Era madrugada. A temperatura estava a quase -2°C e a neve já decorava as casas e a floresta aos arredores de Tusneer. John, Allec e Acira eram gratos aos seus mantos de pelos grossos, descendentes de longas linhagens, que protegiam a gordura e não deixavam que a baixa temperatura os afetasse. Uma manada de bisões migrava pela região e a matilha conseguira apanhar um dos jovens, sendo uma noite de fartura.
— John, não se mova! — Acira gritou.
— Que foi? — perguntou e ficou imóvel.
Ela se aproximou hesitante, como se fosse surpreender uma presa, o lambeu na bochecha e saiu mastigando algo rindo. — Tinha um pedaço em você!
— Como ousa a rir e se aproveitar de seu alpha! — ele a derrubou no chão em gesto brincalhão e começara a puxar sua orelha. Ela o empurrava com as patas traseiras e o mordia em sua pata esquerda.
— Aí qual é vocês dois! — Allec disse empurrando John, que caíra ao lado de Acira. — Vocês estão em cima da comida!
— Desculpa Al. — respondeu ambos. Os dois se entreolharam e John começou a lambê-la no focinho, limpando os vestígios de sangue. Acira retribuiu o carinho, esfregando sua cabeça no pescoço dele.
Os três devoraram o jovem bisão, sobrando apenas os restos grudados aos ossos, para algum animal carniceiro. Acira começara a morder e avançar contra Allec com intenção de derrubá-lo, mas ele se esquivava e retribuía os gestos. John, deitado próximo a uma raiz, apenas observava a brincadeira, que mais parecia uma dança entre os dois, mas em um instante escutaram algo na floresta e todos olharam na mesma direção.
John se levantou e começou a farejar, enquanto o silêncio predominava, sussurrou:
— Caçadores... — suas orelhas e focinho ficaram inquietos, farejando três direções. — Temos que ir agora! Estão em grande número e estão próximos... Rápido!
Acira e Allec obedeceram e correram, John foi logo atrás deles que pararam.
— Pra onde iremos John? — perguntou seu irmão.
— Pra longe, não parem! — e saiu na frente guiando-os.
— Vamos para os rochedos! — gritou Acira. — Precisamos encontrar algum local pra nos escondermos! A neve irá atrasá-los.
John assentiu.
Allec seguia o alpha da matilha, mas sentiu um cheiro familiar vindo em direção a eles, que chamou sua atenção. Quando estavam próximos a um riacho parcialmente congelado, ele viu John e Acira prestes a atravessá-lo, na intenção de cobrir os seus rastros, mas hesitou em segui-los. Retornou 300 metros pela trilha que deixaram, escalou uma árvore e se camuflou no topo dela. O curioso cheiro que sentia se aproximava rápido, até que avistou os faróis da caminhonete esportiva, que estacionara a 100 metros do riacho.
Ao atravessarem o riacho, John notou que apenas Acira saíra da água. — Allec?
— O quê? Ele estava bem atrás de mim...
— Maldita adolescência... Ele deve estar do outro lado.
— Por que ele faria isso? — perguntou assustada.
— Ele sempre teve curiosidade sobre eles... Deve ter aproveitado a oportunidade.
— Vamos voltar então... — Acira disse voltando a entrar na água.
— Não, espera Acira! — John encheu os pulmões de ar e uivara para seu irmão, mas não obteve resposta. — Vamos dar a volta e encontrá-lo, mas com cuidado, pois deve estar próximo dos caçadores, por não ter respondido.
— Câmbio, aqui é a "armamento", na escuta "equipe de extermínio"?
Allec tinha farejado duas fêmeas e uma delas emanava o cheiro, que ele não conseguia assimilar a quem pertencia, por estar nervoso. A mulher no volante chamara pelos codinomes no walk talk novamente, enquanto a outra parecia revirar alguma bolsa.
— Câmbio, contato auditivo confirmado no perímetro, iremos montar plantão próximo ao riacho! — a mulher afirmou para a pessoa do outro lado da linha.
Allec desceu lentamente da árvore, para evitar o máximo de barulho possível e se aproximou pelos arbustos. Observou uma jovem sair do automóvel, dona do cheiro que o atraía até ali. Ela mexeu na traseira da caminhonete e montara uma armação para um rifle, acima do teto da cabine do carro. O coração de Allec ficou tão acelerado pela surpresa quando a reconheceu, que começou a respirar como um asmático.
"Je-Jenny... Então você é uma... Evi!", pensou ficando em silêncio e acalmando a crise respiratória, não sabendo o que pensar ou o que deveria fazer naquele momento. Tentou ir até ela, mas logo desistiu, pois na forma em que se encontrava ela não o reconheceria e seria muito perigoso. Fixou seus olhos nela e notara que ambas ficaram em silêncio. "Você não é uma assassina... Eu sei disso!", pensou lembrando-se dos momentos em que passara com ela. Jennifer utilizava óculos de visão noturna e mirava o rifle para o outro lado.
De repente ela efetuou um disparo e um som estrondoso dominou o ambiente e foi logo carregando o rifle, que manejava com destreza. Allec não conseguia se mover, porque pela primeira vez sentia medo dela e não acreditava, que ela seria parte do seu pior pesadelo.
— Acira! — John parou bruscamente e foi até ela, que havia sido atingida e caíra no chão, com seu ombro sangrando. — Acira... Por favor, aguente firme!
— Estou bem John, não se preocupe... A bala atravessou.
— Graças a Deus... — ele lambeu o local da ferida. — Consegue andar?
— Acho que sim.
— Então vamos, estamos próximos, estou sentido o cheiro dele. — John a ajudara levantar, empurrando-a com o focinho. Quando foi dar início a corrida, ele ouvira outro disparo, empurrou Acira para o outro lado e desviou por muito pouco. Farejou na direção do tiro e avançou furioso. Seja lá quem tivera disparado, iria dilacerá-lo.
Mais alguns tiros vieram em sua direção, mas John conseguia vê-los perfeitamente, vindos das atiradoras na caminhonete a algumas dezenas de metros e se esquivou de todos. Ele não sabia quem eram, devido aos óculos de visão noturna, que atrapalhava visualizar os rostos, mas jurou pra si arrancar cada pedacinho da carne delas. Esperou atrás de uns arbusto, até elas recarregarem as armas para se aproximar. Focalizou em atacar a que estava acima do carro, com seu rosto grudado ao rifle, se posicionando novamente para atirar. Aproveitando a pequena brecha, John correu como um foguete, cortando a distância entre eles de 30 metros em alguns segundos. Faltando poucos metros de cravar suas garras na humana, Allec surgira e o empurrara, fazendo-o cair de cara na neve.
— Fujam! — gritou Allec de costas para as humanas.
— Saia da frente! — John rosnou furioso, se preparando para avançar novamente e ficou indignado ao ver seu próprio irmão, defendendo aqueles seres, que os queriam mortos.
— Se quiser pegá-la, terá que passar por m...
John não o deixou terminar e avançou em seu ombro. Allec começara a mordê-lo também e ao mesmo tempo tentava segurá-lo. John o chacoalhava para que o soltasse, como se fosse um brinquedo. Escorria muito sangue de ambos, que pareciam decorar a neve em uma pintura abstrata.
Jennifer ficara em choque e estremecera de medo dos lobos enormes e ainda mais falantes, pois era a primeira vez que via tão de perto e com vida. Enquanto o carro se afastava, ela olhou para trás, observando os lycans brigarem entre si. Sua mãe gritou de dentro do carro, perguntando se estava bem e ela apenas assentiu, sem desgrudar os olhos da direção dos lobos, que já haviam sumido de sua vista. Jennifer ficou mais apavorada pela voz daquele lobo ser familiar e o porquê dele a estar protegendo, sendo que se tivesse notado a presença dele, o teria eliminado.
Enquanto a caminhonete se afastava, Allec conseguira desequilibrar John e o derrubar quando ele tropeçara em um buraco. O abocanhara no grande volume de gordura, localizado logo atrás das orelhas e parecia estar grudado a John. Recebia mordidas por todo o corpo, mas mesmo assim não o largaria. Mesmo no chão, John pegara um impulso e empurrou seu irmão com as patas traseiras, levantando todo o quadril de Allec. Sem o apoio do chão, Allec perdera o contato com o couro de John e fora lançado contra uma árvore. John se recuperava da luta, nenhum deles sentia dor, por estarem transbordando adrenalina. Disparou em direção as humanas, que não eram mais visíveis, mas algo interrompera sua corrida. Allec o havia mordido em sua pata traseira e o segurava firme.
— O que está pensando? Elas vão fugir! Me larga seu idiota! — foi morder seu irmão no pescoço, mas Acira apareceu e ficou sobre Allec.
— John acalme-se... Você está perdendo a cabeça! — gritou Acira.
Allec resmungou algo incompreensível, pois ainda segurava a pata traseira de John, todo ensanguentado.
— Não me peça para me acalmar, você quase foi morta Acira! — John rosnou se libertando de seu irmão, que o soltou imediatamente após lhe direcionar outra mordida.
— Sim, mas estou bem... Daqui a algumas horas estarei curada... — disse se aproximando e começou a lamber o sangue atrás de sua orelha para acalmá-lo.
— Mesmo assim...
— John, você não é assim, nós nunca matamos humanos antes... Por que agora? — rosnou Allec.
— Calado... Você não iria entender...
Os três olharam para uma direção, ao escutarem passos e galhos quebrando a algumas centenas de metros.
— Temos que achar um lugar seguro, depois conversamos... — comentou Acira.
Jennifer e sua mãe fizeram um retorno, depois de alguns quilômetros do riacho e alertara seu pai pelo walk talk sobre o aparecimento dos lycans. Pedira para tomar cuidado, pois elas não sabiam mais da localização dos lobos.
Marcus analisava agachado o local em que os lycans haviam lutado. Acompanhado de mais quatro homens fortemente armados. Parou quando um farol de automóvel se aproximava e comentou entre os homens:
— Eles tiveram uma briga feia bem aqui... Parece haver uma matilha de três ou quatro membros... — disse se levantando e indo até a caminhonete, que acabara de estacionar.
— O que os levaria a brigar em plena fuga? — perguntou outro homem.
— Liderança, comida, uma fêmea? Sabe-se lá, são só animais burros. — comentou outro.
— Você está enganado. — disse Eleonora ao sair do carro e continuou: — Estamos lidando com os de "linhagem pura".
— Como sabe? São todos iguais e estes estão quase extintos graças a nós. — disse um dos homens que se apoiara em sua arma e sorria.
— Tem certeza? — perguntou Marcus lançando um olhar preocupado para sua mulher e filha.
— Se duvida Jennifer pode confirmar...
— É verdade... Eles falaram e tinham total conhecimento de seus atos. — Jennifer disse hesitante.
Os de "linhagem pura", eram os lycans que já nasciam como "monstros" e que tinham total controle de sua consciência, podendo se transformar com ou sem o ciclo da lua cheia, ao contrário dos que eram transformados, que saíam desgovernados, matando qualquer ser que surgisse em seu caminho. Os puros também eram mais fortes, ágeis e inteligentes. Grande parte destes geralmente eram os alphas de uma alcateia, mas há muito tempo muitos deixaram de transformar humanos devido as suas leis, para evitar o caos entre as espécies.
Marcus sorriu e olhou para seus companheiros de caça e comentou: — Quem diria amigos, pelo menos desta vez teremos um pouco de diversão, porque já faz anos que não temos uma caçada de verdade.
Os três descansavam numa enorme fenda entre as rochas. Acira dormia e se recuperava do ferimento, que já tinha cicatrizado. John ficou ao lado dela e depois de um tempo que ela adormecera, sentou-se ao lado de Allec, que estava de tocaia perdido em seus pensamentos.
"Jenny... O que devo fazer? Eu ainda a amo."
— Al... Me desculpe por antes... Eu perdi a cabeça...
— Está tudo bem... — Allec disse e desviou o olhar.
— Não está não, eu quase machuquei você pra valer... É que na hora eu fiquei com tanto medo de perdê-la, que acabei descontando toda a raiva que sentia daquelas caçadoras em você... Peço perdão irmão.
— Não esquenta mano, só me prometa que não vai atacar nenhum humano novamente, como quase o fez hoje.
John olhara para Acira por alguns segundos e voltou a encarar seu irmão, suspirando antes de dizer:
— Eu preciso te contar uma coisa... Lembra aquela vez em que fui baleado na fazenda e eu havia caçado uma lebre para me recuperar?
— O que tem isso?
— Eu saí com uma mulher naquela noite, mas acabei perdendo o controle e... — John abaixou as orelhas e desviou o olhar antes de dizer. — Eu a matei...
Allec se levantou e o encarou com um olhar de espanto e recuou um pouco. — Como você pôde John? Então os lobos que mataram aquela turista nos jornais, eram nada mais nada menos do que você! — Allec rosnou mais alto. — Como você teve coragem?
— Eu não consegui me conter e eu estava enfraquecendo devido ao ferimento. — John ficou aflito ao revelar a verdade a seu irmão.
— Basta! Eu não quero ouvir mais nada, este não é o irmão que eu conhecia. — Allec rosnou indignado, sentia-se traído e saiu correndo.
— Allec! — John gritou, mas ele não parou e rosnou: — Droga!
— John? — Acira havia acordado. — Está tudo bem?
— Me desculpe te acordei...
Acira se levantou e sentou-se ao lado dele e perguntou:
— O que houve?
— Contei a ele Acira... Contei que eu sou um assassino! Ele não irá me perdoar...
— Não diga isto, ele é seu irmão, só deve estar um pouco confuso, mas pelo menos você não mentiu pra ele... Vá atrás dele John, eu ficarei bem.
— Tem certeza?
— Claro. — ela esfregou seu rosto no dele.
— Certo... Voltarei logo.
John farejou seu irmão a mais ou menos um quilômetro do esconderijo.
— Vá embora John, me deixe sozinho! — gritou Allec, que certamente já o farejara se aproximando e devia estar se escondendo atrás de alguma raiz no chão.
— Isso eu não posso fazer... Eu prometi que sempre tomaria conta de você! — afirmou John em um tom calmo e protetor.
— Eu não consigo acreditar que você teve coragem de tal ato... Eles são semelhantes a nós!
— Agora você me entende o porquê eu sou contra aos relacionamentos com eles... — John suspirou antes de continuar e tentou se explicar. — Eu não pude evitar, foi algo mais forte que eu... Fiquei apavorado no momento em que percebi que ela não mais respirava... E também fiquei com medo de te dizer a verdade.
— Você sujou o nome de nossa família! — Allec rosnou furioso e ainda permanecia-se escondido. — A mãe e o pai estariam furiosos com você agora, pois somos de linhagem nobre e jamais mataríamos um humano, exceto em legítima defesa!
— Sei disso, mas assim como qualquer ser vivo, eu aprendi com um erro e nunca mais o cometerei de novo, pois eu tenho a Acira agora... E só peço que... Por favor me perdoe.
— Você promete? Nunca mais machucar um humano? — Allec saiu do esconderijo e encarou John.
— Se é o que você deseja eu prometo!
— Então tenho uma condição John... Você aceitará e conhecerá minha namorada, que é uma mera humana!
— Está bem! — John começara a caminhar. — Vamos pra casa agora, os caçadores já devem ter recuado...
Allec pegou velocidade, o derrubou na neve e saiu em disparada enquanto gritava:
— Isso é por ter mentido pra mim!
— Hey... Você me paga por essa! — e correu atrás de Allec.