Um respingo de tinta caiu no rosto de Rosa, que revidou sem pensar, acertando o irmão com um chuvisco de tinta amarela. Jonas revidou, começando uma guerra, como aquelas guerras de comida que se vê nos filmes. Do terreiro Guto observava a cena. Seus olhos não conseguiam deixar de ver a felicidade dos filhos ao pintar a casa, lembrou-se do seu tempo de criança naquele lugar, nada que merecesse ser recordado. Então ordenou aos dois que continuassem o trabalho e voltou para o bar.
Sabia que tinha tomado a decisão certa deixando que Raimunda e Rosa fossem morar na casa do lago. Naquela casa só havia sofrimento. Era possível sentir a presença da dor de sua mãe em cada parede e em cada espaço da casa era nítida a agonia do pai, nos seus últimos dias de vida. Talvez elas indo morar lá pudessem fazer sumir, ou ao menos levar para o esquecimento os cinco anos de sofrimento de seus pais, antes da morte. "O câncer é mesmo cruel", pensava voltando para o bar.
Seguiu a passos lentos pelo acostamento da rodovia, tentando colocar os pensamentos em ordem. O que parecia impossível com o maquinário trabalhando na estrada. "Todos resolveram reformar", pensou, observando o trecho da rodovia em construção, que passava em frente à casa do lago e em frente ao seu bar: parada obrigatória. Não pensou com desprezo, pois aquela obra ali, diferente da obra da casa, trazia muitos clientes para seu negócio e muito dinheiro para seu bolso.
Entrou calado, nunca foi de discussão. Julia também estava calada na cozinha, o barulho ficava por conta das panelas que cozinhavam três vezes mais comida que o normal. Aqueles homens que estavam trabalhando na rodovia comiam bastante. Guto cuidou em abastecer os congeladores, pois sabia que eles também gostavam de beber. Um silêncio constrangedor pairava entre os dois. E ambos fingiam que não estava acontecendo nada.
Na casa do lago, Jonas e Rosa continuavam com a reforma, quando o rapaz retirou do meio dos materiais de construção um litro de bebida. Era cachaça. Rosa recusou, enquanto ele bebia a grandes goles. Ele estava feliz pela irmã, o sonho dela afinal estava se realizando. Terminaram a pintura da sala, agora iriam para o quarto. Jonas foi até o quintal pegar uma escada que usariam para pintar a parte mais alta das paredes. Enquanto isso Rosa vasculhava as teias de aranha do teto.
Ele caminhou vagarosamente em torno da casa até chegar ao quintal, uma nuvem de poeira escurecia a rodovia e um barulho ensurdecedor de máquinas trabalhando tornavam o cenário caótico. Ao se abaixar para pegar a escada viu o lago a poucos passos dali, parou e ficou observando. As lembranças como poeira passaram por sua cabeça, então ele viu uma jovem nua mergulhando no lago. Olhou novamente e viu atrás de uns arbustos um garoto a observá-la. Esfregou os olhos para ter certeza do que estava vendo e só então percebeu que se tratava de uma recordação.
Pelo mesmo caminho que foi ao quintal, voltou com a escada. O quarto já estava limpo. Na mão um recipiente com tinta e um rolo, evidenciavam a espera dela. Com a escada posta, Rosa subiu e começou a pintar a parede. A felicidade dela era como nuvens carregadas, anunciava uma tempestade de sorrisos. Só se deram conta da falta de cuidado quando o degrau da escada quebrou e Rosa despencou de uma altura de quase um metro, lambuzando-se toda na tinta.
Um olhar de desespero surgiu no rosto de Jonas, que sem demora acudiu aquela mistura de mulher e tinta. Não tinha se machucado, insistia ela tentando se levantar, sem sucesso. Ele segurou em sua mão e tentou ajudá-la a ficar de pé. Mas a mistura do álcool com a tinta não resultou em algo bom, despencou por cima de Rosa. Em alguns segundos os dois estavam lambuzados pelas inúmeras vezes que tentavam levantar e caiam novamente escorregando naquela mistura de tinta e suor.
Finalmente Rosa conseguiu se levantar e estranhou quando o irmão lhe segurou pela cintura. Quis saber o que era aquilo, porém não obteve resposta. E se desesperou quando sentiu um volume que anunciava excitação no irmão. Em alguns minutos Rosa se viu sem roupa, em seu corpo apenas a tinta. Gritou, gritou muito... as máquinas eram mais barulhentas e não sessavam. Ele terminou o seu prazer e a ameaçou, mostrando a ela um vídeo de um moça fazendo sexo com uma homem em uma igreja.
Ele se vestiu e foi embora. No chão, o corpo e a honra de Rosa estavam jogados e misturados a lama e a tinta. Em sua mente a dor e o medo misturaram-se com a incredulidade do que tinha acontecido. Desorientada, ela se vestiu com as roupas sujas e caminhou rumo ao lago. Nem se deu conta de que um homem lhe observada curioso da margem da rodovia. Lavou-se no lago, mas as águas que levavam sua sujeira não conseguiam lavar sua dor e vergonha.
Subiu pelo caminho distante da rodovia sentindo ainda a dor e a vergonha do que tinha acontecido. Entrou em casa pelos fundos sem que ninguém lhe visse, trocou de roupa e atravessou a obra na rodovia para ir ao atalho por onde os carros estavam rodando. Sentou-se em uma pedra, num ponto de ônibus improvisado, esperou por quase vinte minutos até o ônibus passar. Durante esse tempo chorou sem pausa, não conseguia acreditar no que tinha acontecido. Entrou no único ônibus que ia a cidade.
Ao entrar na cidade, um som estrondoso fez com que todos os passageiros gritassem. Ao sair, perceberam que o barulho tinha sido do pneu estourando. Todos seguiram a pé. Ela seguiu pela calçada, um manto cinza cobria sua visão. O sol estava quente, era quase meio dia. Parou no sinal, do outro lado da rua estava o posto de saúde, onde sua mãe trabalhava. Sentia-se envergonhada pelo que tinha acontecido e estava com muito medo de encontrar a mãe. Não sabia o que fazer, mas sua mãe com certeza saberia.
O sinal fechou e ela podia atravessar a rua até o posto de saúde onde sua mãe iniciava o primeiro dia de trabalho. Sua vista escureceu e suas pernas ficaram trêmulas, então ela voltou cambaleando até consegui se segurar na parede de uma casa para não cair. Sentia um mal-estar, desespero, dor e muita fome. Em pé na porta, observando os carros que paravam no sinal, uma mulher percebeu tudo e correu para socorrer a jovem. Segurou-a pelo braço e levou até sua casa, querendo saber o que tinha acontecido.
A cena chamou a atenção das pessoas que trabalhavam no postinho e uma técnica em enfermagem correu até lá para socorrer a jovem. Da porta, chamou a dona da casa que pediu que entrasse. Raimunda ficou em desespero quando viu a filha desmaiada no sofá. Quis saber o que tinha acontecido, mas Gorete só sabia dizer que ela estava parada na sua porta passando mal. Em meio a esse alvoroço, a menina acordou e ao perceber que a mulher parada ali na sua frente era sua mãe, abraçou-a em lágrimas.
Ninguém entendia o que estava acontecendo. Nem mesmo o dono da casa que acabava de chegar para o almoço e encontrou na sua casa aquelas três mulheres na sala. Gorete recebeu o marido explicando o que tinha acontecido, ela adorava contar história. Só quando as duas mulheres terminaram o abraço foi que ele pode perceber que a menina que havia passado mal na sua porta, era Rosa. Dessa vez foi ele que quase desmaia.
- O que essa menina está fazendo aqui? – perguntou assustado.
- Eu acabei de te falar, ela estava passando mal na rua e eu... – Gorete explicava quando foi interrompida por Raimunda, que pedia desculpa e segurando a filha pelo braço dirigia-se a porta rumo ao posto de saúde.
Rosa nem se deu conta de que o homem que estava ali era Dornelles, pois envergonhada olhava apenas para o chão. As duas saíram da casa e foram para o posto de saúde, Raimunda certa de que Rosa tinha sido humilhada por Júlia. Enquanto na casa Dornelles desesperado escutava a esposa contando detalhes do que tinha acontecido. Tranquilizou-se somente quando viu que tudo não havia passado de uma coincidência.
No postinho, Raimunda abraçou a filha e deu-lhe um calmante. Mais calma ela contou a mãe que veio ao encontro dela, pois temia que ela iria embora novamente. A mãe ficou comovida com a situação e abraçou-a dizendo que nunca mais a abandonaria. Dentro de Rosa estava tudo destroçado, mas ouvi que a mãe sempre iria estar ao seu lado lhe trouxe conforto, não o suficiente para que superasse o que tinha acontecido. Afinal, nunca iria superar ter sido estuprada pelo próprio irmão. Mas o estupro já tinha acontecido e ela ficando calada evitaria o escândalo. Isso era poderia evitar.
Após Rosa ir para casa de uma colega sua, Raimunda se sentiu na obrigação de ir até a casa da mulher que socorrera sua filha explicar o que a tinha levado aquele estado. Bateu na porta, Gorete veio atender, estava almoçando com o esposo. Então a técnica em enfermagem contou que estava reencontrando a filha após muitos anos distante e tudo tinha sido medo. Ela temia que a mãe a abandonasse novamente. Da cozinha, Dornelles ouvia toda conversa.
No bar Parada Obrigatória, Jonas almoçava como se nada tivesse acontecido. Enquanto Julia e Guto continuavam como dois inimigos sem ao menos conseguir olhar um para o outro. A vinda de Raimunda tinha desencadeado uma série de infelicidade, não que ela fosse culpada, mas a verdade é que tem idas que nunca merece uma volta. A ida dela deveria ter sido para sempre.