Tinha sido uma noite muito atribulada para Hiro. A morte do seu patrão, os colegas em choque, o reencontro com o seu agora novo chefe, a missão que lhe tinha sido designada…. Demasiadas coisas para ele assimilar, por isso quando de manhã pensou que ia poder finalmente descansar teve uma triste surpresa quando ao deitar-se constatou que não conseguia dormir.
Havia coisas que não estavam a ser bem explicadas, pois se fosse uma situação de ter uma alma que tinha "fugido" lá no submundo já teriam arranjado solução, eles não tinham por hábito deixar ninguém fugir. Kado tinha dito que eles já tinham enviado vários colegas, mas que não tinham conseguido encontrar o humano, isso não era também normal, não era qualquer um que conseguia fugir dos radares deles.
Tudo aquilo era de desconfiar, e ele não ia voltar ao submundo enquanto não soubesse de todos os pormenores.
Kado chegou ao seu apartamento ao fim da tarde, vinha na sua forma humana, notava-se que vinha com alguma pressa e estava impaciente, por isso quase explodiu de raiva quando Hiro lhe disse que não ia voltar enquanto não soubesse tudo o que se estava a passar.
- Penso que já te expliquei ontem tudo, queres saber mais o quê? – inquiriu Kado, visivelmente irritado por ter de dar ainda mais qualquer explicação adicional.
- Acho estranhas várias coisas… Por exemplo: ao fim de quase dois séculos é que se lembram de ceifar a vida da pessoa que vai encerrar a linhagem de quem salvei? Porque não o fizeram antes?
- Eu antes não era o teu superior, por isso não posso responder a isso. Pergunta seguinte… - resmungou Kado cada vez mais irrequieto.
- Como é que o humano fugiu dos vossos radares? Nunca vi tal coisa acontecer…
- Bem, vou repetir novamente, eu não era chefe, supervisor, o que seja, na altura, por isso não posso responder a isso. Mais alguma questão que eu consiga responder?!
- Exatamente á quanto tempo és chefe? – acabou por perguntar Hiro encolhendo os ombros. Kado resignou-se, de ombros descaídos, e com um suspiro respondeu:
- Menos de 48 horas, satisfeito?
Hiro ficou de queixo caído, teve mesmo de empurra o queixo de volta ao seu devido lugar com a mão. Definitivamente algo de muito estranho se estava a passar ali. Enquanto ele tentava perceber o que poderia ser não se apercebeu que o seu novo chefe andava rapidamente na sua direção e quando ele se apercebeu só teve tempo de ver as mãos dele nos seus ombros e de seguida sentir como se lhe tivessem despejado um balde de água gelada pelas costas abaixo. Ele conhecia demasiado bem aquela sensação: ele estava a caminho de casa.
Quando abriu os olhos, deu por si numa floresta sinistra, onde todas as arvores estavam mortas, os únicos animais que ali passavam eram cobras e as arvores estavam cheias de corvos em busca de uma presa. O chão estava cheio de folhas e de musgo, aquela floresta estava morta. Era ali a entrada para o submundo.
- Bem-vindo de volta! – exclamou com uma tremenda dose de sarcasmo Kado, virando-lhe as costas e dirigindo-se para a maior arvore que podia ser vista ali naquela floresta decrépita.
- Espera! Eu não vou entrar enquanto não me contares o que se passa! Prefiro ficar aqui com os corvos!!! – exclamou Hiro impaciente e frustrado com aquela falta de informação. Kado parou, de costas viradas ainda para Hiro suspirou, e finalmente começou a falar, mas a sua voz tinha assumido agora um ar muito cansado.
- Queres que te diga o que se passa como se nem eu sei o que se passa? Estava eu muito bem no início desta semana a registar no meu livrinho quem é que eu ia buscar naquele dia quando do nada apareceu o nosso antigo chefe (aquele que tinha a mania de dizer que os humanos e as criaturas mágicas tinham sentimentos e tínhamos de ser sempre simpáticos no nosso trabalho) – explicou ele – e disse-me que me ia promover para o lugar dele. No início fiquei contente, muito contente, porque sou um bom funcionário, sempre faço o que me pedem, nunca falhei em nada, muito menos salvei quem quer que fosse…
- Dispenso essa parte…
-… Mas depois comecei a ver que afinal eu tinha sido apenas o palhacinho que eles tinham arranjado para te convencer a voltar para resolver esta confusão. Ao que parece, a pessoa que salvaste estava grávida, e teve um bebé que acabou por não ser a pessoa mais bondosa do mundo. Criou ceitas, fez com que houvessem alguns suicídios em grupo, extorsão, várias coisas que se podiam ter evitado caso tivesses feito o teu trabalho naquele dia. Ou seja…
- …. Estás a falar de um desequilíbrio no universo. – Concluiu Hiro.
- Ainda bem que já lá chegaste!
- Então, mas e só agora é que estão preocupados com isso?
- Isto não vem só de agora. – Suspirou Kado passando a mão pelos cabelos visivelmente cansado. – Eles lá em cima andaram a tentar resolver a situação durante algum tempo, mas sabes que os patrões lá de cima, os que mandam mesmo nisto tudo começaram a ficar cansados de esperar pela resolução disto. Não houve ainda ninguém daquela família que tenha saído bem, que tenha redimido o que os anteriores fizeram e isso para eles foi a gota de água. Decretaram que a última pessoa daquela família que ainda estava viva teria de ser ceifada o mais rapidamente possível, só isso ia ajudar a repor o equilíbrio, mas foi quando ela desapareceu do mapa. Enviámos toda a gente, só faltava mesmo enviar a própria Izanami!
- Até parece que alguém a iria tirar do seu descanso eterno só para resolver uma confusão que nem é dela! – comentou Hiro, deixando escapar um sorriso leve. Ele tinha tido o gosto de conhecer Izanami, mesmo sendo ela a Deusa de toda a criação, tinha acabado por falecer após dar á luz o Deus do Fogo, tinha sido enviada para o submundo, onde ainda estava atualmente, mas ninguém se lembrava sequer de a incomodar: devido ao desgosto de amor, por se ver desfigurada, praticamente transformada em um monstro e ter de estar longe do seu amor, tinha-se praticamente refugiado de tudo e de todos. Já ninguém ouvia falar dela á alguns séculos.
- Neste momento é um problema de todos, pode vir mesmo a ser um problema dela também. – disse Kado com um olhar muito sério. Só nessa altura Hiro entendeu que afinal a situação estava mais grave do que parecia. – Temos de entrar, para que percebas o que se passa, e eu poder explicar-te até que ponto estamos em apuros. Anda, não faças mais perguntas e vamos!
Os dois Shinigamis dirigiram-se para a maior árvore daquela floresta e Kado ao aproximar-se balbuciou: "deixa-nos entrar". No momento seguinte, a árvore tinha desaparecido, estavam já noutro local que parecia saído de uma zona de guerra. O ar era muito carregado, ele tinha dificuldade em respirar e olhando á sua volta só via uma atmosfera vermelha, parecia que tinha ido parar a Marte. O chão era de uma areia negra, não havia nada ao redor sem ser estacas cravadas no chão com cabeças empaladas. Não tinham sido postas ali recentemente pelo que ele podia ver, já tinham alguns séculos. Provavelmente estavam ali para dar o exemplo a alguém que tivesse a triste ideia de pensar que poderia fugir. Era difícil até ver no meio daquela atmosfera cerrada. Ao fim de alguns minutos, quando os seus olhos já se tinham habituado àquele novo ambiente, pôde ver pela primeira vez do que Kado tinha falado.