(1834 palavras)
FELICITY
Era só mais uma manhã normal e monótona na minha doce e (des)animada cidade, Portland. Tudo bem, eu admito, não é exatamente a cidade que é desanimada e sim eu mesma. Mas espera! Não era assim que essa história deveria começar! Bem, digamos que nunca fui exatamente boa em começar histórias... Nem em terminá-las. Tudo bem, tudo bem, eu deveria me apresentar primeiro, sem dúvidas.
Chamo-me Felicity Burnett e a princípio isto é tudo que vocês precisam saber. Brincadeira.
Nasci e cresci aqui em Portland, hoje tenho 20 anos e não há muito o que dizer sobre minha vida. Estou em meu penúltimo ano da faculdade de Enfermagem e nas horas vagas ajudo meus avós com as lagostas. Sim, eles são... Lagosteiros? Não sei se existe exatamente uma palavra para isso mas o meu avô se encarrega de apanhá-las enquanto minha avó tem um pequeno restaurante na costa onde prepara essas delícias que são o ponto chave aqui no Maine.
E eu? Bem, eu tento me dividir em duas para ajudar os dois, mas confesso que prefiro ficar no restaurante. Digamos que o mar não é muito a minha praia, o que é aceitável considerando o fato de que não sei nadar, nem cachorrinho! Com todo respeito aos cachorros...
Considerem também o fato de que sou uma daquelas pessoas doidas que sempre pensa que o pior vai acontecer com elas, então digamos que eu olho para o mar já imaginando coisas impossíveis como uma "lagosta-mãe" gigante querendo se vingar pela morte de seus "lagostas-filhos" e decide levar para o fundo do mar o assassino deles.
E adivinha quem será a assassina do dia? Eu mesma! Posso até ver os tentáculos (ou seja lá como chamam aquilo) me puxando para o meio do mar com um movimento brusco. Eu começo a gritar desesperada e indefesa e logo penso na estratégia perfeita: se não sei nadar, eu posso boiar até chegar na beira da praia, afinal, dizem que o mar sempre devolve tudo que entra nele na beira da praia. Com certeza esse é o plano perfeito e acreditem, se um dia essa lagosta aparecer, eu não vou me entregar sem lutar!
— Felicity! — ouço a voz da minha avó.
— Sim vovó! — respondo.
— É a terceira vez que te chamo, o que estava pensando?
— Ahmm... — "será que eu respondo lagosta gigante revoltada?" — Que eu preciso estudar para a prova de anatomia que tenho segunda-feira — sorrio.
— Ah minha menina! — ela acaricia meu cabelo e sorri — Por que você não pega algumas destas lagostas prontas para o jantar e vai pra casa estudar?
— Tem certeza de que não precisa mais da minha ajuda vovó?
— Sim, os clientes são poucos hoje, não se preocupe.
— Tudo bem então, te vejo mais tarde.
Dou-lhe um beijo na testa e vou para casa. Não sem levar as lagostas, é claro, afinal é o meu jantar e eu adoro as lagostas da vovó. Mas vocês devem estar se perguntando onde estão os meus pais e porque eu não falo neles e blá blá blá. Bem, a verdade é que eles estão bem, talvez até demais. Moram em Washington DC e são políticos corruptos e egoístas que não se importam nem um pouco com a sociedade (nem com a filha). Quando se mudaram para lá eu tinha 14 anos e decidi que ficaria no Maine com meus avós, foi a melhor escolha que fiz.
Mas enfim, eu gosto da minha vida como ela é e tento tirar o máximo de cada momento bom que eu vivo. Tento extrair coisas boas até mesmo dos momentos ruins, afinal, como é mesmo aquela frase? "Se a vida te der limões, faça uma limonada". É exatamente o que procuro fazer!
Assim que chego em casa, apresso-me para tomar um banho bem quente porque não sou exatamente daquelas pessoas favoráveis à banhos gelados, não. Eu odeio água fria! À menos que esteja fazendo uns 38°C, gosto de ver o espelho do banheiro todo embaçado pela fumaça do vapor. Logo que termino o banho, dou conta de comer minhas lagostas frescas até o último filete de carne descansar tranquilamente no meu estômago. Talvez não tão tranquilamente assim considerando que ele ainda tem um longo caminho a percorrer até meu vaso sanitário. Mas isso não vêm ao caso.
Meus avós chegaram quando eu já estava me preparando para dormir. Ainda era cedo mas por algum motivo sentia-me sonolenta ao ponto de ter aqueles breves cochilos em que você acorda com a cabeça tombando.
— Sua bênção vó, sua bênção vô?!
Aproximo-me dos meus avós e peço a bênção antes de me dirigir para o quarto.
— Tão cedo? O relógio ainda não apontou 21h — minha avó diz.
— Sim vovó, estou realmente com sono, acho que deve ser o suco de maracujá que tomei mais cedo.
— Então que Deus lhe abençoe, minha filha — ela aperta minha mão.
— Querida você pode me ajudar com as lagostas amanhã no cais? — meu avô questiona.
— Claro que sim vovô, não tenho nada para fazer amanhã. Que horas devemos ir?
— Bem cedo, eu preciso resolver algumas coisas no centro pela tarde, então sairemos às 7 da manhã.
— Tudo bem, estarei pronta!
— Deus lhe abençoe minha neta querida!
Vovô aperta minha mão e assim me despeço de ambos indo em direção ao meu quarto. Hoje o dia foi tranquilo mas ainda assim sinto-me cansada de alguma forma. Talvez seja resultado das longas semanas que passaram em que estudei madrugadas sem parar para minhas provas teóricas. E imaginar que as provas práticas ainda estão por vir... Com este pensamento ameaçando atacar uma crise de ansiedade em mim, finalmente adormeci sem nem mesmo apagar as luzes.
Quando acordei no outro dia, quase atrasei-me para ir ao cais. Eu não queria que isso acontecesse pois meu avô não me acordaria, ele simplesmente me deixaria continuar dormindo e depois diria que eu parecia estar em um sono muito bom e não teve coragem de me acordar. Eu sempre me sentia culpada quando isso acontecia pois sabia que ele precisava de mim, o trabalho com as lagostas não era tão fácil assim e ele já não era mais o mesmo de 20 anos atrás. Fiz minha rotina matinal em menos de 30 minutos e estava pronta exatamente às 6h50 da manhã. Desci as escadas correndo e encontrei meu avô já preparado para sair.
— Não estava planejando sair sem mim, estava? -pergunto sorrindo.
— Você me pegou com a boca na botija! -ele ri.
— Espertinho, não tão rápido! Deixe-me apenas pegar uma maçã e vou comendo no caminho.
— Eu te espero no carro. -responde.
— Chego em 5 minutos.
À esta hora, minha avó com certeza já deve ter chegado ao restaurante. Hoje é sábado e os fins de semana costumam ser bem lotados por aqui, de forma que ela sempre vai mais cedo pois o número de turistas aumenta relativamente.
Entro no carro ao lado de meu avô e nós partimos para o cais. Não pude deixar de notar o quanto o tempo está bom hoje, o céu não tem sequer uma nuvem e o azul recobre toda a imensidão. Que dia lindo!
O caminho até o cais levava em média 15 minutos de carro e aproveitei esse período para curtir a beleza que se estendia à minha frente. Assim que chegamos no cais, tratei de organizar os materias necessários para capturar as lagostas: luvas, armadilha, saco de pesca e o restante do kit que não vale a pena comentar. Enquanto isso, meu avô prepara o barco para partimos em direção onde encontramos lagostas com mais facilidade.
Muito bem, lembram de quando disse que o mar não era muito a minha praia? Eu realmente estava falando sério! Ajudo meu avô há anos em alto mar e até hoje ainda sinto-me enjoada todas as vezes em que subo no barco e nos afastamos do cais. Mas fazer o quê, nem sempre a vida é um mar de rosas, às vezes é só de lagostas mesmo...
Começamos a montar as armadilhas e eu torcia fortemente para conseguirmos muitas lagostas em pouco tempo, será que era pedir demais? Meu avô parecia animado, como sempre. Ele adorava isso, ele e o mar pareciam ter uma conexão única e inexplicável. Será que sou mesmo neta dele?
As horas foram passando e conseguimos uma boa quantia de lagostas que deveriam servir por alguns dias.
— Acho que podemos voltar — vovô diz.
— Vou guardar as armadilhas — falo mais do que depressa.
Até que enfim! Meu avô começou a mudar a direção do barco de volta para o cais e eu me sentia aliviada. De repente algo fez com que os pelos do meu corpo se eriçassem de forma abrupta. O que estava acontecendo?
Lembram-se de quando eu disse que o tempo estava bom? Pois bem, agora está apavorosamente estranho, tudo bem que aqui o céu sempre fica nublado mas agora ele está particularmente assustador! É como se uma tempestade de granizo fosse cair sobre nossas cabeças e arrancá-las do pescoço.
As ondas começam a ficar agressivas e sacudir o barco me causando náuseas. Deus me ajude! Olho para o vovô apavorada e ele sorri pra mim.
— Está tudo bem, conseguiremos chegar no cais antes dessa tempestade!
Como ele consegue estar tão calmo? Como consegue permanecer sereno com essa mudança de tempo em menos de 5 minutos? Tudo bem que eu não acredito em coisas sobrenaturais mas a situação aqui está sinistra! Se Zeus existisse eu diria que ele brigou com a esposa e está completamente enfurecido. Na verdade, eu diria que Zeus e Poseidon estavam tramando uma batalha pra ver quem pode mais, céu ou mar. Eu só queria pedir que esperassem eu sair do mar para continuar essa luta...
Meu avô era um ótimo navegante e tinha muitos anos de experiência, mas eu não sabia dizer se essa experiência seria o suficiente para nos tirar dali. E assim que esse pensamento percorreu a minha mente, eu senti o barco bater em algo que fez-me perder o equilíbrio e, mesmo sem acreditar no que estava acontecendo, vi-me caindo indefesa em direção ao mar...
Eu não sei nadar, eu não sei nadar, eu não sei nadar. Fiquei repetindo isso na minha mente várias vezes mas parecia piorar a situação. Eu estava afundando. Literalmente afundando! Na verdade, acho que nenhuma navegação havia afundado tão rápido quanto eu estava. Tentei pedir socorro, mas isso era maluquice pois ninguém poderia me ajudar. Eu mal enxergava a embarcação de meu avô porque a água insistia em cobrir a minha cabeça. Bóie, bóie, bóie. Não estava dando certo porque eu também não sabia boiar!
Sabem qual é o maior problema com pessoas neuróticas como eu que sempre fazem planos de sobrevivência para situações onde se luta para sobreviver? É que esses planos só dão certo na nossa cabeça, porque na vida real... É bem diferente. E após essa constatação, ficou bem claro para mim, antes de se afogar, bóie se conseguir.