Você pode até não acreditar, caro leitor, mas o destino se encarrega de planejar muitos encontros que as pessoas terão na vida. Encontros tão absurdos que às vezes dirão que é coincidência. E o tempo... esse é mais cruel, pois traz de volta sonhos já considerados mortos e faz com que feridas se abram. Guto soube disso no exato momento em que viu entrar no seu restaurante aquela que foi um dia o motivo de sua felicidade. E sentiu reacender em sua alma uma faísca de emoção, lembrando do quanto havia sido feliz.
Ele era do tipo de pessoa que precisava de motivos para ser feliz, por mais que Carlos Drummond de Andrade tivesse dito que - ser feliz sem motivo é a mais autêntica forma de felicidade – para Guto sua felicidade carecia de um motivo, e era aquele, ou melhor, aquela que entrava em seu bar desejando boa noite o motivo de sua felicidade. Um cumprimento que trazia alegria e desespero ao mesmo tempo a pessoas distintas.
Ao caminhar até Raimunda para recebê-la, Guto sentiu que estava literalmente entre a cruz e a espada. Do outro lado do salão, parada com uma cerveja na mão, Julia observava a cena. E indignava-se ao ver o sorriso preso no rosto de seu marido se segurando para não saltar. Ela odiava aquela alegria, aquele reencontro. E observando os dois conversando, Julia se lembrou do que Georges Bernanos havia escrito e que ela tinha lido outro dia na internet - saber encontrar a alegria na alegria dos outros, é o segredo da felicidade.
- Malditas frases feitas! – deixou escapar sem perceber. Só se deu conta de que estava pensando alto quando Rosa, ainda sem perceber a presença da mãe, perguntou se a madrasta a tinha chamado. O silêncio foi a resposta. Rosa olhou todo o salão a fim de perceber se algum cliente estava precisando de atendimento, ninguém. Sentiu uma mão tocar seu ombro, era seu pai que anunciava a chegada de sua mãe, apontando com o dedo uma mulher em pé parada próximo a entrada do bar.
Era sua mãe mesmo? Pensou tentando recordar a última vez que a vira. Uns dez anos ou mais... calculou ao se lembrar das brincadeiras com Jonas quando eram crianças, nas quais seu irmão lhe prometia que um dia encontraria sua mãe. Uma lágrima escorreu pelo rosto suado de Rosa que de onde estava encarou a mãe, como se quisesse pedi a ela explicação por seu longo tempo de ausência. Ao mesmo tempo um sorriso se abriu em seu rosto, estava finalmente reencontrando a mãe, o que sempre tinha sonhado na vida.
Um turbilhão de emoções tomou conta de todo o seu corpo. Lembrou-se de seu aniversário de 15 anos, o que mais lhe marcava era a ausência da mãe. O cartão que recebeu naquela noite, não sabe de quem, abriu uma ferida em sua alma. – PUTA – estava escrito no cartão. Foi naquele exato momento que começou a odiar a mãe... agora diante dela, aquela mulher madura, linda, vestida numa calça jeans azul e uma blusa tomara que caia, com longos cabelos cacheados e loiros cobrindo os ombros... não sabia o que sentia.
Dirigiu-se até Raimunda. Os olhos dela eram como os seus, os cabelos eram quase iguais, apenas a cor os diferenciavam. Era um retrato de seu futuro, aquela mulher ali parada. As duas se abraçaram, não por muito tempo, pois apesar de serem mãe e filha pareciam duas estranhas sendo apresentadas uma a outra. Rosa convidou a mãe para sentar numa mesa que acabava de ser desocupada. Ela a acompanhou sem nada dizer, então alguns pratos chegaram à mesa, o jantar que Raimunda havia pedido a Guto.
Os olhares as cercavam. Todos estavam curiosos com aquela cena inusitada, principalmente a família de Julia. Algumas pessoas, na verdade homens, tentavam reconhecer aquela mulher sentada à mesa com a filha do dono do restaurante, mas já bêbados não recordaram que muitos deles a conheciam... e como! Jonas também se interessou pela cena e as observava de longe como quem acabara de ver um fantasma. E elas se olhavam constrangidas tentando iniciar uma conversa.
Então do nada, Raimunda falou que acabara de se formar, era uma técnica em enfermagem. Essa informação confundiu a cabeça de Rosa. Sua mãe era uma puta, ela sempre soubera. Mas nada disse, ficou a observar sua mãe falando. E acabou descobrindo o que já deveria ter aprendido, que na vida ninguém é uma coisa só. Não existem no mundo real vilões e mocinhos, pessoas direitas e pessoas erradas. O que existe é a vida e as escolhas que as pessoas fazem. Por que sua mãe não podia ser puta e estudar?
A verdade, relatava à filha, era que a prostituição não era profissão. E dizia que quando as pessoas são jovens e bonitas acabam pensando que o poder da juventude é eterno, sobre isso o tempo acaba mostrando a verdade. Nada é eterno. Saber disso é uma prova de que as pessoas estão amadurecendo, não que ela se considerasse uma mulher madura, talvez na aparência e em nada mais. No entanto, a duras perdas a vida a obrigou seguir por outro caminho.
- E onde a senhora vai morar? – Rosa perguntou quando sua mãe lhe disse que havia arranjado um emprego na cidade. E descobriu que a visita dela a sua casa não era para vê-la, ela tinha vindo ali por ela mesma e mais ninguém. Raimunda começou a se parecer com a mulher egoísta que haviam dito que ela era. Estava ali para pedir a casa do lago a Guto, alegando que o que iria ganhar como técnica em enfermagem não daria para pagar o aluguel.
Como ela odiava sua mãe... pensou naquele momento, mas nada disse. Perguntou apenas se Raimunda já havia falado sobre isso com Guto. Ainda não, acabara de chegar. Iria esperar o bar fechar para que pudesse conversar com todos. Um sentimento veio a cabeça de Rosa, sua mãe deveria conseguir a casa e assim iriam morar as duas juntas. Ela não percebeu que o egoísmo tomava conta dela, quando prometeu ajudar sua mãe. Realmente, eram muito parecidas.
Ao ser tomada por essa possibilidade, Rosa esqueceu a ausência da mãe e o motivo egoísta por que ela tinha vindo. E só pensava em sair da casa de seu pai e ter mais liberdade. Queria se livrar das brigas de Julia, do bar, odiava trabalhar naquele chiqueiro imundo, atendendo aqueles porcos sebosos e atrevidos. Queria se livrar das inúmeras cantadas que sofria no decorrer da noite, das propostas indecentes que recebia. E nunca mais teria que ouvir os gritos e discussões de Julia com Jonas e com seu pai. Iria morar com sua mãe, onde teria a chance de ser ela mesma.
- Eu vou ajudar a senhora! – falou para mãe segurando suas mãos. Agora a lágrima que antes escorria pelo seu rosto, vagava no rosto de Raimunda por achar que não merecia tamanha bondade de uma filha que havia abandonado ainda no nascimento. Com a ponta do dedo, Rosa enxugou a lágrima e pediu que sua mãe jantasse. Ela comeu como se estivesse a um mês sem se alimentar. Quando terminou, percebeu que sua mesa era a única que ainda tinha gente sentada, o bar estava fechado, todos tinham ido embora.
- O que você quer, Raimunda? Já viu sua filha, já jantou... e o bar já está fechado – Julia falou recolhendo os pratos da mesa num gesto de desprezo e despedida. Raimunda nada disse e pela primeira vez na vida Rosa respondeu à madrasta dizendo que sua mãe carecia de uma reunião com todos. Júlia foi acordar Jonas, que sofria os efeitos do álcool que havia bebido naquela tarde. Não queria participar da reunião tosca, mas sua mãe o obrigou.
Nada podia ser mais estranho que aquilo. Sentados a mesa, estavam Raimunda, Guto e Julia e os frutos das escolhas dos três, Rosa e Jonas. Um clima denso fazia com que a respiração fosse pesada e o rosto de todos traziam um ar de apreensão. Julia, a que mais parecia incomodada com toda aquela situação, decidiu quebrar o silêncio querendo saber o motivo de estarem todos reunidos constrangidos com a situação. O que justificaria tamanha falta de sensatez da parte de Raimunda.
NÃO. Foi a resposta de Julia ao pedido de Raimunda. Não fazia sentido ela morar na casa que foi dos pais de Guto. Não fazia sentido ela ser sua vizinha. No entanto, esse foi o único não, todos os demais acharam uma boa ideia Raimunda mudar para casa do lago e Rosa aproveitou para anunciar que iria morar com a mãe. Ninguém se opôs ao anúncio da moça. Julia se retirou sem dizer mais nada, sentindo-se injustiçada pelo marido e o filho.