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FELICTY
Eu sempre acreditei que minhas neuras não passavam disso: neuras, e jamais se concretizariam. Eu estava errada. Bem, quase errada. Na verdade, talvez eu estivesse certa. Tudo bem, agora não estou falando coisa com coisa mas eu não sei exatamente de mais nada. Só acho que morri afogada e estou vivendo uma espécie de transe pós-morte traumático no qual eu ainda respiro mesmo estando debaixo d'água e mesmo não conseguindo abrir os meus olhos.
A situação não estava boa, mas é como dizem, tudo que está ruim pode ficar bem pior. E foi exatamente o que aconteceu! Senti um cutucão na minha orelha. Na verdade, não sei se era bem um cutucão. Bem, era um cutucão, mas não um cutucão qualquer, acontece que não eram dedos que me tocavam, isso eu tinha certeza.
- Qual o problema dela? Porque não acorda logo? -ouvi uma voz ridícula falar.
- Ela quase morreu, é normal demorar para se recuperar. Agora pare de cutucar a cabeça dela ou pode causar uma contusão. -outra voz disse, uma voz masculina.
Então quer dizer que eu não tinha morrido? Mas então porque eu tinha a sensação de ainda estar submersa embaixo d'água? Aos poucos comecei a abrir os meus olhos e a primeira visão que tive quase me fez gritar. Tinha uma lagosta falando. Uma lagosta! Eu morri, com certeza morri. Lagostas não falam! Ou será que falam? Talvez a minha neura com a lagosta mãe realmente tivesse um fundo de verdade... Eu sabia! Eu sabia que nem todas as minhas neuras eram invenção da minha cabeça.
Observei com os olhos entreabertos enquanto a lagosta conversava com um... Tritão? Tá, isso já é demais! Definitivamente eu morri! Não que um tritão existir fosse mais louco do que uma lagosta falar, mas a combinação das duas coisas era inaceitável até mesmo para minha mente criativa.
Eles estavam tão absortos na conversa que sequer perceberam que eu havia aberto os olhos. Talvez eu devesse limpar a garganta e perguntar o que estava acontecendo. Não, não, melhor não. A melhor coisa no momento é fingir que ainda estou dormindo/morta até ouvir as verdadeiras intenções deles comigo. Vai que realmente é uma vingança planejada?
Quando percebo que a lagosta está virando em minha direção, fecho os olhos rapidamente. Eu nunca fui boa em fingir soneca porque eu sempre começava a rir, mas nunca estive em uma situação dessas antes então torço para não ter uma crise de risos neste momento tão inoportuno.
- Talvez se eu pegar uma alga e enfiar dentro da boca dela, ative algum reflexo de sobrevivência. -a lagosta comenta.
Ah pronto! Agora além de falar, lagosta também quer dar ideia. Ideia muito mal elaborada devo ressaltar. Permaneço com os olhos fechados esperando a resposta do Tritão.
- Que ideia péssima! -Ele responde.
Pelo menos alguém tem bom senso, penso.
- Se quer mesmo ativar um reflexo de sobrevivência deveria tentar cortar um dos braços. -termina o Tritão.
Como é que é Senhor cauda verde?
- Ficou maluco? -grito sem perceber e acabo assustando os dois... seres.
- Você estava bisbilhotando a nossa conversa? -o Tritão pergunta.
- Sim, e graças a Deus! Vocês iam cortar o meu braço?
- É claro que não, eu estava brincando. - ele ri.
- Eu não estava. -a lagosta fala- Ela bem que merece.
- E você fica bem mais bonito no meu prato, de boca fechada. -falo brava.
- Agora você vai ver!
O lagosta vem pra cima de mim e assim que tento correr dou de cara com a areia do fundo do mar. O que aconteceu com as minhas pernas? Quando olho para baixo sinto minha pressão cair instantaneamente. Invés de pernas e dedos com unhas perfeitamente pintadas pela minha pedicure super talentosa, vulgo eu mesma, agora eu tinha uma cauda. Uma cauda! Era brilhante e roxa e parecia uma escama de peixe.
- O que vocês fizeram comigo? -grito.
- Eu sei, eu sei. Não precisa me agradecer, eu sou demais. -o Tritão responde.
- Agradecer? -pergunto incrédula.
- Pela cauda. -ele aponta como se fosse o óbvio.
- Você é louco? -pergunto.
- Ai ai, tem gente que não sabe mesmo agradecer. -o lagosta fala.
- Fica quietinho aí vermelhinho antenudo. -ralho.
- Você ouviu isso Darvin? Ela está tirando sarro das minhas antenas! Eu disse para deixá-la morrer afogada mas você nunca me ouve! Fica aí pensando que é herói...
- Está bem Muci, será que você pode nos deixar sozinhos por um momento? -o tritão, Darvin, pede.
- Então o lagosta tem até nome? -dou risada.
- Sua... -o lagosta começa um palavrão mas é cortado.
- Muci, por favor. -Darvin repete.
- Está bem! Mas saiba que estou de olho em você mocinha. -ele fala cerrando os olhos para mim.
Eu faço sinal de uma faca cortando o pescoço dele e Darvin se apressa para fechar a porta antes que Muci decida voltar e me atacar.
- Peço desculpas pelo Muci, ele não gosta muito de humanos, acredita que são todos comedores de lagostas à sangue frio. Eu tento dizer que nem todos são assim mas ele não aceita. É lamentável.
- É. -sorrio- Lamentável...
Se ele descobre que eu pesco lagostas, corto-as e coloco na panela pra cozinhar... Será o meu fim!
- Mas então, qual é o seu nome? -ele pergunta.
- Sou Felicity. Olha, será que você pode me dizer como isto -aponto para a cauda- aconteceu? E como é que estou respirando embaixo d'água?
- Ah isso. -ele fala como se não fosse nada- Foi eu quem te dei, gostou?
- Você... me deu?
- Sim, um presente.
- Um presente?
- É isso aí, não precisa me agradecer, eu sou do tipo que faz o bem sem esperar nada em troca.
- Eu sou uma sereia! -falo desesperada.
- Wow, calma aí, você não é uma sereia, você está uma sereia. É diferente.
- Como é que é?
- Isso aí. -ele fala colocando algo de comer na boca descontraído.
- Tá, então desfaz! -mando.
- Ham... Acho que você não vai querer isso...
- Eu acabei de dizer pra desfazer, eu quero sim. Anda, faz logo.
- Então tá... -ele vem na minha direção. - Só quero deixar claro que estamos muito longe da Costa agora então o seu corpo provavelmente não vai ser encontrado. Não vai ter um velório digno, sinto muito.
- Que história é essa de velório? Você disse que eu não tava morta!
- Quando foi que eu disse isso?
- Na sua conversa com o lagosta doido, você disse "ela quase morreu, é normal demorar para se recuperar".
- Ah isto! Bem, é verdade. Você não está morta... ainda. Isso por que eu te salvei e usei meus poderes para te transformar em sereia antes do seu último suspiro. Mas se voltar a ser humana agora... O feitiço não surtirá efeito algum.
- Então ou eu fico sereia pra sempre ou eu fico morta?
- Não exatamente. Você precisa viver um ano como sereia para que o feitiço se torne permanente.
- Um ano? Eu não posso ficar aqui por um ano! Eu tenho faculdade, meus avós, amigos... Uma vida! Tem que existir outra maneira!
- Desculpa, não tem.
- Sempre tem! Sempre existe uma brecha em feitiços, sei lá, um beijo de amor verdadeiro, uma lágrima sincera que escorre dos olhos de alguém que ama alguém... Alguma coisa! Pelo menos é assim que é nos livros que eu leio...
- Bem, existe uma maneira, mas... -ele fica pensativo.
- Mas o que? -pergunto irritada.
- É melhor não. Na verdade, eu nem deveria cogitar essa hipótese.
- O que é?
- Não, não, não. É muito perigoso.
- Me fala o que é! -imploro.
- Está bem. -ele suspira- Você já leu histórias sobre sereias?
- É claro que sim!
- Sabe quando dizem que o tridente do Rei dos Mares possui o poder de fazer qualquer coisa?
- Ham... Sim?!
- Esse tridente existe e realmente é muito poderoso, mas ele só funciona se estiver nas mãos do rei ou de alguém a quem ele ama.
- Sem problema, isso é moleza. Onde está esse rei? Ele tem algum filho? Esposa? Pais?
- Não.
- Tá então... Sobrinhos? Avós?
- Não. -sacode a cabeça negativamente.
- Tios? -ele nega- Um padrinho talvez? -nega novamente- Um bichinho de estimação?! -tento uma última vez.
- Não.
- Ele não tem ninguém pra amar? -pergunto incrédula.
- Ninguém.
- Tá então me leva até ele que posso convecê-lo de me ajudar por si próprio.
- Ficou maluca? Ele odeia humanos mais do que qualquer criatura na face da terra.
- Gente que horror, porque isso?
- Por que é por causa de humanos que ele não tem ninguém.
- Como assim?
- O rei era filho único, antes da morte de seus pais ele se casou com a princesa do Reino Coral, eles se amavam, era lindo o que sentiam um pelo outro, eles teriam um bebê em breve. Mas um dia, a princesa decidiu ir à costa salvar um filhote de baleia que ficou preso em uma rede de pesca. Infelizmente, ela foi capturada e morta pelos pescadores.
- Isso é... Horrível!
- Desde então, o rei se tornou sombrio e cada dia mais solitário. Ele nunca quis casar novamente e não abre brecha para nenhuma das pretendentes impostas pela nobreza. Ele se fechou totalmente para tudo. É como se só existisse escuridão dentro dele.
- Olha, eu sei que deve ter sido muito doloroso. Mas todos têm experiências dolorosas e... Uma hora seguem em frente e superam. Tenho certeza de que posso convecê-lo a me ajudar.
- Você é mesmo doida.
- Você vai me levar até ele ou não?
- Se é o que você realmente quer... Mas acho que tive uma ideia.
- O que é?
- Se você disser que é humana, ele nunca vai aceitar ajudá-la.
- Mas se eu não disser, como vou fazer ele me transformar em humana de volta?
- Ele não precisa te transformar em humana de volta tola. Você só precisa convencê-lo a concretizar um feitiço que foi lançado em você. Diga que é um feitiço de amor, não faz diferença.
- Mas ele não vai saber que estou mentindo?
- Felizmente o rei não tem esse poder, nem o tridente dele.
- Você é um gênio, Darvin! Obrigada mesmo!
- Disponha. Mas é sério... Felicity não é? -concordo- Precisa ter cuidado, se fizer algo que irrite o rei ele pode te torrar em três segundos e todo seu esforço terá sido em vão!
- Tá legal, vai ficar tudo bem. Eu sempre fui boa em convencer as pessoas.
Eu estava tentando ser otimista e confiante, mas que história é essa de me torrar em três segundos? Ninguém tinha me falado nada sobre ser torrada! Nem sei o que é pior, morrer afogada ou morrer afogada e torrada no mesmo dia!
Será que Darvin ficará ao meu lado enquanto falo com o rei? Ele parece ser uma boa pesso... sereio? Tritão? Enfim! Ele parece ser bom, e é muito bonito também, olhos claros, cabelo castanho, pele de porcelana... Mas eu não me engano, tenho certeza que é gay! Isto é, será que existem sereias gays? Interessante...
- Você ficará ao meu lado enquanto falo com ele? -pergunto.
- O rei nunca atende duas pessoas ao mesmo tempo, terá que entrar sozinha.
- Hum... Tranquilo. -sorrio- Vai ser mais rápido do que estamos pensando.
- Se eu estiver certo e ele te torrar, vai ser mesmo!
- Quê? -pergunto apavorada.
- Brincadeira. - ele ri.
- Quantas... Pessoas... Quer dizer, seres do mar, ele já matou?
- Só algumas centenas. -responde normalmente.
- CENTENAS? -arregalo os olhos.
- Talvez milhares. Não dá pra dizer.-ele dá de ombros.
Muito bem, acho que minha pressão alta tá começando a ficar elevada. Tá legal, eu não tenho pressão alta, mas é bem provável que a partir de agora me torne hipertensa. Como ele pode dizer essas coisas tão calmamente? Que insensível! De repente começa a me faltar ar... ou seria água? Isso é tão estranho! Sugo toda a... água que consigo e solto pela boca. Calma, ele é só um homem, tudo vai dar certo.
- Podemos ir? -Darvin pergunta.
- Com certeza! -respondo animada e otimista.
- Sabe, você é muito mais corajosa do que eu pensei!
- Coragem é o meu segundo nome! -sorrio nervosa.
- Sério?
- Não, mas seria um belo segundo nome.
- Seria. -ele pondera sobre- Mas também seria contraditório alguém com nome coragem ser covarde.
- Realmente. Seria mais um dos dilemas da vida humana.
E desta forma, conversando sobre trivialidades, Darvin e eu partimos em direção ao Palácio de Maresia. Interessante, sempre que eu lia histórias sobre humanas virando sereias, imaginava que era impossível usar a cauda e que o procedimento de aprendizagem seria tão difícil como aprender a andar. Talvez seja assim para sereias de verdade, mas para mim, estava sendo muito fácil, era como se tivesse feito isso a vida toda e devo admitir que é bem legal!
As coisas embaixo da água eram lindas! Após 10 minutos de mergulho ao lado de Darvin eu estava totalmente encantada! Haviam centenas de tipos de corais e peixes ao nosso redor. Além disso, existia realmente uma cidade embaixo da água, sereias e tritões passavam ao nosso redor conversando animados como se fosse só mais um dia comum. Bem, para eles era mesmo...
Mas o mais engraçado é que existia de tudo ali. Lojas de diversas coisas como: camas, pratos, acessórios de cabelo, jóias... Claro que não era nada humano, era tudo feito com a própria natureza e... Isso me encantou ainda mais. Tinham até restaurantes com cardápios de comidas feitas com diversas frutas e folhas, tudo temperado com óleos vegetais. Eles tinham carne de soja!
- Já estamos quase chegando. -Darvin avisa.
Mas não era necessário avisar, era óbvio que estávamos chegando porque uma grande construção de pedra estava se agigantando à nossa frente. Era como um daqueles castelos que você vê nas fotos da Escócia ou de algum país europeu, só que embaixo d'água. Era muito grande, chegava a ser monstruoso. Como os humanos não tinham descoberto algo tão grande no mar? Bom, se bem que na verdade era tudo pedra, e pedra não é tão interessante assim. Haviam dois guardas na porta de entrada do Palácio.
- Nós viemos falar com o rei. -Darvin anuncia.
- Vocês tem hora marcada?
- Não, mas o rei disse que sempre está disponível para seus cidadãos.
- Não neste momento, ele está recebendo convidados importantes do Reino Coral.
- É um assunto muito importante! Diga que é... Sobre a resposta que ele têm buscado! -me intrometo.
Darvin me olha de relance mas não fala nada. Um dos guardas fala para o outro entrar no castelo e informar o rei. Darvin me puxa para um canto e sussurra:
- Que história é essa de resposta que ele tá buscando?
- Foi a única coisa que consegui pensar! Eles não iam nos deixar entrar!
- Ficou maluca? Começar tudo com uma mentira é uma péssima ideia!
- Mas você também me deu uma ideia de mentir.
- Tá mas... -ele fica sem justificativa- Só me deixa fora dessa sua loucura!
- Está tudo bem Darvin. Olha, eu te agradeço muito por ter me ajudado e me trazido até aqui. Quando eu entrar, você fica aqui fora, se algo der errado finja que nunca me conheceu e fuja.
- Você não está com medo?
- É claro que estou com medo! Mas é a minha única chance! Não posso ficar aqui por um ano, todos me darão como morta, será uma tragédia para meus avós.
Ouço o barulho do portão abrir e o guarda anterior aparecer.
- O rei vai recebê-la no salão principal, por favor me acompanhe.
Dou um abraço em Darvin e sussurro um "muito obrigado" em seu ouvido. A seguir, sigo em direção ao guarda.
- Por aqui senhorita.
Ele aponta o caminho e obedeço. Sigo firme em sua direção, mas no fundo, me sinto uma vaca prestes à ir para o abate. Só espero que o rei possa me perdoar pela minha pequena mentirinha. E pela próxima que virá a seguir...