Os olhos de Kenta se tornaram pidonchos, enormes e úmidos como os de um filhotinho de cachorro, encarando Haruki. O cantor desviou o olhar discretamente, notando mais uma vez a kitchenette atulhada e as condições difíceis que o artista vivia.
"Okay Kenta. Estou convencido de que ao menos serei desenhado por um artista talentoso. Ou não aceitaria ter minha imagem em um otome game. Vou dar a permissão para usar minha imagem." Haruki olhou para Kenta que não escondeu o seu contentamento. "E sim, o cachê é seu."
Haruki estava revelando seu encantamento e respeito pelo trabalho do velho colega de turma.
Na verdade, isso só estava acontecendo porque Haruki tinha aproveitado o feriado para voltar para seu país e ido para sua cidade natal. Ele encontrou o antigo colega de escola, Iwata Kenta, no aeroporto.
Eles acabaram conversando sobre suas atuais ocupações. E dias depois, Kenta telefonou para o cantor praticamente implorando para desenhá-lo.
Não seria um sacrifício para Haruki e isso ajudaria um artista iniciante em dificuldade, então, por que não?
Haruki continuou folheando as cartas artes conceituais para passar o tempo enquanto o ilustrador o desenhava em uma nova pose.
"Haruki, poderia tirar a camisa?" Kenta pediu com voz sumida.
Haruki riu, e tirou a roupa. Até mesmo ficou só de cueca para Kenta poder continuar os esboços.
Haruki não sentia nenhum desconforto.
Em parte porque em sua adolescência, ele praticava esportes coletivos. Ele estava acostumado a que outros homens olhassem para seu corpo com inveja. O cantor era ciente de sua beleza exótica, corpo de atleta e rosto jovial.
Aos 15 anos Haruki tinha sido descoberto por uma agência de talentos. E hoje, aos 20 anos, ele estava prestes a debutar com o grupo Caption-Z.
"Vamos ao próximo," Haruki anunciou em voz alta ao voltar a ler as cartas com os arquétipos.
"ARTISTA - RIKU, MAEDA," ele viu o desenho de outro personagem de lábios sensuais e olhar rebelde. Os cabelos eram os mais longos dentre os personagens, chegando pouco acima dos ombros e coloridos.
Haruki ficou com a sensação de que já o tinha visto antes. 'Claro, deve ser algum ator,' o cantor concluiu sem perguntar quem ele era. Além dos cabelos coloridos ele usava roupas muito excêntricas, com lenços, babados e plissados.
"Objetivo: criar uma obra-prima memorável," Haruki virou-se para o ilustrador,
"Hahaha, ele é sua 'obra-prima', não achou Kenta?"
"Ele é bonito, mas não é o mais bonito desse grupo," Kenta falou, soando desconfortável.
Foi a vez de Haruki presenteá-lo com um coraçãozinho. O desenhista ficou vermelho,
"Hey, não é você também! Que convencido!" Kenta lhe deu uma bronca, sem conseguir olhar em seus olhos.
Haruki fingiu que não tinha ouvido e continuou lendo,
"Bla bla e bla bla… Trabalho: Compositor, ator, cantor, novelista, bailarino! Nossa, ele faz tudo! Só faltou dizer que ele é figurinista e maquiador!"
Kenta parou o traço e começou a rir, "Francamente, as garotas não têm noção. Continue lendo, está divertido ouvir suas opiniões," ele pediu.
"CUTE BOY - YUUTO, KAWANAMI," ele conferiu o desenho. O mais jovem deles tinha cabelos e olhos claros e um sorriso grande, o que contribuía para sua aparência inocente. Também era o menor deles.
"Roupas: uniforme escolar luxuoso, com acessórios fofos e engraçadinhos para individualizar seu look. Características: alegre, meigo, brincalhão, indeciso e imaturo." Virando-se para Kenta, falou com propriedade,
"Este aqui vai ter uma legião de fãs, as garotas adoram os inocentes."
O ilustrador pediu que Haruki fizesse várias expressões faciais, que Kenta registrou com seu celular, para usar como 'material de referência' mais tarde. O cantor não saberia dizer se isso era necessário ou não depois de tantos esboços.
Haruki voltou a ler a última ficha de personagem que faltava, porque estava divertido,
"Bom, vamos ao último antes do melhor, que serei eu, hahaha. NERD - SATORU, HONDA."
Este personagem parecia o mais alto e esguio, e tinha uma expressão arrogante. O cabelo dele era um pouco longo, mas dentre todos, era o que menos lhe chamou a atenção.
"Objetivo: criar um andróide com sentimentos. Trabalho: Estudioso, PhD em engenharia de computação. Isso é ridículo, o cara tem PhD tão jovem? Claro que é uma espécie de gênio precoce e antissocial. Ao menos é assim na vida real."
Dessa vez Kenta apenas balançou a cabeça, parecendo discordar, mas Haruki não deu importância, "Roupas: cardigan marrom, óculos pretos de aros grossos, camisa xadrez, calça social. Características: racional, calmo, dedicado, pedante… Argh, você perdeu tempo fazendo os desenhos do nerd. As garotas não os procuram para ter romances, eles são chatos. Nem sendo tão alto. Ele é o perdedor."
"Na vida real os nerds ganham muito dinheiro e ficam com as garotas, enquanto os desenhistas apenas desenham hentai e otome para viver. É isso que eu sei," Kenta terminou seus registros.
"Terminei. Como eu expliquei antes, apenas preciso da sua autorização por escrito. Não haverá problemas legais com sua agência, não é?"
"Não, eu ainda tenho direito sobre minha imagem. Não se preocupe. Me deixe ver o contrato de novo. Se é somente aquilo que você me enviou por celular, não há problema algum."
Enquanto Haruki se vestia, Kenta pegou uma caixa luxuosa que destoava do ambiente pobre da kitnet. Ele tirou de dentro dela, uma folha era o contrato. Assim, uma simples folha, um contrato de apenas uma folha onde Haruki leu que ele, Takeda Haruki, autorizava o uso de sua imagem e voz no jogo digital "Cobiça e Tentação."
Na caixa tinha um objeto que chamou a atenção do cantor, um smartwatch de última geração. Neste havia um aplicativo para gravar a voz do modelo do personagem, mas o cantor poderia fazer isso depois sozinho.
No contrato estava citado especificamente a data e horário para Haruki fazer o acesso para gravar sua voz.
Kenta entregou outra folha. Nesta, Takeda Haruki abria mão do pagamento em favor de Kenta Iwata, o ilustrador.
O smartwatch, disse Kenta, apenas servia para que pudessem fazer isso remotamente, sem a necessidade de interromper a agenda de Haruki conforme exigia o contrato.
O software seria ativado pelo escaneamento da retina do cantor, permitindo que no futuro, apenas ele entrasse no sistema para gravações futuras, nas atualizações do jogo, se este fosse um sucesso.
Haruki não conhecia a empresa do jogo. Mas conforme seu amigo tinha explicado era uma pequena empresa que sequer podia pagar muito para a equipe de desenhistas. Como a maioria das empresas de jogos neste ramo dos otome games.
O velho colega de escola entregou uma caneta exótica para Haruki assinar. Seu estômago contraiu ao segurar a caneta.
Ele hesitou em assinar. Olhou duas vezes para o objeto em sua mão,
"Marfim? Isso não é proibido hoje em dia?"
"Ah, eu não sei. Eles enviaram e pediram para que fosse assinado com ela. Deve ser alguma superstição," Kenta respondeu sem dar importância ao fato. Apenas parecia preocupado do cantor voltar atrás por um detalhe tão bobo.
Um mau pressentimento assolou Haruki. Mas ele havia dado sua palavra. O ilustrador havia se dedicado a fazer seus desenhos. Estes, em sua opinião, foram os mais minuciosos nos detalhes. Não havia mesmo uma justificativa para não assinar.
Ignorando seus instintos Haruki assinou, sentindo um gosto estranho na boca. A sensação era tão forte que o cantor se despediu sem dar tempo de Kenta agradecer adequadamente com um jantar.
De volta ao hotel Haruki certificou que tudo estava pronto para a sair de madrugada. 'É amanhã o meu dia D,' ele pensou sentindo o frio no estômago de ansiedade.
O Caption-Z iria fazer sua primeira aparição em um programa de TV, na Coreia, e Haruki precisava viajar no primeiro voo. Ele, que estava agitado pela expectativa do dia seguinte, voltou a pensar nos desenhos dos personagens de Cobiça e Tentação, o "otome game'' para garotas.
'Meu Deus, que título ridículo. Como as garotas perdem tempo brincando com bonecos virtuais quando poderiam estar facilmente 'brincando' com garotos. Elas não sabem que nós não somos tão difíceis assim!'
Com este pensamento zombeteiro, o cantor resolveu ligar logo o smartwatch, ignorando as orientações.
O smartwatch vibrou em seu pulso e escaneou suas retinas, cegando Haruki.
O cantor sentiu sua cabeça girar e seu corpo cair no vazio.