Chereads / Patrulha dos Sonhos / Chapter 2 - Capítulo 1

Chapter 2 - Capítulo 1

Daniela fechou a porta e voltou seu olhar para o céu estrelado. A aurora ainda não havia iluminado o horizonte, permitindo aquela visão do firmamento em um oceano incandescente, onde cada estrela parecia uma chama única, um ponto de tinta a colorir aquela tela imensa chamada céu. Caso ela se dedicasse a contar cada ponto, passaria o dia inteiro e, ainda assim, haveria estrelas que não teriam sido vistas por seus olhos escuros.A casa de pedra, já distante, mesclava-se com a vegetação rasteira, deixando para trás todos os pertences de Dani, mas logo sua irmã estaria de volta.A única marca no céu além das estrelas era o anel branco estendendo-se de um lado ao outro do horizonte, nascendo onde os penhascos se curvam em direção às águas salgadas do oceano até se deitar de novo no lado oposto, onde as ilhas já haviam se afundado há muitos séculos. Contudo, para Dani, a palavra "anel" parecia insuficiente para descrever aquela vastidão branca que se estendia no horizonte até a borda do território de Xomak.Ao se aproximar da vila de Arbós, Dani vislumbrava-a por entre os galhos altos de duas casas de madeira erguendo-se com rigidez no solo aberto. As ruas de chão batido eram adornadas por flores verdes que escondiam a tonalidade terrosa do povoado. Chaminés emanavam fumaça acre, pintando o cenário com cinzas frescas.— Será que Kauã já acordou? — perguntou Daniela para si mesma, seus cabelos balançando suavemente contra a brisa. Um vento frio sussurrou sob suas sandálias, e ela apertou o passo em direção à ponte de madeira . Ela servia como única ligação entre as duas vilas, Arbós e Odecam, divididas pelo rio verde que corria até encontrar o mar escuro.Ao atravessar a ponte, os olhos de Dani pousaram no chão de pedra que se estendia após o último passo de madeira. Degraus de granito e andesito começaram de maneira sutil, mas à medida que Daniela subia, a distância entre eles aumentava, transformando a trilha em escalada. A rocha lisa e quebradiça tornava alguns degraus afiados, como lâminas prontas para cortar quem ousasse pisar desajeitadamente em seus beirais. O granito cinza escuro era mais frio, mais firme, enquanto o andesito era cinza fosco, quase cor de ferrugem as vezes, e se enterravam na montanha de forma mais rude, porém mais firmeOs pés de Daniela pousavam firmes em cada degrau de granito, e o som de suas botas ecoava pela escada, como um ritmo antigo. O vento soprou entre as pedras, brincando com o cabelo que ela prendeu atrás da orelha. À medida que subia, uma sombra a acompanhava, longa e alongada nas primeiras luzes da manhã. Logo outra aparecia, desta vez mais curta, se fundindo à primeira, e depois uma terceira, mais próxima, caminhando junto ao seu lado.O sol, subindo no horizonte, começava a beijar seu rosto, e os degraus à frente pareciam se estender infinitamente. Ao redor, o céu clareava de azul-escuro para um dourado suave, e as sombras se multiplicavam, avançando silenciosamente, como um desfile invisível. Pequenos vestígios de sua presença, passos de outrora, se fundiam com os ecos das subidas anteriores, sobrepostos sobre a pedra fria.Ela sentia o peso da jornada, mas, com cada passo, a escada a carregava para o alto, até que parecia não ser apenas uma, mas muitas.A pele preta brilhava como se feita de bronze. Suas sobrancelhas delicadamente curvadas inclinava-se para os cantos, ocultando seus olhos da luz forte. Dani continuava a caminhar, seus passos ressoando até que a escada se tornasse novamente chão, parte de uma trilha, com a luz filtrando-se através das folhas, revelando uma floresta à frente.A vila de Odecam surgiu entre as árvores, suas casas em formato de ovo enterradas na vale lembravam raízes que emergiram descontentes com seus troncos perdidos. Daniela fechou os olhos por um momento, sentindo que o sono ainda a envolvia mesmo após a escalada. O futuro, uma vez visto como uma aventura misteriosa, agora adquire tons acinzentados, refletindo as casas Odecam.As construções ovaladas se erguiam ao longe, suas superfícies de pedra refletindo a luz do dia, enquanto Daniela caminhava pelas ruas estreitas que serpenteavam montanha acima. Cada passo trazia o cheiro de pão de quinoa fresco, e as vozes dos primeiros comerciantes começavam a se misturar ao som de suas botas contra o chão de pedra. Os prédios eram todos iguais, silenciosos e fechados, como se fossem túmulos e não casas.Ela parou, respirando fundo, com os olhos voltados para o céu tingido de dourado. As estrelas desapareciam uma a uma, engolidas pelo manto do amanhecer. Entre elas, Daniela sentiu uma pontada familiar, aquela sensação de que algo maior estava além, mas sempre fora de alcance. Seus olhos vagaram pelas paredes curvas das casas, os dedos tocando o papel dobrado no bolso. Um daqueles muitos papéis que ela havia preenchido ao longo dos anos. Quase como os documentos que carimbava no trabalho, repetição após repetição, até os dias se transformarem em um borrão sem distinção alguma.A brisa da manhã soprava fria, e Daniela esfregou os braços, como se pudesse afastar algo mais do que o frio. A mesma sensação que a paralisou naquela manhã em frente à biblioteca, quando ficou sentada do lado de fora, olhando para a porta fechada, enquanto o relógio de sol marcava o início da prova. A porta nunca se abriu para ela. Assim como as folhas de papel em sua escrivaninha, aquelas que preenchia em um emprego do qual já havia desistido, o futuro parecia pesado e imóvel, assim como uma pedra gigante no topo de uma colina íngreme, ameaçando rolar, mas presa no tempo, sem jamais poder se mover.Ela continuou caminhando, os degraus à sua frente cada vez mais íngremes, e o horizonte ainda mais distante.Dessa vez, ela decidiu que seria diferente ao desviar o olhar do céu.— É só um curso. Eu não terei apenas uma opção. — Disse tentando se convencer. — Terei pelo menos umas quatro. Talvez três, então é melhor do que apenas uma. — Comentou ao avistar a escola da vila de Odecam para Jovens Aprendizes.A construção tinha um ar exótico, com seis lados irregulares que lembravam um círculo rústico esboçado com galhos toscos e retos. O telhado, tão fino e precário, parecia esticado como uma massa fina sob o rolo de pão. Daniela atravessou o vão da porta, os pés fazendo eco no chão de madeira enquanto espiava o interior. A sala era desolada, apenas as cadeiras dispostas em quatro filas interrompiam o vazio, como se aguardassem silenciosas o próximo a ocupar seus lugares. Nas paredes, folhas de recrutamento da Guarda estavam pregadas com pregos enferrujados, os papéis já amarelados pelo tempo. Daniela se deixou cair na primeira fileira, debruçando-se sobre os joelhos, exausta demais para continuar a travar a silenciosa batalha com o futuro que insistia em não se mover.O bocejo escapou primeiro, seguido pelo fechar lento dos olhos. Os sons ao redor se desfaziam e vozes distantes se tornavam cada vez menos nítidas. O sono veio com força e como ele um sonho. Algo ríspido, espinhoso, mas do mesmo jeito que este chegou, também foi embora. Os sons voltaram aos seus ouvidos, partindo o sonho para transformar-se em conversas mundanas. A luz bateu nos olhos de Dani, e ela despertou.O colete de vina marrom, grosso e pesado, estava colado à sua pele sob a túnica, como se ela o tivesse vestido logo após sair de um mergulho gelado. O tecido, encharcado de suor e úmido pela névoa das alturas, pesava ainda mais com o passar do dia, apertando-lhe o corpo. As bordas da túnica, de lã rústica e desgastada, tremulavam levemente ao vento, mas nada disso impedia a sensação de estar envolta por um casulo de umidade fria.— Dormiu até babar, hein? — Perguntou Kauã, sentado ao seu lado.— Hum? — Perguntou Daniela, limpando o canto da boca. — Anja do céu.— Anja! — Exclamou Kauã com um sorriso sincero. — Você acordou na hora certa, o professor acabou de chegar. — Apontou para o homem de pele escura e túnica clara que se dirigia ao quadro.Daniela virou-se abruptamente para encará-lo, e uma onda gelada percorreu sua espinha, como se dedos invisíveis a tocassem por dentro. Um arrepio subiu pela nuca, eriçando os pelos de sua pele, e seu corpo enrijeceu por um momento, como se tivesse sido puxada de volta ao sonho que tentava lembrar. Suas sobrancelhas se apertaram, os lábios levemente entreabertos, enquanto ela tentava unir as peças desconexas daquilo que havia sonhado com a estranha realidade à sua frente.— Estranho. — murmurou ela, a voz baixa e hesitante, quase como se estivesse falando consigo mesma. O rosto se enrugava em confusão, mas seus olhos permaneciam fixos no rosto do professor, incapazes de desviar, buscando desesperadamente uma resposta para a sensação que a invadia.— Dormir até babar? — Perguntou Kauã. — A vó faz isso o tempo inteiro.— Não. — Disse Daniela, e o arrepio percorreu sua espinha até gelar seu sangue. — Sinto como se já conhecesse ele.— Ele quem? — Perguntou Kauã, seguindo o olhar de Daniela até o quadro. — O professor?— Sim.— E você conhece ele de onde? — Indagou Kauã, franzindo a testa.— Essa é a parte estranha. — Disse Daniela, seus olhos encontrando os do professor de cabelos castanhos por um instante. — É como se... como se eu o tivesse conhecido em um sonho.~.~ André abaixou as costelas permitindo assim que o ar saísse sem pressa. Os passos ecoavam pela rua lá fora. O ar penetrava seu pulmão, impregnado com o odor de papel mofado e encardido. Imerso no cesto de lixo, ele caçava uma capa vermelha entre os livros esmeralda. A luz pálida do anel passava pelas frestas de palha seca, infiltrando-se no cesto e iluminando as capas sobrepostas que saltavam da mão de André.— Essa é verde? — questionou, lábios curvados. Seus olhos, castanhos, só revelavam seu brilho na presença de uma vela ao lado do rosto, caso contrário, perdiam-se na escuridão noturna. O cabelo, de tom amadeirado, caía em voltas espessas até os ombros, descolorindo-se à medida que descia. Antes de retomar a busca pela capa vermelha, um estalo ressoou a poucos passos. — Hum? — murmurou André, projetando a cabeça para fora da lixeira. Seus olhos ondulavam conforme observava a cena, e a luz castigava sua pele.— Volte aqui! — gritava o rapaz de túnica amarela, um pigarro intercalado nas palavras, transitando entre tons médios e graves, como se a garganta do jovem ainda não tivesse decidido em que idade queria estar. Contudo, era uma túnica elegante, de costura adornada em couro e com o símbolo da guarda de Dusséria.— Jovens. — murmurou André, abaixando novamente a cabeça como um avestruz. Uma mecha de cabelo enroscou-se na espiral de madeira de um caderno, sendo puxado à medida que ele recuava com a cabeça. — Ai, ai, ai! — exclamou, liberando a espiral. A capa permanecia presa, mas o conteúdo do caderno despencou. Os olhos de André brilharam como o Anel refletindo a noite no vasto mar. — Teoria da Libertação. — leu, ainda com parte da espiral emaranhada em seus cabelos.— Pare! — interveio uma voz mais aguda do lado de fora. André hesitou, desviando os olhos do livro para observar a ruela através das lacunas na palha.No chão havia um menino de pele castanha e cabeça raspada. Sua túnica estava gasta, com rasgos na barra, e uma alça de tecido cinza que destoava dos sapatos. Em pé, à sua frente, o outro garoto de túnica amarela com a estampa da guarda regular bordada no ombro. Alto, ele tinha a pele avermelhada como se uma gota de sangue caísse em um copo de leite. Seu rosto revelava os dentes enquanto segurava um pedregulho, semelhante às que formavam a escadaria de Odecam.— Ladrão! Ladrãozinho! — Disse o rapaz de pé com a pedra. — É por sua culpa que a chuva se foi! — esbravejou, lançando a rocha na direção do outro rapaz. A pedra zuniu pelo ar, esmagando uma placa de madeira a menos de meio passo do menino no chão.— Malditas crianças. — comentou André. Seus dedos ágeis guardaram a "Teoria da Libertação" no bolso interno da túnica. — Hum. — disse, examinando as capas soltas entre os livros descartados. — Esta. — completou, pegando uma capa vazia de um livro chamado "Mundo Velho".— Quem está aí? — indagou o rapaz que atirou a pedra. Sua voz continuava a oscilar entre agudo e grave, isso enquanto erguia um galho torto contrastando com seu rosto pontiagudo.André saltou da lixeira como se já o tivesse feito inúmeras vezes. Seus sapatos de pano tocaram o chão, e quem não estivesse atento duvidaria de onde saiu, dada a postura de sua aterrissagem, pousando nas pontas dos pés e com o olhar fixo no garoto de amarelo que havia arremessado a pedra.— Anja. — cumprimentou André, curvando-se em reverência ao rapaz com o pedaço de pau. Com a capa aberta na mão, deslizou o dedão pela borda e, com os outros dedos na parte de trás, abriu a capa vazia. Num movimento certeiro, encontrou um fragmento maciço do pedregulho lançado antes.André usou o livro para pinçar a pedra do chão, mantendo-a oculta como se fossem páginas ali escondidas.— Não quero atrapalhar a conversa de vocês dois. — disse ele, dirigindo-se ao menino que se escondia atrás da lixeira. — Tenho certeza de que terão uma discussão civilizada. — completou, oferecendo o livro com a pedra escondida ao menino que tremia segurando a alça de palha presa à lixeira. — Já encontrei o que procurava. — informou André, encarando os olhos do rapaz. — Mas acredito que encontrará boas passagens nesse aqui. — acrescentou, soltando a capa na direção do menino. A pedra deslizou para baixo, parando na cintura dele. Seus olhos desceram até a pedra, subindo em seguida para encontrar os de André.— Você estava dentro do lixo? — perguntou o outro, ainda segurando um pedaço de pau.— Filosófica sua pergunta. — disse André, acenando com a cabeça. — Estaria eu realmente dentro daquela lixeira, ou talvez, como povo Odecanense, estejamos cada vez mais nos cercando de bens perecíveis para satisfazer nossos desejos perenes? — falou enquanto deslizava ao redor do jovem no chão, posicionando-o de costas para o menino com a pedra escondida no meio da capa. — De toda forma, estou atrasado. Foi um embate de ideias interessante, desejo a ambos um ótimo dia. Anja! — exclamou, fazendo uma reverência com a cabeça.— O quê? — perguntou o rapaz abaixando o pedaço de pau. Nesse instante, o outro menino pulou para frente e, com a pedra nas mãos, arremessou-a feito um projétil. O pedregulho zuniu antes de se enterrar nas costas do outro rapaz o fazendo colar no chão.— Ahhh... — gritou ele ao cair no chão, dedos apertando a cintura. André não quis avaliar a extensão do ferimento, apenas virando a cabeça de lado.— Deveria ter escolhido uma pedra menor. — comentou ele para o rapaz caído. O sol projetava sombras no muro em uma inclinação bem aberta, capturando a atenção de André. — Que horas são agora? — perguntou, encarando a ponta da escola do outro lado da vila. — Ah não! Como posso me atrasar no primeiro dia?Ele correu pelas quadras de cimento armado. As divisas da rua lembravam pedras empilhadas, mas eram apenas cimento recortado e armado com vigas de metal. As casas pareciam se esconder da luz, recuando no solo como buracos no chão tosco. Buracos circulares, indistinguíveis uns dos outros por fora, exceto pelas placas expostas em suas fachadas. Algumas cercadas pela terra, difícil até saber se eram casas ou inclinações acinzentadas do próprio terreno. André não sabia se as pessoas que moravam ali enxergavam o mundo de fora ou apenas olhavam através de suas vidraças opacas, vivendo o mundo através de suas cascas de ovo..A última quadra surgiu, e apenas então André sentiu aquela lembrança atingir seu corpo como uma rocha que despenca da encosta. Seu peito palpitou, batendo pesado como se estivesse à beira da morte.— Desistir agora seria uma piada sem graça, não é? — disse para o céu enquanto a corrida se tornava uma caminhada. A escola crescia entre as lombadas de casas enterradas na terra. De seis lados e com um telhado de barro cor de vela, lá estava ela. Provavelmente o mais barato que o dinheiro foi capaz de construir. Os filhos de Arbós, pensou André, sentindo a raiva sobrepujar a lembrança por um instante, mas foi engolida pela maré de memórias que o atacava, decidindo focar apenas em uma delas. Naquela última.Seria a primeira vez que a veria com aquela idade, como num sonho absurdo onde o chão se transforma em teto, considerou André. Às vezes, ele sentia que sua vida era apenas um desses sonhos absurdos. O quão mais estranho seria pensar que tudo era apenas um devaneio. Uma destilação da realidade, vívida, vivida e revivida noite após noite, sono após sono. Um sonho contínuo, um pesadelo eterno onde a saída era apenas uma porta que levava ao próximo pesadelo. Contudo, a realidade era mais simples, e costumeiramente mais cruel do que a imaginação.André empurrou a porta, e as vozes no interior da escola diminuíram até cessar. Todas as cabeças se voltaram para trás, para ele.— Anja. — disse André, sentindo os olhares de todos esquentarem o seu rosto.— Anja! — responderam eles e elas, senão em uníssono mas próximos o suficiente para se ouvir apenas uma reverberação daquela palavra. Os cílios de André tremeram, seu rosto fechou e ele pensou em puxar o ar com força para dentro dos pulmões, mas não o fez. Um sorriso surgiu, e ele virou-se para encarar a parede preta no final da sala.— Um símbolo de perseverança. — murmurou ele, repetindo seus pensamentos para que as lágrimas não deixassem seus olhos. Permitiu ao ar escapar lentamente e, de dentro do casaco, retirou o livro. André percorreu os olhos pela primeira linha do livro e começou a escrever a frase na parede pintada de preto.— De modo simplista, existem duas formas de transmitir o conhecimento desse curso para vocês. — explicou quando terminou de redigir a frase.Os olhares confusos da turma dificultavam desviar o próprio olhar, então ele preferiu fixar sua atenção na porta no final da sala enquanto continuava.— A forma escolhida pelo comitê de Odecam é o que teóricos chamam de ensino desumanizado. Um problema, especialmente quando se pretende ensinar seres humanos. — comentou, abaixando o rosto para a primeira carteira. Sentada ali, uma garota de cabelos lisos e pretos o encarava. Quando seus olhares se encontraram, ela pareceu nervosa, mas soltou um sorriso encolhido. — No entanto, esse ensino desumanizado não vem de forma acidental; eles não cometeram um erro de grafia, e agora eu serei obrigado a tratá-los como recipientes vazios, aptos a serem preenchidos com conhecimento. Desumanizar pessoas tem um propósito específico, e os nobres de Dusséria sabem muito bem disso. — disse, apertando as mãos e olhando para um rapaz na segunda fileira. — Para oprimir. Dominar, explorar, possuir. Isso atende aos interesses deles de uma forma muito específica. Conservar o poder. Preservar o topo em detrimento da base. — falou, arriscando olhar todos os alunos em um rápido relance. — Então, me digam, é esse o método que preferem para aprender?— ...não? — disse uma voz familiar vinda do canto esquerdo. André teve os olhos atraídos pelo som e só pensou em quem seria quando já o estava encarando. Cabelos castanhos claros, orelhas redondas e sardas no rosto. Era Kauã.— Então, vocês têm sorte, porque ainda há outro método de ensino. Alguém se arriscaria a sugerir o nome desse método... inovador?— Ensino... humanizado? — disse outra voz. Essa ressoou dentro de André como um canto que parte o cristal. Ele sentiu seu estômago dar um soco em suas entranhas, mas mesmo assim virou os olhos para encarar a garota que dissera aquilo.— Exato. — Pronunciou André, e por um instante tão breve que nem mesmo o bater de asas de um beija-flor faria justiça, seus olhos cruzaram com os de Daniela. — Diálogo, reflexão, ação e práxis. Esses serão os pilares das nossas aulas. Vocês não apenas absorverão conhecimento, mas também o irão partilhar. Ouvirão, mas é crucial que expressem suas opiniões para que isso funcione. — Prosseguiu André, obrigado a baixar o olhar. Seu rosto se contraiu, os músculos do queixo apertados como se beliscados por uma legião de siris selvagens. Lágrimas turvaram seus olhos, e ele pensou que não conseguiria explicar aquilo naquele momento, então abriu o livro sem capa e começou a ler. — "Quem inaugura a tirania não são os tiranizados, mas os tiranos. Quem inaugura o ódio não são os odiados, mas aqueles que primeiro odiaram. Quem inaugura a negação dos homens não são os que tiveram sua humanidade negada, mas os que a negaram, negando também a sua própria." — Discursou André, recompondo-se em seguida. — Para quem se interessar, deixarei este livro disponível; na próxima semana, farei cópias de alguns capítulos para analisarmos em nossos encontros futuros. Enquanto isso, terão acesso à apostila técnica, a parte essencial do curso para aprovação no concurso. Pode ser que eu esteja equivocado, mas acredito que apenas com uma educação humanizada vocês conseguirão tomar decisões assertivas, utilizando o pensamento crítico em vez de reproduzir cegamente o que é imposto pelos seus algozes. Este curso atende a diversos objetivos do comitê de Odecam, mas, para mim, tem apenas uma razão de ser, de existir. — Afirmou ele, encarando o jovem de sardas ao lado de Daniela. — Para que vocês pensem por si mesmos! Isso sim é a liberdade verdadeira. Não se trata do poder de comprar qualquer coisa, ou de possuir a alma de outra pessoa; isso é apenas acumulação e não merece admiração, é uma aberração proveniente de um sistema doente que adoece aqueles que o habitam. Ser livre é dar um passo para o outro lado. Não é uma corrida solitária, mas uma caminhada conjunta. A grandeza não está em um indivíduo, mas em todos e todas. Está em vocês. Ela se espalha de um para outro, como fogo que se alastra na palha seca, a liberdade corre em suas mentes e acende seus corações. Não é um ponto em um gráfico, ou uma doce mentira cuspida por um burocrata. É um sentimento único, a liberdade que cresce e amadurece, tornando-se algo mais profundo, algo mais concreto. Algo sólido feito uma rocha, porém leve como a brisa. A liberdade se torna Autonomia. — Concluiu André, virando-se para ler a frase no quadro. — "Ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho. Pessoas libertam umas às outras, em comunhão."~*~— Eu não tenho certeza se entendi, porque para mim foi uma chuva de informações novas, mas me parece... — Disse Kauã com os olhos estreitos. — Que nós já estávamos sendo oprimidos muito antes de descobrir. — Disse ele para Daniela, que o olhava por entre as pessoas que deixavam a sala. — Eu sei, eu sei, parece loucura, mas como vão esses nós, você já parou para fazer as contas sobre o valor do rancho em Dusséria? Porque a Vó Rita compra algumas coisas por lá, e então não muda muito essa conta. Calicha aqui em Odecam é sete uma caixa com vinte, lá em Dusséria é cinco, a mesma caixa. A mesma Calicha. Por mais que a de lá pareça mais verde, é a mesma. Então você reflete, vou comprar em Dusséria, vou até a feira do anel. — Disse ele com as mãos que formavam gestos desconexos em direção à cidade no topo da montanha. — Só que, se você lembrar daquela parte dos juros compostos que o professor André mostrou, aliás, nem sabia que alguém realmente usava juros fora dos livros, achava que era algo só teoria para enrolar a gente no ensino de base, mas não! — Disse Kauã, e Dani pareceu tomar um susto. Em seguida, ela o olhou com o rosto torcido, e ele já não sabia se aquela era uma expressão de dúvida ou de raiva. — Desculpe pela dramatização. Mas seguindo aqui, se você pensar nos juros compostos e que, comprando lá em Dusséria, é obrigado a contratar o serviço da guarda para que a mercadoria chegue até aqui, o que já inclui a taxa anual. Só alguém muito valente para comprar e não pagar a guarda pela baldeação. O último que fez isso... — Kauã parou por um segundo e olhou por cima do ombro. — Bom, eu não sei de nada, só sei é que jogaram ele da encosta. — Sussurrou ao pé do ouvido de Daniela. — Aí você tem a opção de pagar o valor total, que é, por exemplo, o que a Vó Rita faz, mas a mãe da Nat sempre parcela esse valor. Sempre! Aí os carnês vão se juntando, quando você vai ver já nem sabe o que comprou, está pagando num dia o que comprou dois anéis atrás, porque o que você está pagando na verdade são só os juros. Doidura! É quase como se fosse mais barato comprar aqui em Odecam, por mais que, na verdade, seja mais caro à primeira vista. A longo prazo, você vai estar pagando mais barato, ainda mais porque para Arbós não precisa pagar a baldeação, só atravessar a ponte. — Disse Kauã e agora começou a analisar o olhar de Daniela. — Está tudo bem com você, Dani?— Hum? Uh. Uhum. — Disse ela de lábios fechados. Seu olhar estava plano, com as bochechas retas em uma expressão amassada, como se seus pensamentos tivessem caído de cara no chão, pensou Kauã.— Uhum. — Disse Kauã, repetindo a expressão de Dani. — Que bicho te mordeu?— Não é nada. Quer dizer, não é que não seja nada, é só que não é nada que valha a pena falar sobre. É que. É só que. É isso. Nada. — Disse ela e abriu um suspiro leve e curto. — Sabe quando você conhece alguém, mas na verdade você já conheceu essa pessoa antes?— Hum, uhum. Não tenho a menor ideia do que você está falando, mas consigo imaginar. A princípio muito mal, muito muito mal, mas consigo, minha imaginação fértil. — Disse Kauã com o rosto enrugado pela elevação das sobrancelhas. — Tudo bem, agora consigo imaginar perfeitamente o seu exemplo, para ser honesto foi até bem mais rápido do que eu planejava.— É só uma sensação esquisita, sabe? É como se eu te visse agora pela primeira vez. Mas ao mesmo tempo eu me lembro de já ter te conhecido. — Disse Dani e balançou a cabeça para os lados. — Enfim, sim, a aula foi interessante. Acho que o teste ainda será horrível, mas pelo menos teremos alguns finais de semana divertidos até lá.— Ah! Então quer dizer que você gostou da aula? Eu pensei que estava ficando verde, esse cara é de outro planeta, só se for, nunca vi ninguém tão esperto assim em Odecam! E eu pensando em dormir até meio dia. — Disse ele. Por um segundo seu rosto mudou, os olhos se abriram e ele pareceu se tornar pensativo. — Eita, nem vou poder dormir até meio dia no fim de semana. Só amanhã. Agora me bateu um sono, Dani. — Disse Kauã e soltou um longo bocejo, desses que a boca se abre por inteiro e a mandíbula quase sai do lugar. Ele dobrou o corpo para frente e arrastou os pés para trás. — Acho que você deveria me carregar de volta, lembre do que o professor André falou, ninguém carrega ninguém, ninguém se carrega sozinho, Dani carrega Kauã até Arbós.— Eu posso te puxar pelos pés se você preferir. — Disse ela e segurou no tornozelo de Kauã, que agora caminhava em pulos com só uma perna no chão.— Golpe feio esse hein! — Disse ele ao conseguir de volta o tornozelo apreendido. Kauã ainda sorria quando, de repente, seus pensamentos afundaram em uma corrente única, como se sofrendo uma descarga. — A Nat disse que iria fazer uma inscrição para a Dusséria.— Ela vai tentar o concurso? — Perguntou Dani com as sobrancelhas erguidas.— Acho que... talvez. — Disse Kauã. Sua voz baixara um tom como que se tentasse atravessar algo denso, como um rio de lama. — Ela me falou que existem várias opções para trabalhar lá em cima, na verdade, eu ouvi ela conversando com a mãe dela sobre, ela não me contou nada ainda, então eu não sei de nada. Mas eu ouvi que ela pode ser desde a primeira secretária até servente de gabinete. Pode até não ser tanto, mas pelo menos vai ser o suficiente para cobrir todas as contas abertas que a família dela tem.— Isso tudo caminha só no campo da suposição, eu acho que um remédio seria você conversar com ela. — Disse Daniela voltando seu olhar para um lado. Kauã demorou um momento, mas finalmente seguiu o que os olhos da amiga apontavam. Natália estava ali, caminhando em direção à câmara de sussurros. — Daqui eu subo para Dusséria, a Dalila e a Vó subiram com o riquexó, a gente se encontra depois. Agora você deveria falar com ela. Você já está aqui, pergunte para ela quais são os planos, talvez não ajude tanto, mas pelo menos você trabalha com algo material. Pensamento crítico, não era disso que o professor estava falando?— Agora você vem citar a aula. — Disse Kauã. — Não sei não, Dani. Eu tenho coisas para fazer também, tudo bem que hoje é o meu dia de folga, mas você sabe, essas coisas às vezes, é melhor deixar tudo em descanso, não sei se devo perguntar algo assim, a gente só se conhece desde criança. É. Está bem, eu vou falar com ela. Você está certa, quer um prêmio? Te encontro aqui quando a feira terminar.— A Dalila vai descer primeiro, e eu vou ficar para limpar a barraca e pagar as malditas taxas. Acho que na metade da tarde eu já estou descendo, mas você não precisa me esperar. Converse com ela. — Disse Dani quando uma mulher a encarou com o rosto irritado. Sua saia era longa assim como o seu cabelo. No queixo espinhoso, ela firmava o olhar em Daniela, mas agora se voltando para Kauã. Seus olhos percorriam as túnicas velhas que os dois trajavam, desde o puído na barra de Dani, até o rasgo no capuz de Kauã.— Hum. Uhum. — Disse Kauã e desviou o olhar da senhora de vestido florido e rosto afiado. — Eu vou indo então. — Disse Kauã e esticou a mão para Dani. — Te encontro aqui. E me traga alguma fruta doce, é o mínimo a se oferecer para eu te ajudar na parte da escadaria.— Eu vou é trazer um pedregulho e amarrar ele nas suas pernas para que você desça ainda mais rápido. — Disse Dani ao apertar os dedos claros e frios de Kauã. — Se cuide. — Disse ela e agora seus olhos estavam finos como duas lentes polidas.— Você também. — Devolveu Kauã com um sorriso e com o mindinho esticado ele laçou o dedo dela em um nó de pele, osso e carne.— Amigos! — Disse Dani, e seu rosto era um grande sorriso.— Melhores amigos!~.~Os segundos pareciam se arrastar enquanto André caminhava abaixo do teto abobadado do castelo de Dusséria, seus passos ecoando levemente no piso de rocha fria. Acima, as colunas de pedra formavam grupos de três, curvando-se elegantemente como grossas mechas de cabelo entrelaçadas em uma trança firme, cada curva estalando contra o silêncio, como se sustentando o peso de todo o castelo. O ar ali dentro era denso, impregnado com o cheiro de veludo envelhecido e poeira esquecida, quase sufocante, pensou ele.Na paredes, a tapeçaria, desbotada pelo tempo, apresentava um amarelado nostálgico; ao centro, o tecido ainda mantinha sua integridade, mas as bordas desfiadas tremulavam levemente, unidas por anéis de cobre que chiavam ao contato, como se houvesse uma tensão nos fios que os conectam. Os anéis entrelaçaram-se, desenhando padrões que se fundiam em uma teia complexa, criando a vaga silhueta de algo indefinido. No centro da tapeçaria, um único desenho pálido, quase apagado, chamava a atenção — seu branco fantasmagórico parecia brilhar sutilmente contra o fundo opaco, uma marca do tempo que insistia em sobreviver.André já tinha visto aquela silhueta muitas vezes antes, em copos de barro, garfos de prata e nas malhas de latão da guarda regular. A costura ali deveria ter exigido pessoal suficiente para encher uma pequena fábrica por pelo menos dois anos de trabalhos intensos, pensou André. Linhas tão grossas que saltavam para fora, não como se fazendo um desenho, mas como uma escultura que abandona o seu túmulo para voltar à vida naquele tapete colossal. De abraços abertos e com três pares de asas, a anja de luz reluzia costurada na parede, condenada à vista do salão do castelo e seus nobres que de passos leves mal se anunciavam ao passar depressa rumo a seus aposentos.As mãos da anja de luz eram longas, longas como se, na verdade, fossem braços esticados para abraçar todo o mundo. Seus olhos eram pequenos contornos na linha alva onde a costura inclinava para dentro e depois para fora, moldando as curvas de suas pálpebras a mudarem conforme a luz erguia ali uma sombra. Conforme André encarava a tapeçaria, seus passos encolheram e antes que ele percebesse, estava parado a admirar a Anja. De baixo dos pés dela, André a via como uma gigante, quatro ou talvez até cinco vezes maior que ele.— Anja. — Disse o guarda que se aproximou de André. — O senhor precisa de alguma ajuda? — Perguntou ele ao erguer as sobrancelhas.André sentiu os músculos do rosto do guarda ficarem tensos quando se virou para olhar. Este possuía uma capa listrada, símbolo Dusséria, reconhecível há dezenas de passos de distância, e entre aqueles dois passos que os separavam André conseguia até mesmo encarar os poros do nariz do guarda.— Anja. — Respondeu ele com um sorriso completo, desses que fazem dobras nos cantos dos olhos. — Eu... — Disse e, sem pensar muito, voltou os olhos para a tapeçaria por mais uma instante. — Ela é muito bonita. — Disse e apontou para a Anja de Luz costurada. — Mas não, não é só isso, eu, eu também fui chamado para um conselho...André procurou em sua túnica onde guardou a carta. Enquanto isso, ele sentia os olhos do guarda o varrendo de cima a baixo. O sorriso murchou, mas só até ele sentir entre os dedos o envelope dobrado. — Aqui! — Disse André e retirou a folha amarela.— Certo. — Disse o guarda ao ver o carimbo em sua base.A armadura da guarda regular que ele usava refletia a luz filtrada pelos vitrais, dispersando cores por toda a sala, enquanto a imagem de André se distorcia nas curvas do peitoral de cobre polido. As alças curtas mal protegiam os ombros, deixando expostos pedaços de pele ao vento gelado que atravessava o castelo. O formato era triangular e grosseiro, moldado mais pela necessidade do que pelo design, mas ao menos fornecia espaço para a capa listrada de verde e vermelho, que parecia imaculada, como se nunca tivesse sentido o peso da sujeira, pensou André, enquanto seus olhos vagavam pelos finos músculos do braço do guarda, que contrastavam com o volume exagerado da armadura.A lança nas mãos do guarda era tão impecável quanto o peitoral, o cabo liso e a ponta reluzente denunciavam que não era empunhada há muito, se é que algum dia fora usada. A arma, embora imponente à primeira vista, parecia mais uma peça ornamental, destinada a impressionar os passantes, em vez de enfrentar qualquer verdadeiro perigo.Esta lança não deve ser muito mais pesada que a minha. E eu duvido que ele consiga atirá-la mais do que dez passos, isso contando com o melhor impulso da vida dele, e ainda seria muita sorte se ela encontrasse o alvo, não com essa armadura engessada.— As reuniões acontecem no salão das flores. — Disse o guarda e apontou com a manopla para a porta de madeira.— Obrigado. — Disse André, e o guarda devolveu a carta. André abaixou o rosto e deu um passo em direção ao corredor quando o guarda falou.— Sabe. Às vezes eu também faço isso. — Disse o guarda de olho na tapeçaria da Anja de luz. — Não sei explicar, mas cada vez que eu pego o turno aqui no salão, não sei. Parece que eu vejo algo diferente. Dependendo da luz de fora, se as velas estão acesas, mas ela parece mudar de acordo com o tempo, entende. Às vezes parece até mesmo que vai sair de lá. Vai bater asas e voar mais uma vez pelos céus. Só mais uma vez, e então vai retornar à parede como se nunca nem tivesse saído de lá.— Quem sabe? — Disse André e soltou um riso amarelo, destes que quase não se mostram os dentes, mas sim sua gengiva rosada. — Tenha um ótimo dia. — Disse e terminou a conversa com uma reverência de cabeça.Aposto que, se ela voltasse de fato, nem mesmo Dorocaso iria sobrar dessa vez, pensou ele enquanto dava passos longos para longe dali.André passou pela porta de madeira e se viu de frente para um estreito corredor, mas este não desembocava em outra porta e sim num vão em meia lua que permitia a passagem ao tal salão das flores, ornado com cortinas brancas que guardavam o interior dos olhos de fora.O chão era de madeira em filetes, e ali seus passos ressoavam pelas paredes de pedra como batidas de martelo. André passou a mão na cortina e topou com almofadas pelo chão. Ele correu a vista pelas dúzias de almofadas ornadas com desenhos que prenchiam o piso, só para então levar seus olhos até aquela frase escrita na parede do salão das flores.— Conselho de Educação. — Leu André.— O senhor é o professor do curso de jovens aprendizes? — Perguntou a voz trêmula vinda das costas de André. Este se virou com um movimento de pescoço e encontrou uma pirâmide de cabeças o encarando. Com narizes retos e tortos, olhos azuis, castanhos e esverdeados, os quatro homens empilhavam as cabeças ao lado da única mulher. Esta tinha a pele mais clara, quase rosada, senão pelo amarelo ao redor de suas vistas. Com um queixo recuado em direção ao pescoço, o rosto dela desenhava uma curva achatada como se tivesse sido pressionado contra o chão por muito tempo sem conseguir retornar à sua forma original.Os poros de André se fecharam como se uma ventania empurrasse areia para dentro de todos os bueiros da montanha. Seu coração começou a acelerar, mas sem desviar o olhar da senhora que fizera a pergunta, ele cerrou os punhos e ensaiou uma resposta, mesmo com a garganta seca.— Eu mesmo. — Disse ele e se curvou para frente, não por respeito, mas para que não desconfiassem de seu disfarce.— Eu disse que era ele. — Falou o rapaz de olhos azuis que passou pelos outros que ainda relutavam a deixar o portal em meia lua da sala. — Muito prazer. — Disse o rapaz e estendeu a mão para André. — Eu me chamo...— Príncipe Mello. — Disse André e completou a frase sem pensar que estava interrompendo o príncipe. — Eu me chamo André.— E ele até me conhece! — Disse o príncipe Mello, e seu rosto se abriu como se um sol amanhecesse por entre seus olhos. — Pois meu pai pede desculpas, ele precisou se ausentar, contudo, me enviou em seu lugar para discutir uma parte tão necessária do governo de Dusséria, que é essa da... — Disse príncipe Mello, sem encontrar palavras para terminar a frase. André manteve os lábios curvados, mas não pensou em interromper o príncipe mais uma vez. — São muitas coisas necessárias, e entre essas coisas necessárias, existem as ainda mais necessárias, que seriam... — disse o príncipe e se virou para a frase pintada no mural. — Conselho de Educação! — Leu ele com a voz animada. — Nós vamos ganhar conselhos sobre educação? Ou nós é que daremos conselhos? Falta de educação conta como educação?— Não, majestade. — Disse o outro rapaz que se aproximou. Ele tinha olhos escuros e a pele toda coberta por uma malha gasta e prateada. — Nós vamos aprovar o plano de ensino para jovens aprendizes de Arbós que estudam em Odecam. — Disse ele ao pé da orelha do príncipe, mas não baixo o suficiente para fugir aos ouvidos de André.— Ah! — Disse o príncipe Mello com um olhar de surpresa que se seguiu de um balançar de cabeça. — Muito bom. Falta mais alguém?— Estamos todos aqui. — Disse a mulher que falara primeiro quando André entrou no salão. — Só faltava mesmo era o professor. — Disse ela com um riso azedo, que apertava os cantos da boca até que rugas aparecessem ao redor de seus lábios.— Muito bem então. — Disse o príncipe Mello, que pareceu sentir o clima tortuoso que marcava a interação entre Rosa e Trype. — Da esquerda para a direita. — Disse o príncipe. — Castor. — Disse e apontou para o senhor com bigodes pontudos que pendiam para os lados. — Castor é o chefe da guarda regular. Do lado dele. — Disse o príncipe e se dirigiu ao rapaz que antes sussurrara em seu ouvido. — Chefe da guarda especial, patrulheiro Trype. —Falou o príncipe. Os olhos de André e Trype se cruzaram por um momento, só até André curvar a cabeça para frente. — E o último ali é o Dido, chefe prisional. — Disse Melo e apontou para o homem alto e magro como um tronco de bambu. Seus braços eram esguios e a barba esbranquiçada pendia de seu queixo até metade do peito coberto pelo peitoral cor de cobre.— Anja. — Disse André pensando para si qual função teria um chefe prisional numa reunião de educação.— Pois bem. — Disse o chefe prisional, e todos os seis se sentaram em almofadas no chão. Sua voz era fina como se uma criança pronunciasse cada sílaba, e André sentiu até mesmo um impulso de rir, mas este logo foi sobreposto pela visão escandalosa do olhar de Dido. Veias vermelhas saltavam fornecendo uma mescla de olhos humanos com algo quase reptiliano. — Eu atualizei o plano de educação, as diretrizes e os tópicos a serem abordados. — Disse ele e puxou um livro. Com uma capa em couro escuro, o chefe prisional o abriu e postou no chão em sua frente.— Isso vai esperar um pouco. — Disse Dona Rosa. — Precisamos aprovar os alunos ainda. — Disse com os olhos quase se revirando para trás. — Muitos órfãos esse ano, a coroa não vai poder aumentar o aporte de dinheiro, o acordo eram cinco aprendizes. — Disse ela e ergueu a folha com nomes em uma coluna. — Temos oito. Três precisam "rolar".— Desculpe pela interrupção. — Disse o chefe da guarda especial, Trype. — Mas no ano passado ficou em aberto aquele pedido da aldeia Xomak de incluir alunos... — Dizia Trype quando a mão de dona Rosa subiu como uma faca a fatiar o ar.— Me desculpe, não sei se os seus ouvidos mestiços escutaram, mas nós mal temos dinheiro para ensinar os imundos, e você ainda quer que ensinemos os selvagens? Por favor chefe da guarda, atenha-se aos seus afazeres de concordar em silêncio, sorrir e acenar com a cabeça. —Disse dona Rosa e revirou os olhos que giraram até voltar à coluna a folha de papel que ela segurava.André sentiu o frio entrar em seu peito enquanto encarava o rosto de Trype que ia murchando conforme o silêncio se arrastava pelo salão. Dido, o chefe prisional, esticou o braço e tentou alcançar o ombro de Trype, mas este se ergueu e deixou a sala antes que outra palavra fosse pronunciada.— Quando voltar aproveite e traga uns bolinhos de nuvem. — Disse ela com sua voz tortuosa, acentuando as sílabas finais e o olhando pelos cantos das vistas. — Voltando à realidade. — Disse ela com o sorriso que apertava as entranhas de André. — Aurélio, Ângela, Bruno, Daniela, Leila, Kauã, Nilva e Sílvio. Quatro meninas, removemos duas, e dos meninos tiramos um. Quatro alunos é o ideal, duas vagas no castelo e duas vagas na guarda, repomos os que morreram e ainda damos oportunidades para a base.— Então... quer que eu risque quem? — Perguntou Dido enquanto coçava a barba branca.— Tire essa Ângela e essa Daniela. — Respondeu dona Rosa ao erguer o papel amarelado. — Os pais dessa Daniela eram de Sama, então tecnicamente ela nem é nosso problema, é problema da gestão anterior. Essa Ângela tem três irmãos para cuidar, então provavelmente nem vai conseguir permanecer em tempo integral no castelo. — Disse Dona Rosa e ergueu outra folha. — Dos rapazes, eu diria que nenhum de fato presta, mas esse daqui se destaca entre os medíocres. Ele se inscreveu ano passado para curativas. — Disse ela, o sorriso espinhoso se ergueu em seu rosto mais uma vez enquanto apontava para o círculo na folha. — E a nota dele foi tão baixa que mesmo dobrando ele não passaria, não vamos perder tempo nos revirando no lixo, vamos focar nos que de fato podem ser úteis. — Disse ela agora para o príncipe Mello.— São só crianças. — Disse o chefe da guarda regular, Castor. Este estava com as sobrancelhas tombadas para o centro, como se erguesse algo que precisava de muito esforço, o que lhe concedia uma visão perturbadora, pensou André ao recuar o pescoço.—Não vamos com isso de novo, Castor. São crianças até o momento que não são mais. — Disse dona Rosa. — Você deveria ser o primeiro a concordar comigo, para falar a verdade, você é quem passa o dia inteiro correndo atrás desses marginais aqui em Dusséria, por que quer tanto colocar mais uns aqui em cima? Quer receber mais alguma medalha, acho que para você talvez seja até melhor, quanto mais marginais mais chance você tem de se mostrar na frente do príncipe Mello, mas eu estou realmente pensando no bem-estar dele. E bom. — Disse ela com um pigarro e um olhar afiado em direção ao chefe da guarda regular. — No fundo, eu sinto que eu sou a única a se importar de fato com o seu bem-estar, vossa majestade.— Ah, não comece com essas suas mesuras, dona Rosinha! —Disse Castor e ergueu o tom de voz.Por entre a cortina e as frestas da parede de pedra, um som deslizou feito água ao acertar os vincos na palha que sustentavam as paredes da sala. Fino como se fossem passarinhos quem os estavam compondo, porém esse som era tocado em cordas e não em bicos. Era como se o mundo inteiro ficasse em silêncio, e não eram mais as vozes de Rosa e Castor gritando o que André escutava. Aquela canção era tocada na viola, uma melodia de escalas afiadas, feito aquele dia tantos e tantos anos atrás.André levantou sem pensar. De pé, ele caminhou em direção ao portal. Só quando estava atravessando a cortina que se pôs a pensar se seria estranho aquilo, mas quando voltou seu rosto para os outros sentados sobre as almofadas viu que nenhum o encarava. Talvez pudesse até mesmo deixar o castelo, e sua presença só seria percebida horas depois, mas ele não iria embora. Iria até a fonte do som.André ficou na ponta dos pés e saiu de costas como se ainda estivesse participando daquela discussão acalorada. Sua cabeça balançava enquanto ele sentia a parede com os dedos para trás.Escorado ao lado da tapeçaria da anja, o homem que dedilhava a viola o encarava.O coração de André se apertou por um segundo, e ele pensou que poderia ser atacado, mas seus músculos desceram como se relaxassem, todos unidos e todos de uma única vez.De olhos vermelhos, o violeiro terminava sua canção do outro lado do salão, embaixo da tapeçaria da anja de luz. A música crescia por entre as paredes de pedra, e como uma toalha de mesa que é puxada sem derrubar os pratos, a música terminou, e os olhos vermelhos do Violeiro se encontraram com os pretos de André.— É... é mesmo você? — Perguntou André com o rosto ressabiado, deixando à mostra sulcos entre sua bochecha marcada enquanto via o violeiro se aproximar.— Eu te disse. — Falou o Violeiro, e sua voz ecoou estranha, como se fosse emitida por uma pedra oca. — Te disse que nós iríamos nos ver mais uma vezes antes de você morrer. A próxima será a última.~*~A tarde se arrastava como uma melodia monótona, perdendo o ritmo e o encanto, enquanto Daniela recostava-se contra a muralha áspera e fria. À sua frente, a Feira do Anel se espalhava desde o interior dos muros até além dos portões, com as lojas decoradas por círculos pálidos esculpidos na pedra, como anéis esquecidos pelo tempo. As tendas formavam uma linha irregular, com pavimentos largos, gravados com inscrições desgastadas, cordas mencionavam as mercadorias que se estemdiam subindo pelo caminho de tijolos da vila enterrada de Marcélia até a ali, a cidade alta, Dusséria.Conforme o morro ascendia, a feira se transformava em um único corredor lotado, onde as barracas de bambu trançado se amontoavam umas sobre as outras, a ponto de, vistas de longe, parecerem uma extensão do próprio muro de Dusséria.Acima, as aves traçavam círculos preguiçosos no céu, suas sombras deslizando sobre a multidão da mesma maneira que as crianças rondavam as cocunilhas que caíam no chão. Pequenos dedos ágeis, ocultos sob as longas mangas, furtavam as sementes com destreza silenciosa. Uma criança rápida podia encher quase meio quilo de cocunilha em um dia, esvaziando bolsos cheios no final da tarde. Depois do roubo bem-sucedido, elas corriam para os feirantes, procurando quem pagasse um preço justo pelo saque. Mas havia sempre o risco de cruzar com Donavon, cuja reputação de manipular a balança era tão conhecida quanto suas trapaças. Por isso, as crianças astutas sempre conferiam seus ganhos antes, levando-os a uma "balança amiga" para garantir que não fossem enganadas.Com o cabelo preso na nuca, Daniela não parecia se importar com a procedência rasteira das cocunilhas, e talvez por isso houvesse uma fila de crianças com os dentes por crescer ao lado de sua barraca. Conforme a feira ia terminando, elas se aproximavam com os sacos de sobras do chão.— Um, oito... — Disse Dani, adicionando o peso pequeno em forma de ovo chato. — Dois. — Completou ela, descendo o olhar até a menina de cabelos claros que encobriam a vista; essa parecia ser muito jovem para ter passado até mesmo pelo rito do anel, pensou Dani. — Você quer que eu amarre o número em uma trança para você não esquecer?— Não precisa não, tia Dani! — Disse a menina com o sorriso que deixou à mostra dois dentes crescendo separados na parte de baixo. — Um! — Disse a menina, erguendo o polegar. — Oito! — Continuou ela agora erguendo quatro dedos em cada mão. — Dois! — Disse ela, elevando os dois mindinhos!— Isso! — Disse Dani com um sorriso que deixava seu rosto iluminado, quase igual àquela tarde em que eu a conheci. Seus olhos têm aquele brilho estranho, que parece acender o que toca, e o brilho resvala para dentro de volta, quase como se ali a luz não fosse nada mais do que um líquido que emana de sua alma acesa.Nos meses de seca, Dani gostava de montar a barraca voltada para o precipício; ali, o vento soprava macio como lã, e também nessa época, os produtos acabavam mais cedo. Dalila dizia que quando ela era criança, a feira acontecia só de manhã, então ela saía de casa quando ainda era noite para vir armar tudo. Quando o sol nascia, tudo já estava montado, e antes de chegar ao topo, já não havia mais nada para se vender.Hoje, Dalila vem de manhã logo que a passagem por Marcélia é liberada. Lá, cada carrinho de frutas é pesado parte a parte, então, até que ela chegue, o sol já está meio caminho do topo. Dani, uma vez, perguntou se Dalila não preferia acordar mais tarde, e ela disse que sim; contudo, montar a feira nesse horário possuía um grandessíssimo efeito adverso para os feirantes, em especial um diretamente relacionado aos clientes.— Esse milho está horroroso. Péssimo. Parece que enterraram no lixo e depois passaram na lama. Você deveria ser presa por tentar vender algo assim, mocinha. — Disse a senhora com um vestido branco atado no ombro, com olhos verdes que condenavam Daniela por meramente ofertar aquela espiga que tinha meia dúzia de fiapos desgrenhados.— Está quente. — Disse Dani, apontando para o sol enquanto se abanava com a mão.— Então você deveria abanar eles. — Respondeu a senhora e virou o rosto como se Dani houvesse insultado todos os seus antepassados.Daniela apertou as sobrancelhas, mas não falou mais nada. Não que não quisesse, mas sabia que qualquer diálogo ali poderia ser refletido na reputação de Dalila, e Dalila não precisava de mais ajuda para arranjar problemas.Dois anos atrás, quando a ensino báscio havia terminado Dani estava ajudando na barraca dos sucos de Vó Rita. No dia, Dalila já estava com quase tudo vendido, senão pelas goiabas de terço. Dani manejava o coador para Vó Rita, que cobria o turno de dona Olívia, acamada com uma perna quebrada.Foi então que um rapaz chegou e pediu dois copos de suco. Ele comeu um enrolado de coconilha assada e ficou ali mais um pouco, falando como as crianças em Dusséria eram mimadas, como tinham a aprender com as crianças esforçadas de Odecam. O rosto dele mudou quando Vó Rita disse que ela própria não era dali, mas do exterior, e que Dani, por mais que morasse em Arbós, na verdade era natural de Sama, a cidade que se foi.O homem começou a fazer comentários estranhos, e na época Dani nem chegou a escutar direito; achou que ele estava apenas dizendo fatos sobre a cidade, mas Vó Rita fechou a cara como se tivesse chupado o limão mais azedo do mundo. Na hora de sair, ele foi pagar e disse para Vó Rita que só havia tomado um copo de suco. Dani nem pensou na hora de corrigir o erro. Foram dois, ela disse com os dedos erguidos. Dani ouviu o que ele falou, mas as palavras atravessaram a menina, que ficou apenas as escutando ecoar entre as gotas que pingavam do coador."Além de suja, ainda é rata." — Repetiu Daniela em pensamento. Aquela lembrança era estranha; no momento, tudo aconteceu tão rápido, e mesmo assim, ela sentia como se conseguisse ver com perfeição cada segundo que se sucedeu, quase como se revivesse fisicamente o encontro.Dalila estava na barraca no corredor oposto ao de Vó Rita, mas quando Dani a viu, ela já havia saltado para fora da tenda em direção ao homem de túnica verde com ornamentos em vermelho. Dani não sabia se sua irmã havia planejado aquilo, mas Dalila arrancou uma das hastes da barraca e, como que empunhando uma lança, passou cabo pelo pé e derrubou o homem.O golpe que veio em seguida o atingiu nas costas, e quando Dani deu a volta para ver onde ele fora, já o encontrou no chão, debulhado em lágrimas, mas Dalila ainda não havia parado de o acertar com a vara de bambu.Os outros feirantes não foram tão ágeis para separar Dalila do homem, que saiu com o rosto sangrando, pronunciando ofensas por entre os dentes trincados. O que Dalila não sabia, e só ficou descobrindo na semana seguinte, era que aquele homem era da guarda regular. Um dia eles apareceram lá embaixo. Bateram tanto nela que até hoje ela anda mancando. E feito foice, o visto de Dalila para montar a barraca havia sido cortado, o que eram duas barracas mais a de Vó Rita, agora se resumiam a um puxadinho de meia tenda que custava o preço integral.— Talvez eu traga um abanador da próxima vez. — Disse Dani ao aterrissar de volta no mundo real.— Tia Dani! Tia Dani! — Disse a menina de olhos castanhos.— Eu já falei para me chamar de prima. — Respondeu Dani com o rosto ainda suave. Seu ombro se virou para o lado, e os cachos se curvaram para trás. — Não sou tão mais velha que você. — Disse ela só agora notando os quatro sacos que a menina segurava. — Isso é tudo coconilha? Ou você colocou pedras no meio? Porque o peso pode até dar maior, mas na hora de pagar, o Donavon vai conferir se são todas coconilhas mesmo.— São sim, um moço acabou de comprar tanto que colocaram de pá dentro do riquexó dele, virou um monte no chão. — Disse a menina e começou a colocar os sacos marrons sobre o prato da balança.Dani se virou e pegou o contrapeso quando o seu sorriso murchou em uma expressão de interrogação. Um vulto passou na sua frente; era algum inseto com asas, uma borboleta talvez, pensou ela ao sentir seus pelos da nuca se eriçarem. Foi como se todos os sons ao redor houvessem sumido. Dani teve a impressão de conseguir ouvir até mesmo seu coração batendo forte, mas quando seus olhos se voltaram para o vulto, a borboleta sumiu no meio da multidão.— Hum. — Disse Dani e voltou a olhar o prato da balança. — Sete. Cinco. Cinco. — Esse realmente estava carregado. Diga que pegou com as outras crianças também, leve umas duas com você para ele não achar que você conseguiu tudo isso sozinha. Aquele cara é um picareta. — Disse Dani e devolveu os sacos de coconilha para a menina. — E se precisar de alguma coisa, me chame que eu vou lá em um pulo. — Disse Dani e completou piscando o olho esquerdo.— Um pulo só? — Perguntou a menina com um olhar confuso que deixou Dani de sorriso torto, desses que deixam de fora um pedaço da gengiva.— Eu pulo alto. — Disse Dani e completou a fala com uma piscada de olho, e naquele instante, seu sorriso estava de volta.A menina saiu, e com ela a tarde se foi. Dani repassou as espigas para Dona Carmélia, que fazia a distribuição do que sobrava entre os feirantes. Dalila esperava do lado de fora da cidade com o carro de madeira, o riquexó como eles chamavam. Este era puxado na frente, e quando solto, seu eixo pendia para baixo; uma carroça levada por pessoas era como chamava Vó Rita.Dalila pegava a mistura, que era o que sobrava da venda do resto. Às vezes, vinham cenouras queimadas, às vezes, vinham batatas nanicas, mas sempre era algo útil para se ter, especialmente porque, como não havia compra ou venda na mistura, os guardas não podiam cobrar a taxa.Dani desmontou a barraca enquanto Dalila descia a montanha. Essa era a parte mais fácil, mas para Dani era também a pior. Com as costas, ela arrastava as armações de bambu até o guardador. Ali, uma fila se estendia no sentido topo do muralha de Dusséria. Os guardas empilhavam as varas em um armário com um lado de pedra polida e o outro de pedra escavada.— Registro? — Perguntou o guarda vestindo aquela capa verde e vermelha atrás do caixa.— Um meia nove dois. — Disse Dani de má vontade. Seus ombros eram largos, mas agora se apertavam do mesmo jeito que seu rosto, fechado em uma expressão de raiva.— Ni, Ni,Niela... Daniela? — Perguntou o guarda ao apertar os olhos para a lista.— Isso. — Disse ela com a cabeça e colocou doze moedas sobre a tábua de pedra puída.— Vão ser quinze. — Disse o guarda ao encarar as duas pilhas de seis moedas.— Hm? — Disse Dani sem conseguir pronunciar nada melhor. Seus músculos se contraíam como se o vento forte a empurrasse para fora, mas ela lutava para permanecer ali parada.— Vão ser quinze. — Disse o guarda ao encarar as duas pilhas de seis moedas.— Hm? — Disse Dani, sem conseguir pronunciar nada melhor. Seus músculos se contraíam como se o vento forte a empurrasse para fora, mas ela lutava para permanecer ali parada.— Já escureceu, aí entra a taxa de pernoite da guarda. — Disse o guarda regular, com o capacete encobrindo os olhos.— Uhum. — Disse Dani, sorrindo por entre os dentes que se esmagavam. — Claro. — Disse enquanto balançava a cabeça em negação. — Aqui. Uma. Duas. Três.Dani ouviu o carimbo descer ao lado do seu nome e se virou de costas, com medo de que, se permanecesse ali mais um instante, iria fazer o guarda engolir aquelas moedas uma por uma através dos mais diversos orifícios.— Dani! — Disse Dona Olívia, que segurava em seus braços a caixa de madeira. Ela sorriu para Dani, e Dani não conseguiu não sorrir de volta.Na caixa havia goiabas que não entraram na mistura, algo que acontecia quando se era a última tenda a fechar. Com a caixa erguida, Dani começou a sua descida pelo morro de Dusséria. Os outros feirantes haviam terminado há muito, e ela era a última que residia em Arbós a descer a muralha. Além dela só havia Dona Fá.— Soube que a sua irmã foi que encontrou aquela senhorinha falecida ontem lá embaixo. Souberam algo?— Nada. — Respondeu Dani. Mas Dalila havia ficado estranha, talvez a conhecesse, pensou ela se despedindo de Dona Fá.O sol estava quase apagado no horizonte quando ela viu de novo.A borboleta.Dani estava sozinha carregando aquela caixa pesada, mas sem pensar mais uma vez, logo se virou para encarar aquelas asas azuis com preto.Ela pensou em sorrir, mas um frio subiu pelo seu rosto. As asas da borboleta batiam em silêncio, mas de novo Dani sentiu seu coração batendo forte dentro do peito.Seus olhos se arregalaram e, num instante, tudo estava escuro como se o sol nunca nem houvesse existido, e cada uma das milhares de estrelas no céu não houvessem passado de um devaneio doente de uma mente perdida.Mãos batiam umas contra as outras, era o que Dani ouvia. No começo pareceu estranho, mas então ela entendeu que eram palmas. Olhava para o lado, mas seu corpo pareceu não estar ali, apenas parte dele, apenas sua mente.Era uma sala escura, senão pela vela que pendia no meio do retângulo. Um bolo, pensou Dani, e nesse segundo vozes brotaram das paredes como ervas que buscam a luz do sol. Eram pessoas ao seu redor. Um homem e uma mulher batiam palmas ao lado de uma menina pequena. Quem eram eles, pensou Dani, mas do mesmo jeito que sua mente entrou ali, ela saiu.De volta ao morro, Dani viu que a caixa estava no chão, e goiabas rolavam morro abaixo. No reflexo, ela se esticou para frente, para impedir que as frutas se perdessem, quando sentiu o medo retornar como uma faca gelada contra suas costas.O frio que Daniela sentia no rosto agora se espalhava por todo o seu corpo. Subia como uma pedra de gelo por sua pele, e seus poros se fechavam um a um, enquanto seus pelos se eriçaram em uma cascata.Ela inclinou a cabeça de lado quando sentiu as cerdas finas arranharem a pele do seu pescoço, enviando um arrepio súbito pela espinha. As asas da borboleta, enormes como folhas de bananeira, se agitavam lentamente. A cor, um pálido esbranquiçado, lembrava a mistura de muco com areia velha, como se o tempo e o toque do ar tivessem sugado toda a vitalidade. No lugar das pequenas patas delicadas que esperava ver, Dani percebeu garras curvas, afiadas como espigas, revestidas por uma penugem suja. A cada batida das asas, essas garras puxavam a pele frouxa do torso da criatura, que se esticava e enrugava como se fosse costurada às pressas entre escalpos sobrepostos, formando uma capa grotesca e pálida que, de alguma forma, ainda conseguia atuar como asas.— Ahhh! — Gritou Dani e deu um passo para trás. O pesadelo bateu asas e foi em frente, pronto para enterrar suas presas, mas Dani não pensou duas vezes e disparou morro abaixo, correndo com pernas e braços. Voando em asas tortas vinha o pesadelo atrás dela.~*~— "Quem, melhor do que os oprimidos, estaria preparado para compreender o significado terrível de uma sociedade opressora? Quem sentiria mais intensamente os efeitos da opressão? Quem, senão eles, compreenderia a necessidade da libertação? Libertação que não será alcançada por acaso, mas pela práxis de sua busca, pelo conhecimento e reconhecimento da necessidade de lutar por ela." — disse Kauã, fechando a página que estava recitando.— Mas o que é práxis? — perguntou Natália. Seus olhos tinham a cor de caramelo, e quando Kauã os observava, sentia um borbulhar no estômago, como se este também pudesse captar a suavidade nos traços que compunham aquela feição doce.— Olha, vou te dizer que eu também não tenho certeza. Mas pelo que o professor André inferiu. — disse Kauã, e um sorriso iluminou o rosto de Natália.— "Inferiu". — disse ela, ampliando o sorriso. Seus cabelos amendoados caíam em linhas finas sobre o ombro, e neles os olhos de Kauã se perderam por um momento, que por vezes revelava mais do que apenas um instante. Ele voltou a olhar para a folha, mas sentiu seu rosto esquentar.— O professor ensinou várias palavras novas. — disse ele, encarando os próprios pés. — Práxis seria um conjunto de ação e teoria, ou teoria e prática. Não apenas teoriza, nem apenas pratica. Os dois caminham juntos; um melhora o outro, a teoria se transforma com a prática, a ação se vale da teoria, num crescendo, como uma bola de neve, como a vó Rita diz; juntas, elas se enriquecem com conhecimentos que só poderiam ser descobertos por essa interação, por esta forma.— Como almas gêmeas... — disse Natália, acenando positivamente com a cabeça. — Você se animou com esse curso. Mas vocês vão estudar para o concurso em Dusséria também? É para isso que você está fazendo esse curso, não é?— Ele abrange um pouco além do estritamente necessário. — disse Kauã, e num segundo seu sorriso murchou. — E também não é como se eu precisasse de muito estudo para girar uma roda. Provavelmente, eles ensinem tudo no ato. — disse Kauã. Ele jogou o corpo para trás e deitou na pedra gelada, erguendo as pernas. Seus joelhos dobraram, e suas coxas começaram a aparecer por debaixo da túnica. — Na aula de hoje, vou ensinar vocês a pedalar. Primeiro passo, pedalem. — disse ele com voz grave. — Segundo passo, parem de pedalar. Vocês estão formados. — Natália ria enquanto ele continuava a pedalar, com um rebolado que girava enquanto seus braços se erguiam e se abaixavam. — Tipo isso...— É, mas para isso, você precisa passar no concurso ainda. Me diz uma coisa, vizinho. Você não queria e curativas?— É. — disse Kauã, e a imitação derreteu num instante. — Mas não iria acontecer. Eles fecharam o programa na torre. — disse ele, e seus olhos subiram até o castelo no topo da montanha. — E mesmo que não tivessem fechado, eu não teria como ir para lá. — disse Kauã, sentindo seus olhos se fecharem, mas os contorceu para olharem para Natália mais uma vez.Parados ali em Odecam, até que não parecia tão ruim ter desistido de curativas. Pelo menos, ele poderia passar no concurso e ficar por ali mesmo. Perto dela.— Mas e você, não estava fazendo aquele curso de secretariado para Dusséria também?— Shiu. — disse Natália, olhando por cima do ombro. Suas vestes claras não balançavam no vento, mas Kauã sentia como se elas ganhassem vida ao se envolver sobre a pele dela. — Não é bem um curso, é mais uma promoção. Ainda é de faxina, mas já é lá dentro.— Lá? — perguntou Kauã, com as sobrancelhas arregaladas.— Eu vou morar dentro da montanha, além de Odecam, em Marsélia. — disse ela com um sorriso. — Mas isso, se me aprovarem, né. O que, vindo de mim, é uma questão pertinente.— É claro que você vai passar. — disse ele com um sorriso sincero.— Mas ainda assim, nós vamos ficar perto um do outro, não vamos? A central dos bondes fica lá dentro; é só uma questão de tempo até você também passar no concurso.— Ahã, só questão de tempo. — disse Kauã, com os olhos abaixados. Em sua mente, tentava esconder aquela mentira ao mesmo tempo que tentava não pensar em Nat tão longe, mas até ali estava apenas falhando nas duas.Quando Kauã ergueu o rosto, seus olhos se encontraram com os dela, e ele soube que ela entendera. Um silêncio brotou no meio dos dois, e só foi quebrado quando ele olhou para o céu.— Já está anoitecendo. — disse Kauã.— Bem observado. — disse ela, com um riso no final da fala.— Não. — disse Kauã, com a testa esticada para cima e os olhos esbugalhados. — A Dani ainda não desceu. — disse ao encarar a escadaria para Dusséria.— Será que a feira se estendeu até mais tarde?— Se os outros já foram embora. Dalila saiu primeiro com o riquexó. Dona Olívia passou agora, e ela é sempre a última a fechar a barraca de doce. — disse Kauã, ao se levantar, apontando para o carrinho que descia em direção a Arbós. — Eu vou atrás dela.— Você vai? — perguntou Natália, com um ar de surpresa.— A gente se vê depois, vizinha! — disse ele, disparando morro acima.— Ah, está bem. Se cuide! — disse ela, e Kauã virou o rosto uma última vez para ver seus olhos cor de amêndoa.As escadas que levavam a Dusséria não era que nem a escada entre Arbós e Odecam, ela era formadas por tijolos brancos, que, com o tempo, ganharam um tom acinzentado, e, por ali, Kauã subia três degraus por vez. Ao seu lado, o sol já estava submerso no vão do horizonte, e agora o anel ao redor do planeta refletia de um ângulo torto a luz que guiava seus passos largos.Conforme ele subia, a escadaria recuava para dentro pouco a pouco, chegando ao ponto em que ele quase não conseguia ver os degraus poucos metros à frente. Mas enquanto ele andava, um novo lance vinha surgindo, escondido sobre a vegetação rasteira.— Ãh? — perguntou Kauã ao ver um vulto sentado nos degraus. Seu coração acelerou, mas seus passos diminuíram. — É... — disse ele, pensando que o som revelaria a silhueta sentada, mas nada aconteceu.Na ponta dos pés, ele chegou a menos de dois passos da figura. Seu cabelo era loiro, comprido e solto, indo até o início das costas da moça. Seus olhos estavam fechados, e agora de perto ela parecia tão pálida que ele não entendia como de longe poderia estar coberta pela escuridão.Kauã dobrou o joelho para ficar na altura da moça, mas o estalo de suas juntas fez com que os cílios dela balançarem.— Pois não? — Perguntou ela ao abrir os olhos.O coração de Kauã parou por um instante enquanto seu corpo absorvia o susto. Ele recuou até quase ficar na beirada da escada, a apenas um pé do abismo além dela.— Ã... o, olá? — Perguntou ele. Kauã ainda não entendia o que estava acontecendo, mas sua atenção foi fisgada pelo brilho esmeralda dos olhos da moça. O brilho era tão forte que demorou mais um segundo para ele notar no bracelete uma luz que pulsava ali. — Você está bem?— Ah. — Respondeu ela. Sua voz era pesada, como se fosse um uivo e não palavras que ela planejasse falar. — Eu estava... recarregando as energias. sabe? — Disse e encarou a fivela em forma de meia lua do próprio cinto e em seguida o bracelete branco.— Ah... tá. — Disse Kauã, chegando um passo mais perto. — Você estava tirando um cochilo... na escada?— Eu vim de longe. Eu sou daqui, mas agora eu vim do sul. Fiquei sem forças e precisei sentar aqui um pouco. — Disse ela com um longo bocejo.— Entendi. — Mentiu Kauã, com as sobrancelhas apertadas em duas faixas pequenas. — Então está bom, você está bem, precisa de alguma coisa?— Não. — Disse ela voltando à posição anterior. — Acho que mais umas duas ou três horas já vão ser o suficiente. — Disse ela e balançou a cabeça de olho no bracelete.— Minha vó diz que menos que oito vão te deixar com rugas mais cedo. Mas ela é cheia de rugas, então também não sei. Bom, eu vou indo. — Disse Kauã e apontou para os degraus de cima da escadaria.— Então tá. — Disse a moça ao selar os olhos. — Só cuidado com o pesadelo.— Ah sim. — Disse Kauã, que parou de subir. — Quando você diz pesadelo, você quer dizer cuidado para ter apenas bons sonhos na hora em que eu for dormir? — Perguntou ele com o rosto ondulado.— Também. — Disse ela ao balançar a cabeça. — Esses, e aquele que estou perseguindo.— Você está perseguindo um pesadelo? — Perguntou ele como se tivesse olhado para o céu e visto um sol cor de grama.— Isso. — Disse ela no mesmo tom.— Boa sorte então. — Disse Kauã e ergueu o braço.Ele continuou a subir as escadas, mas o rosto daquela moça ainda caminhava com ele.— Que papo estranho. — Disse ele ao avistar a curva da escada; já estava quase em Dusséria. Ali os degraus se amontoavam uns sobre os outros, parecendo mais uma onda do que uma reta.Ele subia na ponta dos pés, mas mesmo assim mal conseguia apoio entre os tijolos. Com lama, aquela estrada ficava muito mais perigosa, pensou Kauã ao lembrar do conto da família que caiu.Vó Rita lhe contou quando ele ainda era pequeno. Quatro pessoas deslizaram pelo barranco em dia de chuva. O líder de Dusséria teve que ir até o território Xomak para reaver os corpos, pensou Kauã, e o frio lhe subiu pela espinha enquanto ele encarava os tijolos cor de cinza.— Onde você se meteu, Daniela? — Perguntou ele, mas antes que a frase pudesse ecoar pela serra, ele sentiu algo bater na sua canela.Era algo mole, e ele se abaixou pensando que havia encontrado uma pedra macia. Ao erguer a esfera, Kauã fez com que a luz do anel iluminasse a pedra, mas no momento que a segurou já soube que não era isso. Kauã aproximou a esfera do nariz e sentiu o cheiro doce que o acompanhava.— É uma goiaba? — Perguntou ele e abocanhou a lateral menos suja da fruta. — Hummm. São as da Dona Olívia — Disse de olhos fechados. O gosto doce inundou a sua boca, e conforme seus dentes reduziam a goiaba até uma pasta, ele reabriu os olhos e encontrou uma silhueta familiar no horizonte acima.A silhueta tinha cabelos longos e pretos que balançavam conforme ela corria escadaria abaixo. Kauã parou de andar para entender o que estava olhando.— Dani? Dani! — Disse ele e ergueu a meia goiaba com a mão. — Eu posso pegar uma?A menina ainda estava longe, mas o seu berro balançou Kauã como uma ventania repentina.— Kauã! — Gritou ela. Suas pernas cobriam meia dúzia de degraus por salto, e agora ela já estava a meio caminho dele. — Corre!!— Hm? — Perguntou ele sem saber se havia entendido o que ela falara, contudo antes que pudesse tecer mais uma pergunta, um par de asas rasgou o horizonte em sua direção.Como se mãos costuradas umas sobre as outras, pálidas e putrefatas, as asas batiam adiante, mas não pareciam estar voando, pensou ele. Parecia mais como se estivessem cortando o ar com golpes de garras. Então ele viu o ser no centro que unia as duas asas. Olhos e dentes se misturavam em uma estrutura inanimada, como um amontoado de pedras e galhos, uma massa orgânica despida de sentido, um poço onde o entendimento era oculto pela escuridão que sugava o olhar de quem se atrevesse a acompanhar sua passagem. O sangue de Kauã pesou em seu corpo, e ele não conseguia mais se mover. Os olhos castanhos de Dani se aproximavam depressa, mas ainda mais rápido era o pesadelo que a seguia.~.~A névoa da encosta esmaecia na montanha e se escondia noite adentro, mas por dentre suas beiradas vinha a patrulheira. Eram passos largos, com joelhos esticados e tornozelos dobrados. Ela atravessava pela vegetação rasteira e leitosa, e quanto mais perto ficava, mais alto os gritos soavam naquele corredor de pedras que os Dusserianos insistiam em chamar de escadaria.Seus dedos foram ágeis e encaixaram a moeda da alma na trava do braço. A fivela sufocava sua pele, mas ela sabia que aquela era a sensação certa e que qualquer espaço extra significava chance para o erro. O bracelete de energia brilhou mais forte."Tac" soou a moeda quando o encaixe a beliscou com sua ponta de cristal dourado no cerne. O traço que rasgava a moeda de um lado ao outro agora se acendia em branco fraco. Em seu cinto, o semicírculo apareceu, e argolas de energia brilharam ao redor do bracelete. Várias surgiram mas apenas um par tinha luz o suficiente para parecerem reais.— Duas? — Disse a patrulheira ao olhar o que estava escrito em cada argola. Contudo, antes que ela pudesse reclamar, o cheiro do pesadelo inundou suas narinas. — Queimado. Como se tivessem posto fogo numa floresta inteira. — Disse ela ao retornar a atenção para a subida da encosta. "Dois sonhos, não vai dar", disse uma voz em sua mente, mas suas pernas já estavam cansadas demais para escutar seus pensamentos.O pesadelo assumira uma forma de borboleta, só que suas asas lembravam muito mais asas de morcego, tecidas numa couraça azulada que parecia continuar a aumentar, feito um tapete que é lavado ao extremo e começa a se esgarçar.Com cerdas do tamanho de dedos, suas garras partiam o ar enquanto o pesadelo disparava em direção à uma moça de cabelos escuros. Esta corria morro abaixo, colocando-se na mesma reta entre a patrulheira e o pesadelo.— Preciso de um tiro limpo. — Disse ao olhar a moeda acesa em branco no bracelete. Seus dedos se abriram quando o círculo de energia vindo de uma argola envolveu seu pulso.Ela empurrou o ar para frente, e o círculo de energia começou a inflar. Ali, a névoa pálida saía da moeda até se condensar nos dedos da patrulheira, passando pela argola de energia e a desfazendo no processo. Feito vapor de água, a névoa possuía uma densidade maior, como se fosse formada de vidro e não fumaça. Quando as argolas de energia presa ao seu antebraço desapareceram por completo, a fumaça pálida se tornou uma flecha tão longa quanto um osso da perna, ganhou matéria, peso e uma forma metálica que se esticava dos dedos esguios da patrulheira até roçar a grama seca no chão.— Socorro!! — Gritou o rapaz que passara por ela na escada momentos atrás. Ele corria paralelo à garota de cabelos escuros, batendo o corpo contra a montanha, mas sem tirar os olhos do pesadelo azul.A patrulheira ergueu a flecha, e na mão direita, o arco apareceu. Duas linhas de luz se uniram no arco composto, e em sua ponta, um triângulo surgiu. A flecha achou a corda, mas o tiro ainda estava sujo; havia aquela garota que corria para um lado e para o outro. Se atirasse, poderia acertar tanto o pesadelo quanto ela.— Se abaixe... — Sussurrou a patrulheira e esticou o arco com a flecha armada.O dedo que soltou a corda permaneceu esticado enquanto a flecha de luz cruzava o céu escuro. Sem zunido, sem desvios, ela correu pela penumbra até encontrar a terra do outro lado. O chão tremeu, mas o pesadelo alado foi ainda mais rápido. Se ele antes planava como um morcego, em uma subida repentina começou a mergulhar de garras à mostra rumo à garota de cabelos pretos, quase que em um galope, só que levado por garras e não cascos.— Não! — Disse a patrulheira ao tocar na moeda no braço. Não conseguia gerar mais argolas de energia, havia alcançado um ponto crítico. Ela empurrou a névoa branca para frente, e mais uma flecha apareceu em sua mão, só que agora seu cinto já estava quase sem luz. Se tivesse descansado mais. Se tivesse mais três sonhos, apenas mais três. Mas não tinha, tudo o que possuía agora era aquela flecha solitária.A patrulheira saltou pelas pedras e mudou o ângulo para encarar o pesadelo sem empecilhos. O despenhadeiro se aproximava, e com apenas aquela flecha, ela ainda não estava preparada para entregar os pontos.— Venha. — Disse ela tão baixo que mesmo um sussurro se tornaria um grito se comparado. — Venha. — Disse de novo. O pesadelo despencou em direção à menina de cabelos cacheados enquanto a corda do arco se esticava. Só mais um pouco, quase lá, pensou a patrulheira. — Agora!O arco sumiu quando a flecha partiu da corda. Acesa como se feita do próprio anel celeste, sua ponta deslizou pelo ar e se enterrou no centro do pesadelo.Um guincho de dor aguda ecoou pela montanha, e toda a luz que iluminava a patrulheira se apagou no mesmo instante.— Vocês estão bem? — Perguntou a patrulheira ao jogar o cabelo que cobria seu rosto para o lado. Os olhos verdes pareciam mais claros com o anel refletindo sua luz sobre eles, ganhando um tom denso de esmeralda misturado com grama recém cortada.Na escadaria, o rapaz estava caído enquanto a menina ainda encarava o pesadelo. Este se debatia contra as pedras alguns passos acima, mas num segundo o som de asas se chocando contra a pedra foi substituído por um ruído mais amplo.O som da água.Não uma goteira, mas uma cascata que foge da nascente. O som cresceu e veio a preencher todo o silêncio que se formou entre eles.A patrulheira olhou de volta para o pesadelo e, sem querer, engoliu o ar num susto. Suas pálpebras tremeram, seu estômago afundou, mas ela continuou a encarar o morcego que arrancava a própria carne, definhando em músculos lisos e esguios. Brotavam dali tentáculos regados a muco esverdeado que roçavam o chão como o limo que abraça a pedra.Com o som, veio a água jorrando por entre os tentáculos purulentos, e o chão já estava coberto pela corrente que descia e aumentava a cada instante, empurrando tudo que encontrava no caminho para baixo.— Tromba d'água! — disse a patrulheira ao encarar os dois que vinham em sua direção. — Eles vão ser levados. — Disse ela, ao encarar o precipício. — E eu não tenho mais sonhos. — Sussurrou ao olhar a moeda no braço. — Esse polvo parece mais forte que o morcego-borboleta. E agora Mão? — Perguntou ela, mas sem demora, retirou a moeda do braço. Havia outro cinto atado nela este posicionado não no braõ, mas acima de sua cintura, com uma fivela virada para o umbigo e o meio círculo para fora. A sensação do engate da moeda na trava era sempre estranha, mas agora tudo o que ela mais queria era ouvir o estalo da conexão.A moeda se encaixou em silêncio, fria como se houvesse sido colhida do mar noturno."Nada", pensou a patrulheira.Seus olhos desceram; ela estava há poucos metros dos dois jovens que corriam da tromba d'água, mas já não havia saída.— O que eu faço? — Perguntou ela. O triângulo desenhado na moeda foi tudo o que ela viu naquele instante. Para um estranho, aquele era apenas um entalhe, talvez até um arranhão, pensariam outros, mas para um membro da patrulha, aquilo tinha um significado diferente.Era a marca do terceiro canal. Seu rosto pálido pareceu ganhar vida enquanto ela disparava rumo ao precipício. A onda os alcançou. O rapaz foi o primeiro a sumir, carregado pelo lençol translúcido de água esverdeada que era lançada pelo pesadelo. A garota caía, mas com os braços ela ainda se arrastava para ficar com a cabeça para fora da água.— Em nome da... — Disse a patrulheira ao pressionar a moeda para dentro até que houvesse o engate da liberação da trava. O metal encaixou, contudo, a moeda permaneceu apagada. Seu rosto se apertou, e naquele momento, ela soube que já não havia sobrado mais nada. — Em nome da justiça. — Repetiu ela e encarou a água turva que alcançava seus tornozelos. — Em nome da justiça, o terceiro canal te ordena a proteger os que precisam! — Disse ela ao ser pega pela tromba de água.A corrente a empurrava para fora, e a encosta se aproximava mais e mais a cada segundo, mas naquele momento não foi o medo que preencheu a alma da patrulheira. Um calor estranho a banhava, e mesmo na água fria, ela sentia como se estivesse sendo cozinhada de dentro para fora. Sua moeda continuava escura, então não eram sonhos o que ela sentia. A poucos passos, a garota de cabelos pretos deslizava na água rumo ao precipício. Seus braços se debatiam entre as ondas, e a patrulheira percebeu que cada segundo que ela gastava pensando seria menos um segundo para agir.— Se segure na árvore. — Disse a patrulheira, mas a garota pareceu não escutar. Contudo, aquelas palavras ecoavam na sua própria mente. Se eu nadar para o lado, eu consigo sair da correnteza, pensou ela. O tronco era a melhor chance que ela tinha de não despencar lá embaixo. Mas não conseguiria levar a garota com ela, pensou, quando a viu afundar e sumir contra a correnteza.É isso, eu preciso me salvar. Se eu morrer aqui, até o Alan chegar, esse pesadelo já terá alagado todas as vilas de baixo. Eu preciso sobreviver, preciso continuar lutando, pensou ela.Seus braços deslizaram para o lado, mas antes que pudesse se esticar, um barulho irrompeu na correnteza.De volta à superfície, a garota de cabelos pretos arrastava o rapaz para a cima. Os músculos da patrulheira se apertaram, e ela sentiu a água gelar sua alma. Seus dedos desceram até o cinto. Em sua mente, ela sabia que sua reserva estava zerada, e sem sonhos não havia nada que pudesse fazer. Mesmo assim, ela pressionou a moeda sem conseguir ligá-la. Nessa altura, a patrulheira estava mais preocupada em se segurar no mínimo de controle que ainda lhe restava, e o gesto de encaixar a moeda soava, pelo menos para mim, como alguém que refaz os nós do sapato antes de pular de um despenhadeiro.— Não tem jeito. — Disse ela. Foi quando seus olhos alcançaram os dela. O coração da patrulheira pulou uma batida. Era ela. Todo esse tempo, e era claro que era ela. A patrulheira nunca havia visto aquela garota antes, mas seu coração sabia que era verdade. Sabia que era ela.

Ela podia ter dado as costas e ido embora. Desfeito tudo, sobreviver. Mudado seu destino.

Os braços da patrulheira afundaram contra a água, e seus pés bateram forte, projetando-a em diagonal a favor da correnteza. Ela estava há um instante do precipício, e mesmo assim, a patrulheira continuava a nadar em direção a ele, mas mais importante, em direção à garota. — Segure a minha mão. — Gritou ela ao cuspir água com o pouco ar que conseguiu inspirar.— O que? — Perguntou a garota de cabelos pretos e encharcados, tentando permanecer na superfície. A queda chegava, mas quanto mais perto ela se aproximava da garota, mais a patrulheira sentia o calor entrando de volta em seu corpo.— Segure, a, minha, mão! — Disse ela de novo, e diria mais mil vezes se fosse preciso, mas o que faria em seguida ainda não passara por sua mente. Não teria forças para nadar correnteza acima. Não teria sonhos para derrotar o pesadelo, e mesmo se o fizesse, já estaria partida no pé da montanha. O chão sumiu enquanto seus dedos se esticaram em direção aos dela, e assim como a água que levava tudo por onde passava, também levou embora todos os medos que a patrulheira insistia em carregar, escorrendo despenhadeiro abaixo.As duas pairavam no céu por um instante. Os olhos verdes encontraram de perto a imensidão preta que formava o olhar de Daniela. Mesmo sem chão, a patrulheira sentiu seu corpo se apertar, quase como se precisasse desviar o rosto de tão quente que era.No entanto, ali permaneceu imóvel, e se não fosse tão mais absurdo, ela poderia até mesmo dizer em voz alta, um dia, que aquele olhar tão fundo quanto um abismo sem fim parecia conseguir aquecer não só o seu corpo gelado, mas também a sua alma fria.Seus olhares ainda estavam ligados, mas só quando seus dedos se encontraram é que a patrulheira foi coberta por completo, como se um véu de fogo a abraçasse. O calor emanava por todos os seus poros, e mesmo despencando dezenas de passos, ela conseguia ver o traço que queimava em luz pálida no seu cinto. O branco era tão claro que parecia até mesmo que um pedaço do sol havia se escondido ali, manchando a noite com sua luz e condenado a brilhar no cinto da patrulheira.Aquilo só poderia significar uma coisa, pensou ela sem questionar seus instintos, mas ainda retornando aos olhos de Daniela. O chão se aproximava depressa, mas ainda mais veloz foram os dedos da patrulheira ao empurrar a moeda para a trava do cinto. O brilho coincidiu com o ruído do encaixe, e a luz irradiou para a imensidão escura da noite recém chegada.— Hora de sonhar! — Disse ela. — Patrulheira dos sonhos, Ágata!A luz ganhou massa, e os fios refletidos pela moeda se ergueram para virar placas de metal branco. A maior envolveu seu torso, contornou os ombros e se fechou em torno do pescoço, como uma malha de aço fundido. Feito folhas de papel, as camadas de placa se sobrepunham, cobrindo cada parte da patrulheira, das botas até o elmo que escondia seu cabelo. As fibras de luz se amarravam em seus pulsos, e manoplas uniram os dedos à placa larga do antebraço. Quando as botas se fecharam sobre seus pés e a pluma branca floresceu no topo do capacete, projetada para trás, e só então, seu elmo branco se fechou por completo, permitindo apenas que o verde de seus olhos deixasse a fina fenda de seu rosto.Das costas de Ágata, um par de asas surgiu. A luz ganhou vida e se materializou em largas penas que subiam e desciam ao comando da patrulheira. Ágata envolveu a garota de cabelos pretos em seus braços metálicos e também agarrou o rapaz pelo colarinho da túnica. As asas trabalharam com força para vencer a queda, e a cada impulso, o solo freava perante seus olhos. A garota de cabelos pretos e cacheados deitava sobre seu braço coberto pela armadura branca. Com os olhos, ela varria o capacete da patrulheira que enfim chegava ao chão.Ágata pareceu sorrir, mas antes que seus olhos pudessem se encontrar de novo com os dela, a patrulheira se esgueirou para tocar o chão por si mesma. Ágata fervilhava em energia do terceiro canal, mas mesmo que a força houvesse voltado para a sua alma, ainda restava uma dúvida no fundo de sua mente. Algo que certamente não seria respondido naquele segundo, mas ainda pinicava em seu inconsciente, tanto que em seus lábios, a dúvida se expandiu e ganhou voz.— Como... como é você... — Perguntou, mas antes que a garota pudesse ao menos ouvir, seu pescoço havia se voltado para a cachoeira que regava a encosta. — Fiquem aqui. — Disse Ágata e pousou a garota no chão.— Eu me chamo Daniela. — Disse ela, e Ágata voltou a encarar seus olhos pretos. A curva que seu rosto fazia ao pronunciar aquele nome era suave, deixando o som subir pelas bochechas e desaparecer por entre os cachos. A patrulheira sentiu seu coração bater forte, mas logo um arrepio a chamou de volta à cascata feita pelo pesadelo.— Prazer em te conhecer, Daniela. — Disse a patrulheira, agradecendo em sua mente pelo elmo cobrir o seu rosto, e escondendo assim o sorriso que ela parecia não conseguir conter ao olhar para aquela garota. — Eu já volto.Os dedos de metal rodaram a moeda até que três flechas saíssem do ar, brilhando em branco pálido como a neve. Por dentre a fresta dos olhos da patrulheira, um feixe pálido se ergueu, se escondendo na penumbra. Asas em suas costas eram largas como folhas de palmeira, sobrepostas em uma malha de penas. Apenas um bater de asas foi o necessário para a empurrar rumo ao céu.A patrulheira foi arremessada para cima, e no ar, as asas se escondiam, permitindo que ela ganhasse altura. O polvo pesadelo chegou na borda do precipício, tingindo a água com o tom do céu de dia. A tromba de água mudou de cor, perdeu o azul e se tornou uma mistura terrosa que pendia para o caminho da patrulheira.'Proteção contra o quarto canal', disse Ágata enquanto seus dedos se aproximavam, puxando o ar para dentro e formando um triângulo com os polegares unidos na mesma linha. A cascata terrosa atravessou a patrulheira como se não houvesse matéria para ser encontrada ali. Suas asas continuaram a bater em tom de anel, e assim ela chegava a meio caminho do pesadelo.Ali, o arco surgiu entre os dedos da manopla.Com as flechas na mão, a moeda fez com que as três se tornassem apenas uma. Com o ponta em forma de lança, Ágata posicionou a flecha contra a corda de sonhos. Tanto ela quanto o arco tremeram quando ela o esticou até a altura do elmo. Ágata fechou o olho esquerdo e pousou o direito no pesadelo."Julgamento da Luz", disse a patrulheira. No brilho do momento, a moeda piscou e se apagou, sumindo também com as asas de anjo. A flecha partiu do arco no mesmo instante em que se desfizeram a patrulheira começou a cair.Como se o sol viesse fazer uma visita, todo o horizonte se acendeu em um branco calcário, um lençol de luz que cobria todo o horizonte enquanto a flecha obliterar o pesadelo