Não preciso fazer tudo sozinho. Compartilhar não é deixar cargas sobre os outros, mas é partilhar a experiência que nos damos.
Quando sentiu a presença dela abaixo fez uma curva suave e a localizou. Ela estava com FlorDoAr e uma mãe-da-mata num largo campo à beira de uma floresta velha, que não era muito grande. À direita viu uma cadeia de montanhas, todas brilhando em verde sob o sol.
Deram dois giros sobre elas. Sorriu quando elas os perceberam e Ariel levantou os braços, chamando-os para se juntarem a elas.
Olhou de lado para o filhote, que estava tranquilo e sossegado.
Devagar perderam altitude, até que num movimento simples e suave desceram ao lado de Ariel.
- Este é um filhote de dragão açoite, dos reinos do oeste – apresentou assim que desceram.
Lázarus viu a mãe-da-mata vasculhando o céu, e percebeu que ela devia estar esperando pelos pais do açoite.
– Ele é um órfão, e estamos juntos – esclareceu.
- Sinto muito, meu pequeno – sussurrou a mãe-da-mata, fazendo um mesura carinhosa e gentil para o dragão. Ele a entendeu, a cabeça num pequeno movimento de agradecimento.
Seu coração doeu pelo pequeno dragão. Nenhum bebê dragão daquela idade deveria ser separado dos pais, ainda mais daquela espécie, visto que os dragões do oriente eram os mais familiares deles. Observando rapidamente o vigilante ela entendeu, tal como os outros, que algo muito grave deveria ter ocorrido com os pais, e tal como os outros, deixou o assunto de lado. Há certas coisas que não precisam ser lembradas.
- Estamos muito honrados pelas suas visitas – falou FlorDoAr, os gestos cerimoniosos e atenciosos.
O dragão, após olhar com atenção para as três mulheres, fez um curto cumprimento com a cabeça. A majestade do gesto alegrou a todos os presentes.
Lázarus sorriu em agradecimento.
- O prazer é nosso.
Após os cumprimentos e Ariel fazer a apresentação de Lázarus para a mãe-da-mata e a flor-do-fogo que ele sabia ser a mãe da amiga da vigilante, Ariel apontou para a floresta, dentro da qual ele viu o pequeno acampamento.
Eles haviam montado um acampamento provisório mais para dentro da floresta, sob as árvores, no chão que haviam limpado das moitas e matos. Eram algumas cabanas de paus amarrados com cipós e cobertos com folhas e ramos. Um córrego corria um pouco à direita, marulhando suave.
As mulheres continuaram a conversar, enquanto os conduziam por uma estreita trilha para o acampamento.
- O que aconteceu com aquele dragão azul, que vi com você, na primeira vez que nos encontramos? Você também pareciam muito amigos – perguntou, caminhando ao seu lado.
- É ela – esclareceu. – E ela está no ninho.
- Ora, que beleza. E quantos ovos tem lá?
- Só um, Ariel. Os dragões sempre põem um ovo de cada vez – esclareceu. – São muito raros os casos em que põem dois ovos.
- Ah, isso eu não sabia.
- É que os cuidados com os filhotes são por muito tempo, até poderem levar a vida por conta própria – intrometeu-se a mãe-da-mata de modos gentis e atenciosos, se afastando assim que entraram no acampamento, indo ter com os seus.
A comunidade ficou em polvorosa. Todos os que se encontravam ali rapidamente se aglomeraram, observando maravilhados o belo dragão.
O pequeno açoite observou todos por algum momento, se mostrando tranquilo no meio deles, que logo retomaram suas atividades.
Então ouviram um grito febril numa beirada do mato.
Sol vinha correndo, os movimentos agitados, os olhos brilhantes presos no dragão.
Sem que tivessem tido tempo para qualquer coisa ela se aproximou e se abraçou com o dragão, que apenas baixou a cabeça, apoiando com suavidade sobre a cabeça da menina.
A mãe e os outros sorriram aliviados, vendo o cuidado do dragão em não a machucar. Apesar de ainda ser muito jovem, em comparação com a menina ele era extremamente grande e forte.
- Você é lindo demais – falou apenas elevando o rosto para ele. – E é quentinho e cheiroso – riu feliz, soltando-o por fim. Lázarus sorriu, ouvindo o suave marulhar do dragão, que suavemente se deitou perto deles.
Lázarus devia ter desconfiado de que algo estava estranho quando a pequenina flor-do-fogo gritou toda elétrica, correu para o seu lado.
Ela parou bem pertinho. Os olhos brilhavam como espelhos tocados pelo sol, os movimentos nervosos, a atenção fixa em suas asas.
O pequeno dragão parecia ter notado algo, porque mantinha Lázarus sob atenção. O sorriso que parecia estar pregado no dragão era outro aviso que Lázarus devia ter desconfiado.
Acreditando ser apenas curiosidade com as asas, com bastante cuidado esticou a asa esquerda até bem próximo dela, que avançou as mãozinhas, tocando com carinho uma das penas.
Ela se voltou alegre para o pai, que se aproximava. Então, como uma criança que consegue um presente há muito desejado se virou novamente para o anjo, os olhos postos nas penas que passou a alisar, totalmente maravilhada.
- São macias demais – falou alegre e extasiada.
- Se você pegar bastante delas pode colocar dentro de um saco e usar como travesseiro – riu Ariel.
Lázarus viu o açoite alerta e feliz, e agora foi tomado de preocupação. Mas, sorriu malandro, como se estivesse para fazer o feitiço se voltar contra a feiticeira, o que o dragão parecia não confirmar, porque ainda o mantinha sob feliz atenção.
- Ah não, tia – debochou Lázarus apressadamente, vendo com apreensão a maldade nos olhos da vigilante. – Você prometeu que iria dar algumas das suas penas macias e cheirosas para a pequenina, não disse? E olhe, mocinha, as delas são bens mais bonitas que as minhas, não são? Além disso, elas são bem mais fofinhas que as minhas.
No ato a menina se virou para a vigilante, a boa aberta de surpresa, toda radiante, os olhos cheios de luz e desejoso.
- É verdade, é verdade? Eu quero um montão, eu quero muitas e...
Ariel frestou os olhos, atentos em Lázarus, enquanto mantinha no rosto um sorriso forçado.
- Filha, eles estão brincando. As penas para eles são como os... os dedos para nós. Você entende? – interveio a mãe, tentando consolar a filha que ficara subitamente triste ao notar que não iria ganhar nenhuma pena, os olhinhos perdidos no chão, todos molhados.
Com divertida repreensão a mãe olhou para Lázarus, enquanto puxava a menina contra suas pernas.
Ariel se aproximou toda sorrisos de Lázarus. Lázarus pensou em recuar, fugir, mas não teve tempo, assim que ouviu um resmungo alegre do açoite. Num movimento súbito e doloroso ela arrancou três penas da asa de Lázarus que esticou com suavidade para a pequena.
A pequena flor-do-fogo deu um grito de alegria enquanto dava pequenos saltos, apressadamente guardando as penas na roupa, os olhos felizes postos em Lázarus e nas asas dele, que rapidamente as recolheu, para tristeza da menina.
- Aiiii... – reclamou Lázarus, enquanto mostrava que estava olhando para as costas de Ariel, que o olhou preocupada, por sua vez.
- Nem vem, nem pense nas minhas. Você começou...
- Eu? Eu comecei? – ele reclamou. – Ah, tudo bem – ele disse, para alívio da vigilante. – Por enquanto – voltou, para preocupação da vigilante.
- Meu nome é Ánacle, como já disse antes – se apresentou o ellos. – E esta é FlorDoAr, minha esposa, e esta é...
- Eu sou... – começou a menina, doida para se apresentar por si mesma.
- A TrêsPenasRoubadas, acertei? – Lázarus interrompeu, rindo.
- É um nome bom, e talvez eu use mais tarde, mas por enquanto é Sol. E eu já posso ascender – contou.
- Então me mostre, Sol – pediu Lázarus satisfeito, se sentando no chão ao lado do dragão na frente da menina.
Sol ficou em silêncio. Com força fechou os olhos e as mãos, o rosto se tornando rígido. Então todos viram quando surgiram algumas tatuagens na testa da menina. Elas se ramificaram lentamente para suas têmporas, parando um pouco antes de tocar nos ombros. Com alguma dificuldade viram seus cabelos começarem a se tomar de fagulhas, tal como a pele.
Lázarus, tomado de carinho, avançou um dedo e tocou entre os olhos da menina, e toda a tensão se foi.
Sol abriu os olhos, agora lavaredas, enquanto as gavinhas se esticavam aos ombros e braços e outras linhas desciam para os dois lados da cintura. Os cabelos e a pele se incandesceram com suavidade.
FlorDoAr, emocionada, olhou enternecida para a menina, que agora ria, feliz com o que se mostrava. Então ela suspirou e deixou que o fogo se fosse.
- Ora, por que se apagou tão cedo filha? – perguntou o pai.
- Porque o fogo pode machucar as plantas e os que vivem nelas. Tenho que usar só de vez em quando, não é mãe?
- Isso mesmo, filha – concordou a mãe orgulhosa.
Lázarus se levantou. Com suavidade acariciou a cabeça da menina, que logo correu para junto de outras crianças, tirando das roupas as penas e as mostrando, como um troféu.
- Ela sempre foi incrível – suspirou Ariel feliz.
- Ela é – falou o pai, seguindo a filha com os olhos, enquanto conduzia Ariel, Lázarus e o dragão para junto dos outros, que largaram os afazeres e se reuniram com eles.
- Como estão indo as coisas? – Lázarus quis saber, olhando para as pessoas reunidas em um grande arco na frente deles.
- Tudo calmo. Vimos alguns vigilantes passando por aqui, e alguns demônios também, mas não nos atacaram – relatou um velho curupira de modos tranquilos e orgulhosos.
- Acho que ficaram sabendo que temos alguns bons aliados – sorriu FlorDoAr.
- Tomara, tomara.
- O que o preocupa, Lázarus? – perguntou Ánacle, vendo que o rosto do anjo ficara toldado, como se uma pesada nuvem tivesse encoberto o sol.
- Tive um encontro com um vigilante chamado Beliel. Em algum momento antigo ele e minha família fomos muito próximos, mas agora a dor e a mágoa o tomaram, e ele está mais parecido com um demônio do que com um anjo – contou. – Ele parece que está tendo algumas ideias bem preocupantes.
- O que ele disse ou fez que o preocupa tanto, anjo?
Lázarus olhou para uma flor-do-mato que o observava com olhos de fogo.
- Problemas, muitos deles. Ele deu a entender que, se Urântia não existisse, a criação poderia estar em paz. Isso me preocupou, porque eu o conheço.
- Acha que ele pode destruir mesmo esse planeta? – ela quis saber.
- Tramar contra ele sim, destruí-lo, não. Há muitas forças agindo aqui – cismou.
- Ele tem um exército muito grande? – quis saber uma sedenerá de modos esquivos e movediços, como feito de pequenos e sutis movimentos.
- Uma força bem considerável. Eles são vigilantes, e são guerreiros há um tempo longo demais.
- O que está passando pela sua cabeça, Lázarus? – perguntou Ariel, observando a face tranquila dele.
- Tenho alguns amigos, anjos e vigilantes, dranians. Acho que podemos fazer frente ao exército que Beliel e outros caídos estão pensando em levantar contra Urântia.
- Também tenho alguns amigos – cismou Ariel. - Vou entrar em contato com eles.
- Deverá ser uma força considerável então – avaliou Lázarus, tentando não deixar a esperança se dissipar.
- E também tem os dragões, não é mesmo? – falou um grande tutu, os olhos postos em açoite.
Lázarus ficou sério, encarando-o com tranquilidade.
- Eles não irão – falou com calma.
- Como? – espantou-se um curupira, os cenhos franzidos. - Não vai chamar os dragões para a batalha? Se você os chamar tenho certeza de que eles se apresentarão e...
- Não! Não vamos querer manchá-los com essas pendências que não são deles – declarou, sob os olhos tranquilos de açoite.
- Mas, eles também vivem aqui. Eles são guerreiros formidáveis e podem pender a guerra para...
- Essa é uma decisão individual, de cada um deles – declarou com teimosia.
- Os dragões – falou Ariel com tranquilidade, - são seres individuais e de grande nobreza. Eles têm uma consciência superior, e já sofreram demais. Eles podem decidir por si mesmos.
- Mas, eu insisto que...
O curupira que começara a falar parou instantaneamente quando o dragão se levantou, os olhos fixos nele.
- Vamos deixar claro uma coisa: as guerras deles não me interessam, pouco sentido fazendo para mim, tal como as minhas não interessam a eles, pouco sentido fazendo a eles. Eu não os sirvo, como eles não me servem. Se quiserem falar com eles como amigos, isso é com vocês. Mas estejam mais que preparados para serem postos de lado – sorriu, sob o olhar aprovador do dragão.
- Mas, esse belo e nobre que está ao seu lado, aposto que o defenderia e pensaria em suas guerras, se isso você pedisse – falou um lobisomem, os modos respeitosos, o que deixou o dragão tranquilo.
- Há uma estória aqui: somos uma família. Eu o adotei quando ele estava quase morto.
- Ah, entendi. Agradeço a explicação – falou com humildade e majestade, o que deixou Lázarus gratamente surpreso, visto a terrível fama dessas pessoas.
- Eu que agradeço sua atenção e sua nobreza – agradeceu.
- Que bom, que bom, adoramos seres nobres – falou um ancião se esforçando em quebrar aquele clima ruim. – Sabem, talvez alguns ainda não saibam, ou não se lembrem mais: mas há uma outra força aqui, anjos, que ainda não se mostrou.
Lázarus e Ariel se fixaram nele.
Aquele imenso mapinguari era, provavelmente, o ancião mais antigo das pessoas e homens, e o respeito que impunha não tinha como ser questionado. Seu nome era Absinto, e sua palavra, que sempre proferia com cuidado, era como uma lei, tal o respeito que inspirava.
Ele era um sujeito bom de se olhar, cismou Ariel. A pelagem dele era bem esverdeada e longa, parecendo muito macia. Porém, quando se mexia, se se prestasse atenção podia-se ouvir suas escamas roçando, fazendo um marulho como de pedras caindo lentamente de uma montanha.
Ao lado dele, sentado em meio arco, os outros conselheiros estavam em silêncio, como se pensativos. Mas ela sabia que eles estavam muito atentos, e que só iriam intervir se isso se mostrasse necessário. E, atrás deles, podia contar dois observadores[1], uma harpia de olhos duros e um humano, que parecia ser um rei de algum território.
- Já ouviu falar no ajuntamento dos poderosos, nos danatuás[2]? – perguntou um portentoso anaquera.
- Já ouvi uma vez – falou Ariel. – Foi durante uma guerra que vocês travaram contra uma assembleia de demônios e anjos que os queriam submeter. Uma poderosa união das pessoas, com homens e anjos...
- Isso mesmo, vigilante. Então, fomos deixados em paz desde aqueles dias, e acreditávamos que poderíamos manter assim. Mas, vejo que não – cismou Absinto. – Então, avisos já foram lançados ao ar bem agora. Os danatuás estão se aprontando – avisou.
Lázarus olhou para o céu, onde viu bandos e bandos de pássaros mensageiros partindo em disparada em todas as direções.
[1] Os que observam e podem opinar numa reunião do conselho (*)
[2] Danatuás, o ajuntamento dos poderosos. Reunião de anjos, pessoas e nefelins para a guerra. (*)