A luz entrava fracamente pela janela de um dos quartos reservados aos empregados na Pousada Buraquinho. A área dos empregados estava em caos. Parte do quarto de Gabrielle havia sido destruída por Guilherme, que havia assumido a forma do Breu, e os sinais de destruição se espalhavam por toda a pousada. Farid conseguiu restaurar uma parte dos estragos, mas com a quantidade limitada de Areias do Desejo, suas ações eram insuficientes. O poder do Djinn estava drasticamente reduzido, deixando-o sem muitas opções.
Gabrielle desperta de repente em um dos quartos na Pousada Buraquinho. O espaço é modesto, com paredes claras, sendo uma delas ocupada pelo armário, um piso de azulejos que reflete a luz suave do amanhecer. O ambiente é marcado por uma simplicidade aconchegante, sem cortinas ou adornos, apenas uma janela que deixa entrar a luz difusa do exterior. Ela se levanta lentamente, os resquícios do sono ainda presentes, e leva uma das mãos à cabeça, tentando processar a sensação confusa que a envolve.
— Que sonho estranho... minha cabeça está doendo... — murmura, Gabrielle, sentindo o desconforto.
— Ah, nem vem com essa, eu remendei ela direitinho! — responde Farid, flutuando ao lado dela com um ar brincalhão, enquanto folheia distraidamente um pequeno livro, lançando um olhar divertido na direção de Gabrielle.
— Hã? — Diz Gabrielle, que olha para o lado direito de sua cama, ainda um pouco perdida, procurando a voz que acabara de ouvir.
— E aí, firmeza? — Pergunta, Farid, sorrindo!
Gabrielle arregala os olhos ao, finalmente, perceber a presença de Farid ao seu lado.
— AAAAAAAAHHHHHHH!!! — Grita ela, em estarrecimento.
Ela então se encolhe no canto da cama, se afastando do lado onde está Farid.
— Na...nã..não foi um sonho? — Gagueja ela, visivelmente abalada, por descobrir que toda a situação de perigo enfrentada, foi a mais pura realidade.
— Eeeeeeu? Um sonho?? — Indaga Farid, visivelmente ofendido.
O Djinn, então, joga um pouco das Areias do Desejo em volta dele, fazendo-o se tornar humano. A fumaça azul dá lugar as pernas, vestidas com um bombacha árabe, do mesmo tom que o colete.
— Eu sou muito real, tá?! Reclama Farid! Olha, só, tenho até pernas! — Diz ele, apontando para ambas as pernas, enquanto sobe na cama, para se aproximar de Gabrielle.
Subitamente, como para se defender, Gabrielle dá um chute no rosto do Djinn.
— Não suba na minha cama falando isso, seu maníaco! — Profere, Gabrielle, e em tom de explicação, continua… — Assim eu me assusto!
— Cuidado com o meu rosto, sua mulher selvagem!!! Estou na minha forma humana, eu sangro! — Diz Farid emburrado, apesar de ter conseguido desviar do golpe de Gabrielle.
Gabrielle olha envergonhada para Farid, e diz: — Me desculpe, fiquei assustada com você se aproximando, como acabei de acordar, pensei que você era algum espírito maligno.
— Eu?? Um espírito maligno…? Eu posso ter alguns desvios, mas sou muito legal, viu? — Diz o ofendido, Farid, que vira o rosto para o lado, fazendo bico.
Farid está sentado com Gabrielle no chão do quarto. Entre ambos há um tapete redondo. A garota está encostada na cama, com as duas pernas coladas ao corpo, ouvindo atentamente Farid, que está do outro lado, em frente a ela, sentado com as pernas cruzadas, quase na posição de lótus.
— Hum-hum!! — Pigarreia o Djinn. — Vamos começar de novo! Eu sou Faird, o Djinn da Classe Marid. Nós Djinns, nascidos do fogo sem fumaça, fomos criados a milênios. Manipulamos e purificamos as Areias do Desejo, grânulos mágicos, que possuem o poder de conceder desejos aos humanos, quando invocados ao plano terrestre.
Gabrielle, está ouvindo atentamente o Djinn, percebendo que realmente os Djinn são entidades pré-islâmicas conhecidas no ocidente como Gênios.
— A Senhorita, que me conjurou no plano mortal, tem direito a três desejos! Há uma lista imensa de regras para os desejos, que pode ser resumida em: Não mexa com a vida dos outros! Qualquer desejo com rancor no coração pode corromper as Areias do Desejo. Aí, você vira um bichão daqueles. Simples, né? — continua, Farid.
Gabrielle, que continuava ouvindo tudo atentamente, parece estar bastante preocupada. "Desejos… se eu fizer o desejo de forma errada, posso acabar que nem o Sr. Oshiro…" — pensa a garota, se sentindo um tanto solitária.
— É mesmo! E o Sr. Oshiro?! O que aconteceu com ele? — Pergunta, Gabrielle, com um semblante cansado.
Neste momento, Farid, se apruma como um pavão, abre um largo sorriso e diz:
— Ele está bem, graças a mim, que salvei o dia! — Aponta o polegar para si mesmo. — Eu purifiquei cada grão corrompido do desejo dele, então, ele tá novo em folha! Zero-bala! — Finaliza a frase com um sorriso de convencimento, e sinal de OK.
Gabrielle que estava encolhida com as pernas próximas ao peito, estende as pernas e se empina, olhando para Farid com um olhar travesso.
— Graças à Shamal, você quer dizer! — Diz, Gabrielle com um sorrisinho levado.
— Os poderes utilizados pela Shamal são meus, então fui EU que salvei o dia! — Responde um contrariado, Farid.
Gabrielle então joga sua cabeça para trás, apoiando-a na borda lateral da cama, soltando um suspiro de alívio. "Que bom que ele está bem…" — pensa ela com uma expressão de tranquilidade.
— Aaaah, que bom! Não tô desempregada e ainda tenho um teto! — Fala, Gabrielle disfarçando a preocupação com Guilherme, após perceber o olhar intrigado de Farid sobre ela.
Ao ouvir isso, Farid arregala os olhos e depois os afina em direção à Gabrielle. "Deixou a bola quicando, loira… e eu vou chutar para o gol."
— Ela quer um teto, minha gente! Pode ter quantos você desejar! É só pedir, é só pedir! — diz ele fazendo dancinha com os dedos., e sorrindo de forma canastrona.
— Ei, Djinn… — diz Gabrielle, em tom melancólico, cortando o momento teatral do Farid. — Que tipo de desejo deixaria uma pessoa daquele jeito? — completa ela, com uma expressão de consternação.
— Hum… de forma simples… — diz, Farid, parecendo procurar palavras para explicar.
De rompante, Farid fica de pé, levanta os braços e continua, em alto tom:
— DOR DE COTOVELO! CHIFRADA! GALHO NA CABEÇA!
— Co… como assim? — questiona, Gabrielle, com uma expressão interrogativa.
Farid se acomoda no chão, cruzando as pernas em posição de lótus com uma fluidez graciosa. Seus olhos, antes cintilantes de sarcasmo, agora se fecham, e sua expressão muda drasticamente. O sorriso habitual desaparece, substituído por uma máscara de austeridade e melancolia. Quando ele finalmente abre os olhos novamente, o olhar de Farid é profundo e distante, como se estivesse carregando um fardo invisível, mantendo a seriedade que contrasta com seu usual desdém.
— O primeiro desejo do Guilherme Oshiro foi essa pousada... Ele morava com a namorada nas ruas, até que me achou… — A voz de Farid fica um pouco embargada — Ele queria um lugar sustentável e "dos sonhos" para viver com ela...
Farid faz uma longa pausa, e então se aproxima de Gabrielle, e com uma expressão de fúria, ele fecha a mão em punho cerrado.
— ENTÃO… AQUELA MENTIROSA TRAIU ELE! NA CAMA DOS DOIS! COM UM AJUDANTE DA COZINHA. EU VI TUDO! — Vozeia, Farid, em um tom mais alto que o normal.
Gabrielle, arregala os olhos em surpresa.
Um amplo espaço, com uma grande porta de vidro dando para uma varanda é apresentado. O local perece ser um quarto, pois uma espaçosa cama de casal é mostrada. O aposento parece ser bastante aconchegante, e decorado com esmero.
Guilherme está sentado na cama com as duas mãos no rosto. É possível ver, também, um porta-retrato, com a fotografia de um casal atirado ao chão e quebrado.
Farid está em pé, na sua forma humana, usando calça jeans, e casaco moletom azul, encostado na parede com os dois braços cruzados na frente do peito.
— Me deixe colocar galhos de verdade na cabeça dela! Chifres mesmo, igual ao de um alce! Fica por conta da casa! Não vou incluir nos seus 3 desejos, você ainda terá direito ao 3º! — Diz, Farid, com a voz visivelmente alterada.
Guilherme levanta o rosto, que está totalmente vermelho, seus olhos além de inchados e encharcados de lágrimas, estão sem brilho, mostrando que Guilherme está claramente desnorteado.
— Eu… eu só desejo… que meus sentimentos desapareçam… — Balbucia, Guilherme, com a voz fraca e soluçante.
Farid, então, invoca o Horológio dos Desejos, e uma forte luz dourada ilumina todo o ambiente.
Farid agora está sentado na cama, ao lado de Gabrielle, que continua encostada no móvel. A garota estava atenta a tudo que Farid dizia, olhando concentrada para ele. Farid, por sua vez, não olhou um segundo para Gabrielle, mantendo a face voltada para a parede lateral direita do quarto, onde a cabeceira da cama está encostada.
— …então as Areias do Desejo se corromperam e eu fui forçado a desfrutar da minha imortalidade naquele penico! Não podia voltar para a lâmpada, né? — Finaliza, Farid em tom desgostoso.
— Mas… seu objetivo não era esse, se desgrudar do seu Mestre? — Pergunta de forma intrigada, Gabrielle.
Farid dá um salto da cama, ficando de pé, em frente à Gabrielle, mas virado de costas.
— Exato! Que bom que me entende! — Diz, Farid, com uma expressão dura.
Ele se agacha para ficar próximo da altura de Gabrielle. Olhando diretamente nos olhos dela, diz, quase como um comando.
— Então, qual desejo vai ser? — Diz, Farid, ainda com a expressão dura.
— Seu canalha… — Responde, Gabrielle entediada.
Um celular, pousado em cima da escrivaninha, que fica ao lado da cama, começa a tocar uma música. É um despertador apontando 6:30 da manhã.
— Vixe! Esqueci do colégio! — Diz Gabrielle sobressaltada e em tom de urgência.
Ela então se levanta e começa a mexer na sua pequena mala, procurando algo, entre as coisas que ela salvou da tempestade. Quando parece ter encontrado o que procurava, ela levanta o objeto com uma expressão de vitória e o abraça.
— Que sorte que salvei meu caderno! — Pronuncia Gabrielle, com um sorriso.
— Ho, ho, ho… quem precisa de colégio? Você tem, um gênio agora, pode usá-lo! Realize seu sonho! — Fala Farid, um pouco fastigado.
Gabrielle parece não dar muita atenção ao que o Farid diz, passando por ele, de forma rápida, depois de pegar o seu celular, e esbarrando de propósito no Djinn. Ao chegar na entrada do quarto, ela vira-se para Farid e em tom de desafio e confiança fala:
— Eu vou realizar meu sonho por mim mesma! Sem ajuda de mágica! — Gabrielle vira-se para sair, mas volta-se novamente para Farid, completando — Ah! Daqui a pouco eu tô de volta! Vê se não apronta, ouviu?! — Ela, então, sai com pressa do aposento.
O Djinn permanece ali, parado e incrédulo com o que acabara de ouvir, logo depois, jogando-se na cama, com uma expressão bastante cansada, diz para si mesmo.
— Vai ser difícil arrancar um desejo dela... acho que estou condenado...
Gabrielle sai do dormitório correndo e se depara e com Guilherme que está varrendo o quintal. Guilherme olha muito envergonhado para ela, abaixando imediatamente a cabeça, enquanto aperta o cabo da vassoura.
— Oh, Gabrielle! Eu… — Guilherme, bastante encabulado, começa a balbuciar um pedido de perdão, quando é interrompido.
— Sr. Oshiro, eu tenho colégio agora pela manhã. Mas antes de 13h eu tô de volta, tá? — Diz Gabrielle, afoita.
Guilherme então permanece parado, olhando para Gabrielle, que passa por ele, e continua a correr. Ela, então, vira-se para ele, agora correndo de costas e diz:
— Não vá fazer o meu serviço!! Quando eu voltar do colégio, eu faço tudinho. — Após dizer isso, Gabrielle, volta a correr normalmente.
Guilherme esboça um leve sorriso.
Enquanto sobe as escadas para chegar à porta da Pousada Buraquinho, Gabrielle pensa "Eu vou realizar os meus sonhos por mim mesma… vocês vão ver! Eu vou conseguir!!". — Ela sorri, confiante em si mesma e no seu esforço.
Gabrielle atravessa a rua, deixando a Pousada Buraquinho para trás, em direção ao colégio, neste momento, uma figura feminina surge discretamente nas sombras. A silhueta observa Gabrielle com atenção, seu rosto oculto na penumbra.