainda tencionavam a faixa alva a sumir, mas em meio a isso Dani avistou algo além, presa feito um floco solitário que escorrega no gelo para alcançar o chão, sem asas, a patrulheira parecia despencar do céu.Daniela havia perdido as sandálias, então quando avançou em frente seus dedos dos pés enterraram unhas contra a terra e de abraços esticados ela corria no céu escuro. Se haviam obstáculos em frente ela não saberia dizer. Seu corpo se agarrava no que podia, deslizava, saltava e corria. Ainda mais depressa ela vinha, ao ponto que desejou poder se agarrar nas horas e rasgar os segundos, qualquer coisa que a ajudasse a chegar mais rápido.Seus passos eram largos, mas haviam ao menos uma dúzia ainda e entre as duas, foi quando Daniela viu um risco vermelho envolto por cobre se aproximar a pé por sua direita. O coração de Dani pulou uma batida, mas suas pernas estavam dispostas a continuar em frente, dispostas a salvar a patrulheira que se arriscara por ela.Mais um passo em frente e todo o corpo de Daniela ficou lento como se ela houvesse mergulhado num pântano denso. Suas pernas agora mal conseguiam terminar o passo, e seus ombros envergavam para frente, era como se ela houvesse atingido uma barreira física, mas era apenas névoa que a rodeava.Névoa escura, como se feita de ferrugem, dessas que mesmo sob a luz do anel branco ainda pareceriam tão escura como terra queimada. Os olhos de Dani desceram até a silhueta da patrulheira. A névoa orbitava seus braços, densa e escura, condensada sob seus pés feito poça de vapor. Ele parecia estar muito longe, pensou Dani, mas mesmo dali seus poderes já a afetavam.O peito de Dani se contraiu como uma armadilha que se fecha ao perder a presa quando voltou a pensar na patrulheira em queda. Onde ela estava? Dani não conseguiria alcançá-la, não no meio daquela bruma.— Dani, tem mais um pesadelo ali! — Gritou Kauã escondido atrás de uma rocha na encosta.— Pesadelo? — Perguntou Dani com as sobrancelhas erguidas em arcos rasos.— Olá. — Disse uma voz metálica que estava perto de Daniela. Ela deveria sentir medo, mas seus braços agora relaxavam como se ela estivesse acabado de acordar.— Hum... — Disse ela com a boca fechada. Dani tentava entender o que havia acontecido ali. Pairando uma perna acima do chão, a patrulheira que a salvara estava levitando, estaria, corrigiu Dani em pensamento. Porque ela não podia estar de fato levitando, pensou a menina. Porque aquilo era impossível. Nada daquilo para dizer a verdade, pensou Dani. Nada.— Se abaixe Dani! — Gritou Kauã. — Dani pensou em falar, mas seus olhos apenas se esbugalharam quando ela viu o que Kauã fizera. Um pedregulho largo como uma cabeça voava na direção dela.Quando Dani era velha o suficiente para entender a morte, ela se perguntou o que as pessoas pensariam no seu momento final. Se elas saberiam que aquele de fato era o último fio que lhes segurava a vida, contudo naquela instante não foram divagação ou contradições morais que flutuaram na superfície da mente de Dani. Foi uma frase curta, uma percepção tardia unida a uma conclusão simples. "O Kauã vai me matar com uma pedra." Pensou ela enquanto lentamente seus olhos se fechavam.O som da rocha se partindo contra o metal sacudiu o corpo de Dani, mas precisou mais um segundo até que ela tivesse coragem de abrir os olhos.De pé em frente a ela estava uma armadura de metal escuro. Parecia suja de fuligem, mas ao mesmo tempo as manchas soavam intencionais, e quanto mais Dani encarava as dobras no metal, mas ela pensava que cada peça havia sido pintada com milhares de pontos. Tão diminutos que mesmo de perto ela só os via como uma mancha coesa, como elos que se unem para formar uma malha.— Você está bem? — Perguntou a armadura, sua voz era metálica, como que projetada através de um cano longo que vibrava a cada sílaba.— Ã...ãham. — Respondeu Daniela imóvel.— Ele ainda está vivo, eu vou jogar mais uma! — Gritou Kauã.— Não Kauã! —Disse Dani com a mão erguida. —Não é uma ameaça. Não é!Sem perceber o silêncio da noite foi trocado pelo som alto da própria respiração. As costelas de Dani subiam e desciam com força, mas ainda assim ela ergueu o braço com a palma aberta para Kauã parar. Dani virou o rosto para a patrulheira erguida no ar como que deitada sobre uma mesa suspensa.— Ela está bem? — Perguntou Dani com os olhos fixos na patrulheira. Essa não estava mais de armadura, apenas uma túnica esbranquiçada cobria sua pele pálida. Os cabelos loiros pendiam para os lados, como se mergulhada em uma lago de vidro.— Ela está sem sonhos. — Disse a armadura cor de fuligem, deu a volta e começou a caminhar em direção a patrulheira. — Ao que me parece os sonhos dela já haviam terminado mais cedo até. Mas mesmo assim ela conseguiu derrotar aquele pesadelo. Conseguiu assumir a forma de Ágata branca. — Disse a armadura. — Você viu o que aconteceu?— Eu... — Disse Dani agora olhando a silhueta da armadura. Era pelo menos dois palmos menor que ela, com ombros curtos e um capacete achatado para os lados. Pensando em silêncio, Dani se perguntava se era uma criança quem estava a usar aquela armadura. Mas não poderia ser, pensou ela respondendo a si mesma. A voz era grave, profunda como se fosse um velho. Talvez concordou ela. Talvez fosse alguém tão velho que tenha voltado a parecer uma criança. — Eu não vi muito. — Disse Dani ao esquecer a pergunta.— Ohhh...— Disse a patrulheira que finalmente parecia cair no chão, ainda que de forma lenta. — Ãhn? — Disse com a cabeça erguida.— Você está bem? — Perguntou Dani ao olhar a patrulheira. O rosto de Dani esquentou, e logo ela teve que desviar dos olhos verdes que a espetavam em silêncio.— Estou. — Disse a patrulheira com um sorriso manso, daqueles que o lábio é puxado para o lado sem nenhum esforço. Se olhando elas permaneceram por um tempo. Se foram segundos ou horas, elas não poderiam dizer ao certo, já que o mundo parecia não fazer mais parte de suas preocupações, não ali, e não agora. A armadura cor de fuligem fez um zunido, e só isso fez com que a patrulheira desviasse os olhos — Beta? — Perguntou ela de olho na armadura escura de olhos vermelhos.— Ágata. — Disse a armadura em seu tom metálico e monocórdico. — O que houve?— Ah. — Disse a patrulheira com a barriga voltada para o céu. — Eu estava caçando. Esse do quarto canal. Fugiu de mim ontem. Eu passei o dia caminhando entre as divisas. Economizei meus sonhos. Estoquei, mas quando cheguei até na montanha minha reserva já estava seca. — Disse ela e rabiscou com os olhos o terreno ao seu redor, indo das sardas de Kauã até os olhos escuros de Dani, e só então retornando para a armadura que antes ela se referia como Beta. — Parecia um pesadelo fraco, mas de repente quando eu acertei um tiro ele começou a mudar. Nunca tinha visto algo do tipo.— Se você estava com a reserva seca, como pode se transformar em Ágata vermelha? — Questionou a armadura. Dani não se importava tanto com a conversa quanto com o estado físico da patrulheira, mas mesmo essa parecia melhor a cada palavra pronunciada. Com o cotovelo no chão ela apoiava a cabeça na palma da mão enquanto olhava para Dani com o sorriso escondido entre os dedos.— Foi estranho. — Respondeu a patrulheira. — Eu pensei em fugir, tentei acender a moeda mas não tinha nenhum um sonho para servir de faísca. Tentei acionar a trava do primeiro canal. Achei que esse seria o fim. — Disse ela que mostrou os dentes em um sorriso largo. —Fiquei pensando que ele alagaria toda a montanha, afogaria a todos, foi então que... — Disse ela e seus olhos afundaram no chão. — Foi então que eu decidi ajudar eles. Se era para ir, então eu iria, mas do meu jeito.— Você retirou a trava do primeiro canal? — Perguntou a armadura que a patrulheira antes chamara de Beta.— Não. Eu tentei, mas eu estava sem nenhum sonho. Mas do nada eu senti a minha reserva cheia. Tão cheia que iria explodir se eu não fizesse nada. O terceiro canal se abriu enquanto nós despencamos. Por isso eu consegui acionar a forma de Ágata Branca.— Mas então... — Disse Beta com as manoplas agarradas a cintura estreita.— Foi ela. — Disse a patrulheira com o indicador esticado na direção de Daniela.Dani engoliu em seco a acusação. Não sabia nem ao menos do que estava sendo culpada, contudo não precisava raciocinar muito para saber que não havia feito nada. Nada além de esticar a mão, pensou Dani, e em sua mente a imagem das duas de mãos dadas foi o suficiente para arrepiar os seus pelos, e aquecer seu coração e corar seu rosto.— Eu? — Perguntou Dani sem ter outra coisa para fazer além de negar sua participação em qualquer coisa. — Eu não fiz nada. — Disse Dani com os braços erguidos para o ar.— Quando eu toquei nela eu senti... — Disse a patrulheira e a luz do anel circundou sua expressão. — Senti como se, mesmo que por um instante, meu corpo tivesse acordado de um longo, longo descanso. Cada músculo do meu braço se encheu de força, pensei que era só uma perversa ilusão antes do fim, mas a minha moeda não mentiu. Meus sonhos estavam de volta, maiores do que nunca.— Seus sonhos? — Perguntou Kauã, enfim se aproximando pro de trás da rocha.—Sim. Mas não era uma energia estável, no momento que eu ataquei tudo foi embora de novo. —Disse a patrulheira.— Mas era energia onírica? — Perguntou Beta.— Energia onírica? — Repetiu Kauã de ombros erguidos.— Energia do sonhos. — Disse a patrulheira para Kauã. — Era sim. — Disse ela ao se virar para Beta.Em seguida Beta e sua armadura ficaram imóveis observando Dani. A emoção do momento começava a passar e seu corpo estava ficando gelado.— Eu nunca ouvi nada parecido. — Respondeu Beta sem tirar os olhos vermelhos de Daniela.— O terceiro canal tem essa habilidade, eu já vi um patrulheiro emprestar um sonho para o outro. Funciona bem, ainda mais se não forem canais opostos. — Disse a patrulheira que permanecia deitada sob a vegetação.— É. — Concordou Beta ao balançar a cabeça. —O problema é que ela não deveria poder mexer nesse tipo de energia. Ela não tem contrato, então como poderia?— Ah. — Disse a patrulheira e seu rosto se apertou. Dani continuava na outra ponta de seus olhos, mas seu sorriso virava uma interrogação. — Eu não tinha pensado nisso. Estranho. Você tem certeza que a mão invisível não fechou um contrato com ela e apenas esqueceu?— A mão nunca esquece um contrato. — Respondeu Beta e sua voz ficou mais aguda. — Tenho certeza que ela não faz parte da patrulha.—Hum...—Disse Kauã que uniu os ombros a Beta e a patrulheira, que investigavam Dani com o olhar silencioso. — Tudo isso de fato é muito estranho. — Disse ele ao balançar a cabeça. Seu dedos seguravam o queixo, mas logo ela abriu a mão em gestos que pareavam com suas palavras. — Mas eu acho que ainda mais curioso que o papel da Dani nisso, é saber o que cargas de lama era aquele monstro que estava atrás da gente. Vocês estão no foco errado, invés de ficar pensando em como a Dani ajudou vocês, sem querer tirar o seu mérito é claro Dani, mas acho que deveriam pensar mais no que era aquele monstro, de onde ele veio, e será que ele vai voltar?— Aquele monstro era um pesadelo. — A patrulheira respondeu, apoiando-se no braço para sentar, cruzando as pernas em um movimento fluido. — Esses seres não pertencem ao mundo natural. São atraídos por acúmulos de sonhos, o que significa que podem atacar qualquer pessoa, mas têm uma preferência por aquelas cujos sonhos são mais nítidos. Como uma criança pequena, que ainda não construiu a barreira entre o real e o mundo onírico que habita a alma. — Ela fez uma pausa, seus olhos fixos no horizonte por um momento, antes de continuar. — Além de crianças, pesadelos têm outro "prato" favorito: humanos com acesso direto à dimensão dos sonhos. Foi por isso que presumi que o morcego-borboleta viria até mim, e não até vocês. Mesmo exausta, a minha moeda da alma é uma isca grande demais para eles resistirem.Ela respirou fundo, seus olhos agora se encontrando com os de Daniela, mais sérios. — Mas imagine a minha surpresa quando percebi que havia algo ainda mais forte o atraindo. Era como se mil sonhos condenados estivessem reunidos, como se mil malas escondessem um segredo, todas dentro de uma só.As palavras pesavam no ar enquanto a patrulheira encarava Daniela, seu olhar escuro e penetrante sugerindo que ela sabia mais do que dizia.— Ãh... — Disse Kauã. — Isso tudo parece um pesadelo mesmo, agora eu entendi o título. — Disse ele e levou as mãos a cabeça. — Mas você disse patrulha, vocês fazem parte da patrulha regular? — Perguntou Kauã, e Dani percebeu uma angústia em sua voz ao pronunciar aquelas palavras.— A patrulha regular só não merece pena porque isso seria rude com a forca que espera tão pacientemente a sua hora de se fechar em volto do pescoço daqueles traidores. —Disse a patrulheira, e naquele instante Dani sentiu uma raiva pesada borbulhar dentro da patrulheira, como se suas palavras saíssem das chamas de uma fogueira e não de seus lábio finos e rosados.— A patrulha a qual Ágata faz parte é bem mais antiga, e remonta até mesmo a história desse continente. Passos que vem de longe — Disse Beta. — Um grupo de desgarrados, abandonados e condenados. Cada membro tem direito há realizar um sonho, e apenas um sonho. Após isso ele se torna parte da força da mão invisível. Essa é a patrulha da qual nós fazemos parte, senhorita Daniela. A patrulha dos sonhos.