Após resolver o incidente do lanche da manhã, Selia preparou a mesa de trabalho para o restante dos animais.
"As aves que você pegou são chamadas de piscadores porque se assustam facilmente e são bem rápidas para voar. Geralmente, você precisa de sorte e habilidade para derrubá-las à distância. Qualquer mágica que você usou, foi uma morte limpa.
"Além do pescoço quebrado, tanto as penas quanto o corpo estão intactos."
Lith aceitou o elogio e fez uma pequena reverência.
"É só uma questão de habilidade ao usar a magia do ar, nada de mais."
A curiosidade de Selia estava longe de ser saciada, mas ela decidiu não insistir no assunto.
"Escaldar é fácil e rápido. Você só precisa colocar as aves no caldeirão por cerca de 45 segundos. É melhor mexer a água aos poucos no processo, para limpar as aves de sujeira e parasitas externos.
"Isso também ajuda a soltar a maior parte das penas. Nunca escaldar por muito tempo, ou a carne pode começar a ferver. Sem contar o risco de romper os órgãos e estragar a carne."
Lith cuidou do processo de escaldar, agitando sua mão direita para tomar o controle da água no caldeirão. Ele mexeu e ajustou a força da corrente de acordo com as instruções de Selia.
"Droga, garoto. Você está realmente começando a me fazer lamentar por nunca ter me importado com mágica"
"Você não sabe como usar magia?" Lith ficou surpreso.
"Não, e antes de hoje eu tinha orgulho disso. Eu considero a magia de tarefas um simples truque de salão. Por que perder meu tempo aprendendo a fazer coisas com magia quando consigo resultados mais rápidos e melhores usando minhas mãos?" Selia deu de ombros.
"Agora tire os piscadores da água, hora de ficar sério."
Limpar aves era muito semelhante à experiência anterior de Lith com o esquilo, mas o processo de escaldar e depenar substituía o de esfolar, e havia também a necessidade de remover o papo, o pescoço e a glândula de óleo.
Depois de terminar, os olhos de Lith apreciaram o resultado. Ele notou que, além da pele do piscador ser um pouco mais porosa em comparação com a de um frango, estava a uma assada de distância do que ele poderia comprar de volta na Terra.
"Como eu cozinho isso?"
"Ainda com fome depois de dois esquilos?"
"Sim, muito". A refeição anterior fora apenas um aperitivo, ele estava longe de estar satisfeito. "Por favor, vamos usar uma fogueira ao ar livre. Eu preciso me acostumar a não usar uma lareira."
Selia bateu a mão na testa.
"Certo, certo. Eu quase me esqueci dos problemas da sua família."
Depois de instruí-lo sobre como escolher o local certo para uma fogueira, ela mostrou-lhe como improvisar um kebab com galhos de madeira. A lição final foi sobre a altura em que o kebab deveria ser colocado para evitar que a comida queime e como reconhecer quando estava pronto para ser comido.
Depois de memorizar tudo, Lith imbuiu seus olhos com magia de fogo, ativando o feitiço Visão de Fogo, que lhe concedia uma versão aprimorada de óculos térmicos.
Então ele começou a tecer magias de fogo e vento, mantendo o calor ao redor do piscador estável, sem pontos quentes ou frios, enquanto usava correntes de ar para cozinhar uniformemente todos os cantos e recantos do pássaro.
Tal controle fino exigia que ele movesse mãos e pés, observasse a comida de diferentes ângulos e ajustasse o fluxo de mana.
Seus movimentos eram semelhantes a uma combinação de katas de artes marciais.
Selia estava prestes a tirar sarro dele por fazer uma dança de vitória por um único piscador, quando o cheiro delicioso chegou ao seu nariz.
O piscador estava assando com uma velocidade visível a olho nu. A pele se transformou em uma crosta crocante e soltou gordura que se espalhou uniformemente pela carne.
O cheiro era tão bom que, embora tivesse consumido seu café da manhã menos de duas horas atrás, seu estômago começou a roncar.
Lith retirou o kebab do fogo com magia do espírito e diminuiu a temperatura da carne assada para evitar queimaduras enquanto comia. Depois, devorou a carne, rasgando-a com as próprias mãos.
Primeiro os drumsticks, depois o peito e por último as asas.
Faltava sal e a carne não era tão macia quanto um frango assado, já que não haviam deixado a carne amadurecer. No entanto, foi a melhor refeição que Lith já teve.
"Não acredito. Não estou com fome." Lith caiu de joelhos de felicidade. Seus olhos marejaram como se estivesse prestes a chorar.
Mas aquele momento passou rapidamente.
'Eu preciso de mais! Não posso permitir que a fome me incapacite de novo.' Lith pensou enquanto olhava o sol.
Ainda faltavam algumas horas para o meio-dia. Tempo que ele poderia passar caçando.
"Mestre Selia, preciso de um favor. Preciso de um lugar para esconder minha própria caça. Pelo menos aqueles que não quero compartilhar."
"Só me chame de Selia. Caçadores não perdem tempo com formalidades, somos pessoas práticas."
Ela acenou com a mão, dispensando a necessidade de um título.
"Quanto ao seu pedido, eu não faço favores, faço acordos. E que tal isso: a partir de amanhã, você virá aqui todos os dias e limpará minha casa. Talvez, de vez em quando, você possa cozinhar algo para mim com essa dança bobinha sua.
"Em troca, guardarei sua carne pessoal em segurança. Além disso, sempre que eu fizer você cozinhar para mim, compartilharemos a refeição igualmente. Combinado?" Selia ofereceu sua mão.
Ainda era um péssimo acordo, mas era a única opção dele.
"Combinado. Eu só tenho uma regra. Eu não lavo roupas."
Depois de alguns dias, a casa de Lith ressoava com muito mais risadas e alegria do que o habitual. Levar comida para casa levantou algumas perguntas, mas nada que ele não pudesse explicar facilmente.
A comida ajudava todos a relaxar e esquecer desavenças passadas. Até mesmo Lith e Orpal começaram a melhorar seu relacionamento, limitando os olhares e insultos a um casal por dia.
Mas, mais importante, Lith finalmente pôde começar a praticar artes marciais novamente. Sua rotina era muito simples. Ele caçava de manhã, praticava magia à tarde e artes marciais à noite.
Graças à técnica de respiração Invigoração, Lith agora podia ficar acordado por quase uma semana antes de ser obrigado a descansar.
Ele saía de casa assim que seu feitiço Visão de Vida confirmava que todos estavam dormindo.
Uma vez lá fora, ele criava bonecos de lama com magia da terra tanto para praticar técnicas marciais quanto para aprimorar seu corpo. Sua primeira prioridade era a movimentação dos pés.
Talvez fosse porque ele tinha apenas quatro anos de idade, ou talvez fosse a falta de atividade devido à sua fome constante, mas seu corpo era constrangedoramente desajeitado.
Quando alguém passava algo para ele, mesmo uma castanha de um metro (3 pés) de distância, ele ou se atrapalhava ou deixava cair no chão.
Lith sabia que, embora o lançamento de feitiços fosse muito rápido, especialmente a magia do espírito, não era instantâneo. Ele não podia se dar ao luxo de se tornar um alvo fácil assim que alguém se aproximasse demais.
A magia o tornava poderoso, mas não onipotente. De que adiantava poder derrubar montanhas se ele fosse morto por um bandido qualquer que conseguisse se aproximar dele?
Ainda na Terra, Lith sempre pensava que considerar mente e corpo como entidades separadas era bobagem. O exercício sempre permitiu que ele aliviasse seu estresse e relaxasse sua mente.
Assim como estudar sempre lhe permitia ter um melhor desempenho, seja no trabalho ou nas artes marciais.
Força bruta era apenas violência, enquanto pura inteligência era apenas ideias sem substância. Somente quando a mente e o corpo eram treinados juntos o corpo podia desempenhar conforme a mente exigia.
Cerca de uma semana após Lith começar seu treinamento, algo aconteceu.
Era de noite, Lith estava sozinho praticando movimentos de pés se movendo ao redor dos bonecos de lama quando sentiu que algo estava errado.
Dor explodiu de seu núcleo de mana e se espalhou rapidamente por todo o seu corpo, acompanhada de uma onda de náusea que ele nunca experimentou antes.
'O que está acontecendo comigo?' Ele pensou. 'Isso não pode ser um gargalo. O último se resolveu ontem e nenhum gargalo jamais se sentiu assim.'
Logo ele começou a ofegar por ar. Ele se tornou incapaz de se levantar e se contorceu de dor.
'Eu não posso morrer! Eu não quero morrer de novo. Não depois de suportar tanto. Eu me recuso a ser algum escravo numa galáxia distante ou um velho esperando pela morte. Eu já tive o suficiente! Eu me recuso a morrer!'
Ele usou toda a sua força de vontade para converter cada íon de seu mana em magia da luz, combatendo a aflição que o atormentava, mas sem sucesso.
A dor piorava cada vez mais, até que seu poder se tornou incapaz de acompanhar o ritmo.
Quando Lith se rendeu, a sensação de queimação finalmente subiu pela garganta.
Lith começou a vomitar pedaços de uma substância preta e pegajosa que parecia piche, mas cheirava como algo que tinha morrido e apodrecido por semanas sob o calor do verão.
Eram do tamanho de uma noz, mas a tensão que sentiu foi como se tivesse vomitado dois elefantes andando lado a lado.
O cheiro era tão ruim que mesmo em seu estado debilitado, Lith encontrou forças para evocar magia das trevas e destruí-los sem deixar rastros.
Lith passou os minutos seguintes cuspindo, bebendo e até mesmo comendo grama para se livrar do gosto repugnante em sua boca.
Quando tudo voltou ao normal, Lith estava exausto demais para praticar, então teve que usar a Invigoração para retornar seu corpo à sua condição máxima.
Assim que Lith começou a executar a técnica de respiração, ele descobriu que agora conseguia sentir seu núcleo de mana com muito mais clareza.
Ao absorver a energia mundial com a Invigoração, ele podia sentir e manipular o mana que fluía por seus vasos sanguíneos e órgãos a ponto de visualizar até a mágica residual em seu cabelo.
A despeito de seus olhos estarem bem fechados, Lith podia ver dentro de seu próprio corpo como se estivesse observando uma imagem 3D de última geração do corpo inteiro.
Embora ainda estivesse tonto, ele tentou fazer o exercício de movimentação dos pés novamente. Os movimentos de Lith ainda estavam longe de serem perfeitos, mas ele já não se sentia tão desajeitado.
'É uma melhora incrível, considerando que até um minuto atrás meu objetivo era parar de tropeçar nos meus próprios pés. Eu me pergunto…'
Lith estendeu a mão direita para frente, aplicando a magia do espírito na cabeça dos bonecos.
'Apenas uma hora atrás, se eu tentasse atacar tantos alvos assim de uma vez, o melhor que eu poderia fazer seria apertá-los um pouco. E agora?'
Ele fechou o punho, mais rápido e mais forte do que nunca.
As cabeças dos bonecos estouraram como balões.