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Chapter 3 - Capítulo 3 - O Rei de Maresia

(2206 palavras)

FELICITY

Mesmo o castelo sendo todo de pedra, o interior era decorado de forma impecável, apesar de bastante sombria. Era como se não houvesse vida ali e isso me assustou um pouco. Umas flores aquáticas pegariam bem...

Assim que entrei na sala onde o rei me esperava, assustei-me com sua aparência. Ele não era nem um pouco como eu havia imaginado, nada de 60 anos, nada de cabelos grisalhos e barriga de cerveja, isto é, se existe cerveja aqui. Ele era jovem, muito mais do que eu esperava, talvez 30 anos, no máximo. Tinha cabelos escuros que caíam em sua testa conforme o movimento da água ao seu redor, os olhos eram verdes e perspicazes, parecia um olhar de gato que me analisava além dos ossos. Minha nossa senhora, sorte a minha não ter pernas nesse momento porque se tivesse, elas estariam como duas gelatinas. Como dizem, há males que vêm para o bem.

Ele se levantou do trono que estava assentado e eu quase me joguei no chão implorando misericórdia. Ele era extremamente mais alto que eu e maior em todas as outras coisas também.

- Majestade, a senhorita enviada está aqui.

O guarda faz uma reverência e sai da sala imediatamente. Quase choro ao observar ele se afastar e me deixar sozinha ali com aquele guarda-roupas de cauda escamosa. Inclusive, era uma cauda muito bonita, um tom de azul que combinava perfeitamente com o claro de sua pele. O rei se aproxima de mim e me encara, posso notar uma dor muito grande em seus olhos mas que acaba ficando escondida através da expressão carrancuda que ele mantém.

- Então é você a enviada de Karpata?

- Enviada de quem? -pergunto confusa.

- Karpata. -ele repete- A Senhora das Adivinhações. Você disse que veio trazer minha resposta.

Oh céus! Maldita hora que essa minha língua solta foi inventar uma mentira tão cabulosa!

- Oh! Sim, Sim. Claro! Karpata!

- Você esqueceu o nome dela? -ele pergunta desconfiado.

- Com certeza que não meu rei! Acontece que lá em... em... onde vive a Senhora das Adivinhações, nós a chamamos de... Mãe Karp! -invento nervosa.

- Mãe Karp? -ele pergunta como se não acreditasse.

- Pois é, mas isso é só para os íntimos, liga não. -tento não dar importância.

- Você fala de um jeito muito diferente. - ele diz se aproximando mais um pouco.

- Diferente? Diferente como? Não tem nada diferente. Sou totalmente normal.

- E o que é normal pra você, senhorita?

- É tudo que não é diferente. -respondo rápido com um sorriso amarelo- Mas não vamos fugir do motivo da minha vinda aqui, afinal, o senhor é o rei, deve estar muito ocupado com os hóspedes de Coral.

- Na verdade eles já foram para os aposentos, você tem minha total atenção.

Porque tudo da errado na minha vida?

- Ah que maravilha! Aposentos sempre são bons, tirar uma soneca, puxar um ronco...

- Puxar um ronco?

- Sabe como é né?! Quando o sono bate, não tem quem segura! -dou risada.

- Senhorita, acredito que sua linguagem é informal demais para falar com um rei.

Engulo em seco. Droga, será que eu já o irritei? Não fazem nem 5 minutos!

- Me desculpe senhor, mil perdões, vossa... Majestade. -faço uma reverência desajeitada.

- Não vamos mais perder tempo, quero que me diga qual a resposta que te trouxe aqui. Como eu posso reverter essa situação?

Mas que diacho de situação é essa que ele está falando?

- Como o senhor pode... Reverter essa situação? -repito.

- Sim.

- Bem... É preciso levar em conta que essa situação não é tão complicada assim...

- Não é tão complicada assim? -a voz dele se eleva e percebo que se irrita.

- O que eu quero dizer, é que o termo "complicação" não se encaixa adequadamente nessa situação, seria um eufemismo! Sinto muito rei, é uma situação tão complicada que a resposta que vim trazer é que não há reversão!

Perfeito! Assim eu me livro dessa conversa de resposta. Quando observo o rei, percebo que ele senta no trono com o rosto pálido. O que foi que eu disse? Será que essa situação é tão importante assim? Mas que droga! Não posso deixar que ele pense que não tem saída para algo que talvez tenha... Mas o que vou dizer? Eu nem sei do que se trata... Pensa Felicity, pensa.

O que é a chave e resposta para tudo nos livros que eu leio? Será que isso se encaixa nessa situação? Bem, isso será o meu triunfo ou o meu fim...

- Mas existe uma maneira... -começo e percebo o rei voltar sua atenção novamente para mim e a esperança voltar para seu olhar- Uma maneira de reverter isso...

- Qual é? -ele pergunta parecendo um menino indefeso.

- Uma palavra, uma simples palavra chamada... Amor. -faço voz e expressão de sábia pra causar um impacto maior.

Que foi? Não me julguem! Todos sabem que o amor sempre resolve tudo nos contos e o bem sempre vence o mal, é conhecimento empírico. E é óbvio que tudo que esse cara precisa é de amor, olha só para essa cara de carente e esse rosto triste. Aposto que o amor vai resolver todos os problemas dele!

- Amor? -a palavra sai ríspida e amarga de seus lábios.

- É a única forma. -respondo.

- Como o amor pode ser minha única chance de trazer Ariela de volta? -ele pergunta revoltado- Não existe nada que me faça amar algo que não seja ela!

A tristeza em seus olhos se torna tão profunda que é quase insuportável de ver. Então era essa a situação que ele queria reverter... Trazer de volta a princesa de Coral, sua esposa. Isso só me deixa ainda mais triste porque todos sabem que não tem como voltar dos mortos. Seja lá onde Ariela está, já passou dessa pra melhor e não tem como atravessar a linha da morte regressando pra vida.

Não fale mais nada Felicity, só diga que sente muito, se despeça dele e encontre outra maneira de voltar para casa.

- Sinto muito majestade, caso exista outra maneira ainda não foi descoberta. Desta forma...

- Então é possível que exista outra forma? -ele pergunta com um fio de esperança.

- Bom, pode ser que sim. Mas para encontrar essa forma é preciso anos de estudo e dedicação...

- Perfeito, deixarei você encarregada disso de agora em diante.

- Quê? -grito.

- E não é preciso que volte para Karpalândia, a biblioteca real e a sala de poções mágicas são as mais completas em todo o reino, nem mesmo Karpata possui o acervo que temos aqui. Você parece ser inteligente senhorita, acredito que com muito estudo e dedicação total você encontrará uma outra forma em menos de um ano.

Ele é louco ou o que? Como vou me livrar disso agora?

- Isso seria uma honra para mim majestade. -sorrio- Mas infelizmente Karpata precisa de mim e tenho certeza de que ela não vai gostar da ideia de perder uma súdita como eu por tanto tempo. Peço perdão.

- Será que devo lembrá-la de que tanto você quanto Karpata são minhas súditas? E que como súditas devem em primeiro lugar satisfazer os desejos do rei?!

- Certamente que sim senhor. Mas acontece que Karpata...

- Agora já chega!

Ele se levanta e percebo o momento em que ele pega o tridente nas mãos. Essa não! É agora que ele vai me torrar, é o meu fim! Eu me jogo no chão e começo a chorar.

- Por favor majestade eu imploro não me mate!

- Mas o que...

- Eu sei que rebati suas palavras e quis recusar seu pedido...

- Do que você está...

- Também sei que te desrespeitei usando linguagem informal e não fazendo uma reverência assim que entrei, mas mesmo desta forma, não acha que a morte é um pouco cruel demais?

- Eu não estava...

- Eu sei que talvez pra você eu seja só mais uma dos milhares de seres que você já torrou com seu tridente, mas eu prometo que se me poupar serei fiel à você e somente a você, por favor não me mate!

Imploro desesperadamente e só paro de chorar quando sinto as mãos do rei me puxarem para cima com força e ele me encarar com o rosto muito próximo ao meu. Meu coração acelera instantaneamente com aqueles olhos verdes e profundos me avaliando.

- Você quer por favor calar a boca?- ele pede e eu balanço a cabeça- Você é louca ou o quê? Quem disse que vou te matar?

- Mas... Você... Você pegou o tridente então eu pensei que... que...

- Que eu iria te matar à sangue frio?

- Bem... Acontece que... Eu ouvi rumores...

Ele solta o meu braço e eu quase caio novamente no chão. O rei emite uma risada fraca e sem humor.

- Você ouviu rumores. -ele pondera- É claro que ouviu...

- Eu sinto muito. -abaixo a cabeça.

- Não precisa. Muitos rumores sobre mim têm surgido ao longo dos anos, especialmente os que dizem respeito ao monstro que me tornei.

- Monstro?

- É como alguns me definem. Um monstro cruel e sem coração que não ama a nada e nem ninguém.

- Tenho certeza de que isso não é verdade.

- Não, talvez eles tenham razão. Eu realmente não amo nada e nem ninguém. Sou cruel e sem coração. Um monstro.

- Pois eu não acredito nisso. Se realmente fosse tão cruel assim, não se importaria em cuidar do Reino e nem dos seres que habitam aqui. Você tem o tridente em mãos o que te confere todo o poder no mar. Poderia fazer o que quisesse, mas escolheu cuidar de tudo, mesmo sozinho e tenho certeza de que faz isso muito bem.

O rei virou em minha direção e vi em seus olhos um olhar que não havia contemplado ainda, parecia... Surpresa? Choque? Ele me fitou por mais alguns segundos e comecei a me sentir desconfortável. Caramba! Por que o olhar dele me deixa tão nervosa?

- Mas então, se não ia me torrar com seu tridente, o que ia fazer? -pergunto mudando de assunto.

- Eu ia apenas enviar uma mensagem para Karpata informando-a que você ficaria aqui por algum tempo. -ele responde pegando o tridente novamente.

- Não! -grito.

Se ele fizer isso, descobrirá na hora que sou uma farsa!

- Não? -ele questiona me encarando.

- Quer dizer... -limpo a garganta- Karpalândia têm passado por momentos difíceis ultimamente e a... mãe Karp acaba ficando muito ocupada. Uma mensagem do próprio rei acabaria assustando-a. Pode ficar tranquilo majestade, eu mesma mandarei uma carta informando-a.

- Então está bem. -ele responde desconfiado- Mas diga-me, que momentos difíceis Karpalândia têm passado?

- Bem... - e lá vem outra mentira - Tem a ver com fome...

- Fome?

- Falta de... Suprimentos.

- E por que Karpata não me avisou sobre isso? - ele pergunta preocupado.

- Ela não queria preocupá-lo, sabe que o rei têm estado muito ocupado também. Mas não se preocupe, está tudo sob controle. O problema já está quase todo resolvido!

- Ainda assim! Eu tenho que saber de tudo o que acontece no Reino. Karpata sabe disso, não deveria ter escondido de mim. Falarei com ela agora mesmo.

Ele ameaçou pegar o tridente novamente e a sensação de estar sem saída tomou conta de mim. Eu não tinha mais desculpas, teria que apelar novamente para uma cena que vi em um dos livros que li. Incorporando a atriz que existe dentro de mim, comecei a fingir fraqueza e mal estar.

- Oh céus! -escorei-me em uma mesa e levei a mão à testa.

- Qual o problema? -o rei pergunta.

- Eu... Eu não sei... De repente tudo começou a girar... Acho que vou desmaiar...

- O quê? - ele se aproxima preocupado.

- Está tudo ficando... escuro...

Aproveito sua aproximação e finjo que estou caindo. Obviamente faço isso na direção em que ele está, desta forma, ao invés de bater com a cara no chão, minha cabeça tomba sobre seu peito e ele me segura com os braços. Que é? Não é todo dia que se tem a oportunidade de cair nos braços de um Tritão que além de ser rei, é lindo.

Tudo bem, essa não é exatamente a hora certa para admirar a beleza dele considerando que provavelmente só estou adiando o momento da minha morte, mas eu não poderia perder essa chance.

- Guardas! Guardas chamem ajuda! - o rei grita e me pega no colo levando-me para algum lugar.

- Majestade? - ouço a voz assustada de um guarda se aproximar.

- Chame o médico real! Agora!

- Sim senhor!

Fazendo uma retrospectiva de todos os anos da minha vida, chego à conclusão de que nunca menti tanto quanto no dia de hoje. Na verdade, eu nem sabia que minha mente era capaz de criar tantas mentiras. Eu queria que não fosse. Porque aqui, nesse momento, nos braços do rei Tritão, sinto que ele não merece o que estou fazendo. E o pior de tudo é que já não sei se sou capaz de me livrar dessa teia de mentiras sem acabar como uma sardinha enlatada...