Quando eu era pequena, eu tinha medo de trovões, o Gabriel sempre foi mais corajoso que eu. Lembro bem da época em que eu corria desesperada pro quarto dos meus pais quando tinha uma tempestade rolando.
Mas como qualquer medo da infância, um dia eu simplesmente superei ele...
Acho que eu tinha uns doze anos, era uma época simples, eu só tinha que me preocupar em tirar boas notas e não aprontar na escola. Mesmo eu não sendo lá muito popular, as valentonas sempre se mantiveram longe de mim, acho que não tinha muita coisa pra zoar em mim, mas logo teria...
Estávamos na aula de educação física. Eu, como sempre, arrasando no basquete, eu fiz a minha famosa cesta de costas um segundo antes da professora apitar o final do jogo e é claro que todo mundo foi ao delírio, principalmente os garotos, meu público alvo.
Eu lembro bem de ter mandado um beijo pros boys na arquibancada e ter sentido meu ego batendo no teto quando eles ficaram todos derretidinhos, garotos são tão fofos!
"Você é demais Astrid!"
"Astrid eu te amo!"
"Casa comigo Astrid!"
Como eu amava (e ainda amo) ser o centro das atenções!
No vestiário as minhas colegas de equipe amaciaram um pouco mais o meu ego e puxaram o meu saco, eu estava conversando com uma delas quando aconteceu.
-Sabe como é, não posso ficar dando esperanças pra qualquer um, eu sou um espírito livre, não quero ficar presa a um garoto, então eu acho melhor...-Eu mesma me interrompi quando percebi que ela não prestava atenção.
-Que foi?-Eu olhei pra onde ela olhava, entre as minhas pernas, só aí eu percebi: sangue?
-Que merda, eu não devia ter usado um short branco...
Eu peguei um absorvente no meu armário e corri pro banheiro pra me trocar, foi só aí que eu pensei em uma coisa... Eu sempre fico em dia com o meu ciclo, por que minha menstruação veio tão cedo? E outra coisa, tem tanto sangue...
Isso não era normal... Ou era?
De qualquer forma, eu não tinha tempo pra ficar me perguntando, a aula já estava no final.
Um detalhe importante: aquela escola era muito longe de casa então eu sempre voltava de ônibus, naquele dia, a espera no ponto de ônibus foi muito maior do que nos outros dias porque eu não prestava atenção em nada do que minhas amigas diziam, minha mente estava perdida naquela menstruação de mais cedo.
Provavelmente não era nada preocupante, mas ainda sim... Eu não podia evitar aquela sensação de que alguma coisa estava errada...
O caminho do ônibus também foi beeeem mais longo, eu podia sentir uma pequena dor na minha região pélvica. Se isso não era mais um motivo pra me preocupar então o que era? Eu teria que ir a um hospital pra ter a certeza de que não era nada.
Uma semana se passou e os sangramentos só pioraram, as minhas dores só aumentaram e a preocupação dos meus pais crescia junto, chegou a um ponto em que eu não conseguia manter minhas pernas fechadas por muito tempo e tinha que usar absorventes o dia todo como um bebê usando fraldas, eu só esperava que o que quer que eu tivesse fosse acabasse de uma vez.
Pro meu azar, não acabou.
-Câncer...?-A ficha ainda não tinha caído, não tinha como aqueles raios-x serem meus, não era possível...
-Sim, câncer cervical, a boa notícia é que ainda está nos estágios iniciais o que facilita a cura.
—O procedimento não é caro? Não temos condição de pagar agora.
Eu lembro de não ter prestado atenção nas palavras que a minha mãe trocava com o médico por conta do choque, era tão surreal, realmente TER câncer, ninguém nunca imaginava que um dia poderia estar na minha pele.
A ciência progrediu bastante depois da clonagem e uma cura pro câncer foi desenvolvida, mas é claro que alguém sempre quer ganhar às custas do povo, como a minha mãe falou, o procedimento é demorado e tem um preço exorbitante e adivinha?
Minha família era pobre nessa época. Nós não vivíamos, nós sobrevivemos, passávamos um enorme sufoco pra poder pagar as contas no fim do mês e mal tínhamos tempo pra respirar antes de termos que nos matar de trabalhar pra sobreviver por pelo menos mais outro mês.
Levando tudo isso em conta, eu tinha poucas chances de sobreviver ao câncer e mesmo que por um milagre eu pudesse realmente sair dessa, nós provavelmente teríamos que morar na rua depois de gastar tudo o que a gente tinha pra me salvar.
E mesmo assim, não era com essas coisas que eu me preocupava.
O processo era parecido com a quimioterapia, e no caso eu teria que raspar meu cabelo antes de tudo começar. Até aquele ponto, eu nunca tinha cortado meu cabelo e cuidava tão bem dele quanto eu cuidaria de um familiar de cama e, pra mim, meu cabelo é algo sagrado.
O resto da família provavelmente não sabe, mas os Heddle são descendentes de escravos. Após anos de luta, os Heddle foram capazes de sobreviver em um mundo onde éramos caçados, mortos e aprisionados como animais, as mulheres da nossa família eram guerreiras desde aquela época e o cabelo longo era um sinal de liberdade, rebeldia, luta e pura determinação.
Quando escravos, nós éramos tratados como "mercadoria rara" pelo branco natural do nosso cabelo, nossa liberdade, dignidade e até mesmo nosso cabelo era tirado de nós então mantê-lo longo era como um símbolo e um aviso: Os Heddle são livres e lutaremos com tudo que temos para nos mantermos assim.
Eu sabia de tudo isso, eu sabia... Por isso doía tanto saber que ele seria tirado de mim, tanto que mesmo sem minha mãe perceber, eu deixei lágrimas silenciosas caírem de meus olhos enquanto ela discutia com o médico.
O processo nem tinha começado ainda e eu já estava sofrendo.
Conforme os dias foram passando as dores e os sangramentos só ficavam cada vez piores, meus pais ficavam cada vez menos em casa e por algum motivo o meu irmão também, minha quimioterapia tinha começado e é claro que eu não tive escolha senão raspar todo o meu cabelo, eu não podia me olhar no espelho, não era o câncer que fazia me sentir fraca, ter perdido meu cabelo era o que fazia.
Com meus pais e o Gabriel fora de casa, eu geralmente ia dormir sozinha, eu sentia dor, me sentia fraca, e agora, me sentia sozinha na minha própria casa. Nas noites de tempestade, onde eu normalmente correria pro quarto dos meus pais, eu só me deitava em silêncio, eu não sentia medo, eu sentia saudade, saudade daquela época onde eu não tinha que me preocupar com esse maldito câncer.
Uma noite, eu acordei com os berros do meu pai:
—Gabriel!? O que aconteceu com você!?
—Não é nada pai...
—Nada!? Um olho roxo é nada!?
—Você se meteu numa briga!? Por que!? Você nunca faz isso!—A voz da minha mãe entrou no meio.
—O que queriam que eu fizesse!? Que eu ficasse calado enquanto elas zoavam a minha irmã!?—Nesse ponto eu comecei a prestar mais atenção na conversa.—A Astrid já tem coisas demais pra se preocupar, e quando ela voltar pra escola!? Vão zoar ela também!? Eu não vou deixar!
Depois disso eu ouvi a porta do quarto dele bater bruscamente.
Eu sabia que crianças podiam ser cruéis às vezes, mas zoar alguém com câncer? E o pior é que estavam falando de mim pelas minhas costas, não queria que meu irmão brigasse por minha causa e me sentia um lixo por ele se machucar por mim, quando é que aquele pesadelo iria acabar?
Em uma manhã, meus pais me acordaram cedo e me levaram pro hospital pra mais uma quimioterapia, como de costume, minha mãe parecia estar com a cabeça em outro lugar enquanto falava com os médicos, sempre respondendo com "uhum", "sim", "não".
Em um momento, ela atendeu uma ligação e eu ouvi sem querer.
—Guillermo, pelo amor de Odin, nossa filha tá morrendo e é com isso que você se preocupa?—Ela faz uma pausa pra ouvir a resposta do meu pai.—Eu não me importo de onde vem todo esse dinheiro! Com tudo isso nós podemos salvar ela e ainda sobraria pra nos mudarmos pra um lugar melhor!
Depois de mais uma pausa, ela volta a falar.
—Nossa prioridade deveria ser nossos filhos, não me importo se é errado, vou salvar a Astrid nem que eu seja presa por isso.
Nessa hora as engrenagens na minha cabeça começaram a trabalhar, meus pais estavam discutindo bastante nos últimos dias, o motivo seria porque tinha dinheiro caindo na nossa conta, muito dinheiro, o suficiente pra pagar meu procedimento mas nenhum dos dois sabia de onde estava vindo.
No começo eles tinham a mesma ideia, devolver o dinheiro e pagar pela cura de maneira honesta. Pelo jeito a opinião da minha mãe tinha mudado, talvez por estar desesperada eu não sei. Mas o que eu sabia era que de alguma forma aquele dinheiro todo era obra do Gabriel.
No começo eu não estava tão desconfiada, ele escondia a tela do celular quando eu ou meus pais chegavam perto, ficava bastante tempo trancado no quarto e estava sempre de mau humor quando voltava da escola.
Mas aí o comportamento dele foi ficando mais e mais suspeito, ele começou a ficar cada vez menos em casa, ele foi ficando cada vez mais fechado, ele era alguém sorridente e extrovertido antes e agora ele mal falava com a gente, sem falar das reclamações da escola, matando aula, entrando em brigas e notas cada vez mais baixas.
Claro, nada disso ligaria ele ao dinheiro desconhecido, era no que eu queria acreditar.
Depois de muitas discussões eles decidiram que a minha vida era o que importava e o procedimento teve início, meu sofrimento não durou muito depois disso e eu pude voltar pra escola logo depois.
Eu implorei pra não ir, pra esperar meu cabelo crescer, mas é claro que fui obrigada a ir.
No dia da minha primeira aula pós-câncer eu caminhei com o Gabriel e o caminho todo eu pude perceber que tinha alguma coisa errada com ele, ele estava legal DEMAIS, como se a mudança de comportamento dele no período em que eu estava doente não tivesse acontecido, como se aquele na minha frente estivesse atrás de uma máscara, uma máscara sorridente.
Ele parecia se esforçar demais pra parecer alguém que ele já não era.
Quando chegamos no portão da escola eu já não pude mais encontrar ele, quando o sinal tocou eu pude ver ele falando com alguém, uma mulher alta usando um tapa-olho, ela entregou um maço de dinheiro pra ele antes dos dois seguirem caminhos diferentes.
A aula foi normal, normal até demais. O Gabriel se metia em brigas porque estavam zombando de mim, e agora todos fingiam que eu não existia?
Tudo correu normalmente até a hora da saída, quando eu fui pegar o ônibus pra ir embora. Só faltava eu e uma garota aleatória no ponto quando o ônibus dela chegou e eu fiquei sozinha.
Minha cabeça estava em outro lugar pensando em tudo que tinha acontecido nos últimos tempos, mas mesmo assim, só precisou de uma simples frase pra tirar me levar de volta à realidade:
—Melhor eu sair mesmo, vai que você me suje de sangue.—Eu ouvi ela debochar antes de entrar no ônibus e sumir, sem tempo de eu retrucar.
Depois disso eu perdi totalmente a linha de raciocínio, minha mente não parava de pensar naquela frase, fiquei tão perdida em pensamentos que nem percebi quando o meu ônibus passou, eu teria que andar pra casa.
O que eu não esperava era que naquele dia teria uma tempestade.
A chuva veio e junto dela vieram os trovões, estrondo eu tinha vislumbres de tudo o que eu passei, o câncer, meu cabelo, minha família separada e agora eu estava sofrendo bullying...
E o pior era que... Na chuva, ninguém podia me ver chorar, eu caminhava pelas ruas da cidade sofrendo em silêncio.
Eu estava chegando perto de casa quando eu ouvi outro estrondo e depois dele, eu senti uma onda elétrica atravessar o meu corpo antes de apagar.
No outro dia, eu senti que toda a atenção estava em mim, eu me sentia mais confiante do que nunca e as pessoas percebiam isso e por isso olhavam, e o melhor é que eu tinha a atenção de quem eu mais queria: dos garotos, é claro.
Nem mesmo eu entendia o motivo dessa mudança de humor repentina, talvez pelo fato de eu ter sobrevivido a um raio? Ou talvez porque meu cabelo cresceu magicamente depois disso ficando tão grande quanto ele era antes de eu ter raspado ele, o fato era que eu estava totalmente elétrica, literalmente.
—Decidiu cobrir essa careca com uma peruca é?—Eu ouvi a voz da garota de ontem e senti alguém puxar meu cabelo.
Ouvi um grito de surpresa escapar dela assim que ela me soltou, e foi quando eu me virei pra ela que todos naquela escola entenderam que eu estava de volta, minhas órbitas ganharam um brilho azul e faíscas elétricas saíam delas, com um único toque meu, a garota saiu voando com o estrondo de um trovão ecoando pela escola.
Eu já não tinha medo da tempestade, eu ERA a tempestade.