Ves nunca tinha visto tanto sangue em toda a sua vida. Acumulava-se em poças tão profundas quanto a cornalina que ele instalou em seu primeiro mech. Os dois corpos dos piratas blindados permaneceram imóveis em uma pilha indigna, tão patéticos quanto a maneira com que morreram.
"Miau." Sortudo soltou enquanto retraía as garras e gentilmente se esfregava nas pernas do seu dono. Era como se o último minuto simplesmente não tivesse acontecido.
"Ok. Ok. Então meu animal de estimação é um assassino. Ok. Isso é muita loucura para mim processar."
Se Dietrich pudesse vê-lo agora, provavelmente bateria nas suas costas e o diria para agir como homem. Os piratas estavam atrás dele e o único jeito de ele continuar livre era para roubando a vida deles.
Depois de muitas semanas de interação com o confiante piloto, algo disso deve ter aflorado em Ves, porque ele se recuperou depois de apenas alguns minutos. "Eu sou patético. Isso é vida na Era dos Mechs. Eu projeto e produzo máquinas de guerra gigantescas, caramba. Eu já tenho muito mais sangue nas minhas mãos."
Afinal de contas, ele não vendeu um mech para Vincent Ricklin, que o usou para massacrar dezenas de espectadores inocentes? Não era como se Ves ignorasse as consequências. O verdadeiro impacto de suas ações estava muito distante, e ele recebeu algum treinamento na faculdade para racionalizar suas ações.
Ainda assim, estar tão perto de uma morte causada por suas circunstâncias fez com que se sentisse extraordinariamente enojado.
"Eu tenho que me recuperar. Os piratas devem estar ainda conectados uns aos outros. Se eu estiver certo, eles já devem ter notado as mortes."
Ves voltou à ação. Se qualquer outro pirata viesse e o visse parado por cima dos corpos de seus camaradas, eles o matariam num piscar de olhos. Ele rapidamente entrou no banheiro e lavou seu vômito. Então voltou à cabine principal e pegou uma pistola laser caída.
"Tch. Está trancada, mas isso não vai me parar."
Ele foi até a cômoda meio queimada e pegou um pequeno pacote de mini ferramentas em sua bagagem. Como designer de mechs, ele sempre se certificou de ter acesso a um conjunto de ferramentas essenciais caso quer quisesse mexer em algo, ou precisasse fazer algumas reparos de emergência. Ele não parou para mexer na pistola laser, em vez disso, saiu de sua cabine o mais rápido possível.
"Vamos lá Sortudo! A gente não pode ser pego por nenhum pirata agora."
O gato seguiu fielmente Ves enquanto eles corriam pelos corredores. Agora que saíram da cabine à prova de som, ouviram passos claros, gritos e disparos de armas. Acontece que alguns dos outros passageiros também haviam contrabandeado algumas armas. Infelizmente para eles, qualquer coisa que eles conseguissem passar pelos sensores do navio falhou em arranhar a pintura de uma armadura avançada de exoesqueleto.
Para ser honesto, até mesmo sua pistola roubada tinha um poder de fogo insuficiente, mas ele ainda a levou consigo. Depois de correr escada abaixo e entrar numa cabine aberta aleatoriamente, entrou no banheiro e se trancou lá dentro.
"Certo. Pistola. Anda e abre pra mim." Ves sussurrou enquanto abria sua caixa de ferramentas miniatura e começava a mexer no módulo de controle da pistola laser. Embora não tivesse experiência com armas de infantaria, sua familiaridade com as contrapartidas de tamanho mech permitiu que ele identificasse quase todos os componentes abaixo da carcaça da arma.
"Tudo bem, então esse é o módulo de controle. Agora, como posso desativar sua verificação de identidade?"
Ves não tinha como invadir seu software. A arma moderna parecia ser um modelo de luxo de alto padrão, então suas funções de segurança devem ser bastante substanciais. Ainda assim, como era uma arma compacta, seu fabricante não dedicou muitos componentes para manter a arma trancada.
Depois de alguns minutos identificando o que cada componente fazia, ele pegou algumas ferramentas e começou a trabalhar com o máximo de foco. Sua concentração intensa permitiu que ele eliminasse seu medo e outras influências externas. Sua habilidade de improvisação permitiu que ele resolvesse o problema com soluções inovadoras.
Suas mãos permaneceram tão firmes quanto uma máquina enquanto ele delicadamente cortava algumas peças e forçadamente soldava outras partes juntas. Depois de terminar com o mecanismo de bloqueio, ele até começou a mexer na célula de energia e no capacitor.
"Pronto. Isso deve resolver." disse ele enquanto guardava suas ferramentas e prendia o jogo de chaves no cinto. Ele pegou cuidadosamente a pistola laser e a ligou. As luzes ficaram verdes assim que a arma começou a acumular carga. Seu conserto às pressas teve sucesso em destrancar a arma.
Depois de apertar um botão, uma projeção apareceu em vista sobre a parte traseira do cano. As figuras simples mostravam a carga da pistola e sua capacidade térmica. Atualmente, a pistola mostrava que estava pronta para disparar uma carga de 200% em um único e pesado feixe. Tal carga estava muito acima dos limites máximos de segurança da arma. Somente sua recente modificação permitiu que a pistola ultrapassasse seus limites.
"Bem, duvido que a pistola vai durar um dia inteiro, mas pelo menos tenho mais chance de perfurar armaduras pesadas."
Seria uma arma extremamente perigosa. Se Ves não mirasse com cuidado, o feixe de laser poderia furar uma antepara e danificar os quartos à frente. Se houvesse passageiros escondidos por perto, Ves na verdade poderia matar alguém inocente. Ele estaria encrencado se causasse a morte de alguém além de piratas.
"É um risco que tenho que correr. Não posso ficar parado e deixar os piratas decidirem sobre minha vida."
Ele também queria manter Sortudo a salvo. Embora o gato na maioria das vezes agisse preguiçosamente, sentia uma profunda conexão com o que poderia ser seu único vínculo com seu pai desaparecido.
"Vamos caçar alguns piratas." Ele sussurrou para Sortudo, e eles saíram sorrateiramente do banheiro e espiaram o corredor. "Eu não quero entrar em combate com eles, mas também não vou me deixar encurralar. Nós temos que retomar o controle do navio."
Ele duvidava que os membros da tripulação ainda em luta apreciassem sua interferência, mas ele não confiava que eles tivessem os interesses dos passageiros em mente. Embora as leis os obrigassem a defender os passageiros até a morte, ele costumava se deparar com algumas matérias de jornal onde o capitão e a tripulação mostravam-se menos apaixonados quando encaravam a mira de uma arma.
Um par de passos pesados se aproximava do seu esconderijo. Ves adivinhou que eles possuíam sensores capazes de detectar calor, então poderiam seguir os traços de passos e seu calor corporal restante. Pela falta de pressa, provavelmente não perceberam que Ves era um dos desgraçados que acabaram com alguns piratas. Isso era bom.
"VOCÊ. NAQUELA CABINE. SAI DAÍ."
Ves se levantou lentamente e segurou sua pistola carregada. Como os exoesqueletos possuíam todos os tipos de sensores, ele não se preocupou em esconder suas consideráveis emissões de calor.
"DESGRAÇADO! ELE ESTÁ ARMADO!"
Os piratas ainda permaneciam humanos. O par de homens blindados focou toda a sua atenção na sua pistola irradiando calor, ignorando o gato de gema se aproximando por trás. Como um animal de estimação mecânico, Sortudo mal liberava algum calor, desde que ele não usasse suas garras de energia. Ao se mover de forma lenta e regular, ele era tão discreto quanto os robôs de limpeza padrão do navio.
Assim que eles direcionaram seu tiro nele através do anteparo, Ves gritou, "Sortudo! Agora!"
Como um assassino silencioso, o Sortudo pulou no ar e pousou na parte de trás da armadura do pescoço do pirata mais próximo. Suas garras afundaram profundamente na armadura como se ela não existisse e rasgou a carne vulnerável embaixo.
Enquanto um dos piratas gargarejava e morria, Ves espiou seu corpo pela porta quebrada e atirou com sua pistola com pressa. Seu objetivo derivou um pouco para a esquerda, fazendo-o atingir o ombro do pirata sobrevivente em vez de seu centro de massa. Ainda assim, o feixe de laser sobrecarregado conseguiu transmitir muito calor em um único ponto, o que estragou o tiro do pirata. Seu rifle disparou bem acima da cabeça de seu alvo.
"Droga! Sortudo, acabe com ele!" Ves praguejou enquanto pulou de volta para dentro da cabine vazia. Sua pistola começou a soltar fumaça e sua confiança evaporou. Ele esperou até o grito cessar antes de dar uma espiada novamente. Seus olhos olharam para outro par de corpos. Desta vez, ele processou o ato de matar sem perder o controle sobre seu estômago.
Ele conseguiu se aproximar da parte traseira do Saint Hearst com uma rapidez notável após seus últimos assassinatos. Os grupos de abordagem concentraram principalmente seus esforços no controle de algumas compartimentos críticos, juntamente com a contenção dos passageiros. Como a maioria dos passageiros ainda estava reunida dentro de suas cabines, uma vez que Ves deixou a área da cabine, encontrou muito menos patrulhas.
"Huh. Imaginei isso. Se esses piratas ainda estão lutando com os mechs lá fora, então isso significa que eles não podem correr o risco de enviar muitos transportes de abordagem. Eles enviaram apenas piratas suficientes para subjugar os passageiros e a tripulação. Se eles perderem alguns homens, então não é grande coisa para eles, desde que recuperem seu equipamento."
Ves não invejava a vida de um soldado pirata. A menos que pudessem pilotar mechs, eram tratados como não melhores do que um robô de combate ligeiramente mais inteligente. Pelo menos um mérito no uso de corpos vivos era que eles não poderiam ser hackeados.
"Só porque os chefões não se importam com suas vidas, não significa que eles vão obedientemente se render."
Ves tinha poucos meios para repelir a centena de piratas a bordo do Saint Hearst. O contingente de segurança do barato cruzeiro de passageiros obviamente carecia de armaduras de exoesqueleto, pois os membros mortos da tripulação que Ves encontrou não usavam nada mais pesado do que trajes levemente blindados.
Ele se aproximou do compartimento de engenharia que abrigava os motores do navio e o reator de energia. Muitos mais piratas estavam do lado de fora da escotilha fortemente blindada. Eles instalaram um perfurador a laser portátil que estava em processo de desmontar o bloqueio.
Uma vez que os piratas tivessem acesso à engenharia, o jogo acabaria. Os engenheiros piratas poderiam fazer muitas coisas, desde cortar a conexão com a ponte até redirecionar o curso do Saint Hearst. Como último recurso, eles também poderiam ameaçar todo o navio explodindo seu vulnerável reator.
"Sortudo. Você consegue se aproximar e contar quantos piratas estão lá?"
O gato balançou sua cabeça fofa e se esgueirou pela esquina. Um minuto se passou antes que ele retornasse. O gato arranhou suavemente o anteparo com uma única garra.
"Vinte e quatro piratas. Eles estão todos em um exoesqueleto?"
"Ok, então eles só têm dois engenheiros levemente blindados. Certo. Eu sei o que fazer agora."
Ele instruiu Sortudo brevemente e se preparou para agir. Ele manteve uma distância segura dos piratas para evitar acionar seus sensores. Ele se aproximou de uma escotilha e usou suas ferramentas para mexer em seus mecanismos de controle. Depois de terminar seu trabalho, ele guardou suas ferramentas e preparou sua pistola. A longa espera fez com que ele pingasse suor novamente. Ele estava prestes a fazer algo muito imprudente.
"ENGENHEIRO CAÍDO! PROTEJA O OUTRO! DESTROEM ESSE ROBÔ!"
Os dois esquadrões de piratas entraram em ação enquanto o Sortudo atacava. Enquanto o Sortudo pulava e estragava o tiro dos piratas se escondendo atrás de seus camaradas, Ves rapidamente se esgueirou pela esquina e apontou sua pistola fumegante para a furadeira.
O feixe derreteu a furadeira a laser em uma pilha de escória. Ele imediatamente pulou para trás, mas um par de piratas que ignoraram a confusão e mantiveram os olhos atentos em sua direção dispararam suas próprias armas em resposta.
Um laser quase o atingiu antes de Ves contornar a esquina. O anteparo bloqueou o feixe tempo suficiente para Ves se afastar.
O outro pirata ajustou o objetivo de seu canhão leve. Seu tamanho massivo só poderia ser carregado por uma armadura com suporte de energia. O pirata puxou o gatilho, fazendo com que um projétil acelerasse em direção ao cruzamento onde Ves disparou brevemente sua arma.
Ainda que Ves conseguisse dar alguns passos para trás, o projétil explodiu em uma nova força. A onda de choque o derrubou enquanto um pequeno fragmento atingiu o lado de seu torso.
"Argh!"
Seu traje a vácuo selou automaticamente a lacuna e estancou o fluxo de sangue da melhor maneira possível. O traje injetou-lhe uma pequena dose de analgésicos para suprimir sua agonia.
"Droga, eu fui atingido. Sortudo! Saia daí!"
Ves mancou enquanto alguns dos piratas furiosos o seguiam. Ele rapidamente pulou pela escotilha mais próxima e esperou.
"O ROBÔ ESTÁ FUGINDO!"
Ele não teve que esperar muito até correrem. Agora que o Sortudo conseguiu escapar, Ves bateu com a palma da mão na console de controle da escotilha. Uma placa pesada de metal desceu, separando-o momentaneamente dos piratas enfurecidos.
"Não mexa com um designer de mech." Ves cuspiu impulsivamente na escotilha fechada enquanto um pequeno grupo de piratas batia em sua superfície do outro lado. Ele levantou o dedo do meio e saudou a gangue frustrada de criminosos.
"Vamos, vamos sair daqui. Eles vão estar a postos contra nós agora."
Com seu confiável gato a reboque, ele se fez escasso de maneira inteligente. Enquanto o Sortudo possuía capacidades inimagináveis, Ves não queria arriscar sua vida contra dois esquadrões inteiros de piratas fortemente armados. Matar os engenheiros e desativar a furadeira era o melhor que ele podia fazer pelo navio. Esperançosamente, ele comprou tempo suficiente.