Dois dias sem comida, foi o castigo que decidiram dar ao gigante após o acidente. O senhor Volkan insistiu para que o levassem embora imediatamente, mas Lendall o fez mudar de ideia, argumentando que fora apenas um pequeno deslize, que ninguém havia se ferido e que não teriam mais acidentes. O capitão teve uma séria conversa com Ingall, xingando-o de todos os nomes possíveis, mas ele não deu ouvidos. Sua cabeça pensava apenas no calçado que tinha encontrado, pensou em perguntar para seu mestre como aquilo fora parar ali e, mais importante, a quem pertencia. No entanto, preferiu manter o calçado em segredo, escondido sob as roupas.
Jogado de volta ao buraco, Ingall tentava não pensar sobre sua punição, seriam dias longos e solitários naquele buraco. Preferia ocupar a cabeça com aquele mistério. Teria outros gigantes no acampamento? Improvável. Seria impossível esconder outro gigante dos olhos de qualquer um. O senhor Volkan parecia nutrir grande ódio, talvez até mesmo medo, pelos gigantes. Seria difícil convencê-lo a ter mais de um trabalhando consigo. Estava claro para Ingall que o dono daquele calçado não estava circulando por lá, ao menos não com o conhecimento de todos.
À noite, os soldados enchiam a cara e se fartavam de frutas e carnes que os caçadores traziam. Ingall podia ouvi-los rindo e cantando ao longe, seu estômago implorando para se juntar aos homens. Tentava se distrair observando os detalhes da sandália encontrada, já que ninguém parecia disposto a visitá-lo na noite fria. Sua garganta estava seca e os lábios começavam a rachar. A fome e a sede o deixavam inquieto, o que lhe dava coceiras nos pulsos cobertos pelas algemas. Ainda era a primeira noite e seu corpo já parecia não aguentar mais.
– Ei – uma voz sussurrou. Ingall, que ainda estava com a sandália em mãos, fingiu não escutar para ter tempo de escondê-la novamente. – Ei, grandão!
Ingall voltou os olhos para cima e viu uma silhueta familiar. Mesmo a luz da lua cheia não era suficiente para enxergar muita coisa.
– Se lembra de mim? – disse o homem à beira do buraco. O gigante balançou a cabeça. – Sou Walden, o prisioneiro que limpou sua merda outro dia.
O homem ria baixinho para evitar que os soldados ouvissem, o que era improvável, já que pareciam estar se divertindo muito ao redor das fogueiras. Ingall esforçava sua mente para lembrar-se do homem, forçava a vista para enxergar suas feições na noite escura, e então se lembrou. O capitão tinha lhe dito que Walden tinha traído a coroa, que estuprara e matara, tentando inclusive assassinar o próprio rei Ruzgar. O que aquele homem podia querer com ele? Ingall se encolheu como um rato assustado.
– Ei, eu sei que o que disseram sobre mim não é bom – disse Walden num tom preocupado. – Mas é tudo mentira. Eu não fiz nada daquilo e nem pretendo. Sou tão injustiçado quanto você, meu caro. Dizem que o seu povo come humanos, que bebem nosso sangue e outras atrocidades. Falam isso por que têm medo de vocês e querem que os outros também tenham, querem seu fim.
Ingall estava interessado na conversa, queria saber onde Walden queria chegar e em que momento voltaria a se comportar como todos os outros humanos e cuspir em seu rosto.
– Mas, ei, eu sei que isso não é verdade. Sei que são criaturas tão fantásticas quanto as outras, que só querem o bem da natureza, diferente dos humanos gananciosos. Sabe no que estamos trabalhando? – Ingall negou com a cabeça. – Estamos desmatando toda essa área, toda essa linda floresta, para erguer casas, enfiar mais escravos aqui e extrair todos os minérios que existem debaixo da montanha.
Talvez Walden estivesse inventando aquilo tudo, mas o senhor Volkan de fato tinha mencionado a construção de casas no dia anterior. As peças começavam a se encaixar e, apesar de ter certo receio, Ingall estava curioso para saber o que mais aquele prisioneiro tinha para contar.
– Como o senhor sabe de tudo isso? – Ingall perguntou com receio. Humanos geralmente não gostavam de responder suas perguntas.
– Ah! Então você fala – Walden brincou, rindo baixinho. – Bem, meu amigo, assim que você tiver a oportunidade de ir até o rio, verá uma pequena cabana com varas, redes e armadilhas de pesca. Verá também uma cama de palha e um pequeno berço onde um dia dormiu um belo menininho de olhos verdes, como os meus.
Walden fez uma pausa e deixou o gigante refletir por um tempo.
– O pescador é o senhor Walden? – Ingall indagou.
– Ei! Não me chame de senhor. Ainda não tenho fios brancos para isso. – Walden tentou conter o riso novamente. – Sim, eu sou o pescador, amigo. Ou era. Agora sou só um prisioneiro fedido no meio desses desgraçados. Você é bem esperto... Qual seu nome mesmo?
– Ingall, sen... Walden. Meu nome é Ingall. Mas ninguém me chama pelo nome.
– Pois deveriam, amigo Ingall. Vejo que você, assim como eu, não recebe o respeito que merece. Ei, eu disse que você é esperto, tão esperto quanto meus amigos. Eles ficariam felizes em te conhecer e tenho certeza de que você também gostaria com eles, já gostou até mesmo da sandália deles.
A mão de Ingall pousou rapidamente sobre a sandália presa na cintura de sua saia, certificando-se de que a camisa a cobria. Walden precisou tapar a boca com a mão para conter o riso alto que queria sair.
– Não se preocupe, meu caro. Seu segredo está bem guardado comigo. Meus amigos gigantes não estão mais aqui para se importarem com isso... Infelizmente.
Um silêncio doloroso se instalou entre o prisioneiro e o gigante. A cantoria alegre dos homens ao fundo deixava um gosto amargo na boca de Ingall. Ele estava prestes a perguntar o que acontecera com os gigantes, quem era o dono do calçado, como eram os gigantes, se eram livres ou tinham donos, se Walden era o dono deles... Eram tantas perguntas que todas ficaram correndo de um lado para o outro em sua mente e não saíram de sua boca.
– Ei, eu tenho que ir – o prisioneiro falou finalmente. – É melhor te entregar isso antes que me vejam. Pegue aqui.
O prisioneiro pegou uma trouxa com três pães e ofereceu ao gigante. Ingall se levantou com dificuldade e ergueu as mãos. A trouxa caiu com gentileza sobre suas palmas. Três pães grandes e inteiros, Ingall mal podia acreditar.
– Sei que não é o suficiente para saciar a fome de alguém do seu tamanho – o homem loiro falou com pesar. – Se não fosse por meus amigos de quatro metros, eu jamais teria conseguido alimentar um filho e uma esposa. Eu só queria que eles tivessem a mesma chance que eu tive. Isso é tudo o que posso fazer para tentar me redimir. Até amanhã, Ingall.
Walden partiu, deixando o gigante com um pequeno sorriso no rosto e o estômago menos vazio.