Em retrospecto, acho que posso ter decepcionado algumas pessoas quando disse que isso seria uma história de terror. Quem estava esperando um banho de sangue e lágrimas nesse texto vai acabar encontrando uma quantidade bem moderada das duas coisas. Mas quem estiver disposto a se pôr no meu lugar, vai perceber o quanto esses acontecimentos podem acabar com as noites de sono de alguém (ou os dias de sono, no meu caso). Afinal, o que pode ser mais aterrorizante do que descobrir que o monstro que te aterrorizava na infância não foi apenas uma invenção da sua cabeça?
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Davi havia praticamente se adonado da velha cocheira, trabalhando em algum projeto sinistro. Gabriela foi para o quarto, se recuperar do plantão. Eu tive a tarde toda para pôr a conversa em dia com meu pai, embora eu tenha usado a maior parte do tempo para ficar interrogando ele sobre o Pepé e gritando para as paredes.
— De quê que ia adiantar eu te dizer que o Pepé era real, guria?!
— Sei lá, vai ver eu não ia ficar pensando que eu era uma criança desequilibrada inventando monstros que queriam comer a minha alma!
— O Pepé nunca quis comer a sua alma. É um bichinho indefeso…
— Mas eu lembro de como ele me aterrorizava.
— Não, minha filha. Você que via ele como algo aterrorizante.
— Ah, pronto! Então agora eu via coisas, mesmo…
Quando eu era bem pequena, meu pai costumava guardar um par de botas de pescador em cima do armário no meu quarto. Eu costumava acordar ele chorando de madrugada, dizendo que as botas estavam dançando pra mim. Depois de um tempo, meu pai se livrou das botas e me disse que havia mandado o "Pepé" para viver nas taquareiras do outro lado do sítio. Sempre que eu fazia birra para alguma coisa, ele me ameaçava dizendo que iria chamar o Pepé.
O tempo passou e eu esqueci desse medo, sem realmente precisar lidar com ele. Agora, eu e Bibi seguíamos em direção às taquareiras para conversar com o Pepé. Caminhando através da grama alta, eu concentrava a minha atenção nas instruções que minha irmã passava, tentando ignorar o suor gelado que escorria pela minha nuca e a pressão na bexiga.
— É um jogo de vontade, — disse, tentando usar um tom tranquilizador — você só precisa definir bem as suas intenções, escolher um caminho e seguir nele até o fim.
Haviam dois caminhos, ela me explicou. Você podia se ancorar em rituais, assim como Davi havia feito com a chave, ou se arriscar no "freestyle". Sem um método no qual se embasar, seria como andar em uma floresta escura à procura de alguma coisa, usando a própria intenção como uma lanterna. Já o caminho do ritual era mais parecido com uma estrada pavimentada, mas que precisava ser estudada e compreendida. Infelizmente, eu não tinha esse tempo.
O próprio momento era uma representação física do meu teste. Bibi ia na frente, abrindo caminho com as mãos entre as taquaras, e eu seguia logo atrás, segurando o celular com a lanterna ligada. Não era um mato muito grande, visto de fora. Mas com o medo bagunçando a minha percepção, a caminhada parecia se esticar no tempo.
A luz da minha lanterna nos mostrou um espaço aberto logo à frente. Gabriela passou primeiro e saiu para o lado, me dando um vislumbre do que me esperava no centro. De repente, o celular na minha mão tinha o peso de um tijolo. O tremor do meu corpo, em contato com os troncos finos, espalhou um som de chocalho pela taquareira. A voz de Gabriela chegava até mim, mas eu não conseguia entender o que ela dizia, e muito menos seguir em frente.
Bem no centro daquela clareira havia um par de botas de borracha escura, com os bicos virados em minha direção.
Encontrar um objeto importante do seu passado é uma sensação esquisita. Algo que você pensava que tinha esquecido de repente se materializa na sua frente, e as memórias começam a fluir como se estivessem sempre ali, à espera daquele reencontro. Eu teria refletido mais sobre essa questão se não estivesse completamente travada de medo.
O maldito do Pepé. Ali na frente, me esperando. Gabriela gritava coisas encorajadoras, mas o terror havia me paralizado. Sempre que eu encontrava forças para avançar, as botas faziam algum movimento, e eu empacava de novo. Apesar de tudo, segui em frente.
No momento em que eu adentrei a clareira, o movimento das botas havia aumentado até se transformar em algo frenético. Pepé dançava à luz do luar, como costumava fazer em meu quarto de criança, quando ninguém estava olhando. Devo ter saltado um metro quando a mão de Gabi roçou na minha.
— Respira fundo. Eles gostam de provocar.
Eu estava à beira das lágrimas, mas fiz que sim com a cabeça. Eu sabia que ela tinha razão. Respirei fundo. Gabriela esperou que eu estivesse pronta, então se afastou um pouco e começou a dar as instruções.
— Primeiro, você precisa ter uma ideia clara do que você quer.
— Tá, isso eu já sei.
— Beleza! Agora, você só precisa comunicar isso pra ele. Tem que ter autoridade. Não precisa ter medo de improvisar.
Improvisar não é bem o meu forte, nunca foi. Olhei para o Pepé dançarino e tentei imaginar o que Tati faria no meu lugar.
— Eu, Lívia Antunes, dona do Café Goet, ordeno que pare!
Tentei fazer uma voz bem grossa e ameaçadora. Lembrei da forma como Davi havia proferido as palavras mágicas durante o ritual para selar o portão. Percebi o movimento das botas vacilar um pouco, antes de voltar com ainda mais intensidade.
— Dizer o nome dele em voz alta pode ajudar — disse Gabi.
Repeti a frase, agora nomeando Pepé. Dessa vez, as botas pararam de dançar. Funcionou!
— E agora? — perguntei.
Gabriela deu de ombros.
— Você conseguiu. Missão cumprida. Já podemos voltar.
Gabi começou a andar para fora da clareira, mas parou quando percebeu que eu não a estava seguindo. Me lançou um olhar questionador.
— É só isso? A gente deixa ele aqui? — perguntei.
Não sabia dizer ao certo o que me incomodava na situação. Aquele demônio nas botas havia sido o terror da minha infância. Por que eu estava me importando agora?
— Ah, deixa pra lá — Gabi disse — Ele tá aqui há mó tempão, não incomoda ninguém.
Era justamente o que me incomodava. Desde que meu pai se livrou das botas, o Pepé estava preso nesse lugar. Eu havia passado um bom tempo com demônios para saber o quanto eles apreciavam um pouco de companhia. E café. E jazz.
— Pepé, eu ordeno que se revele.
O medo não conseguiu me impedir de dizer as palavras. Eu nem havia pensado nelas, simplesmente saíram. Alguma coisa dentro de mim precisava ajudar aquela criatura, algum tipo de força que agia por conta própria. E eu teria ficado muito feliz se essa força não tivesse me abandonado no momento em que Pepé começou a se revelar.
O cano de uma das botas começou a se alargar, assumindo uma forma impossível. Um par de chifres começou a se erguer, seguido pelo que parecia ser uma cabeça de touro. Ainda subindo, a cabeça vinha seguida por um pescoço longo, se esticando cada vez mais, dando giros sobre si mesmo e pairando em pleno ar. Horrorizada, eu percebi que não se tratava de um pescoço, mas sim o corpo escamoso de uma enorme serpente.
A cabeça de touro deu um bote em minha direção, parando a centímetros do meu rosto.
— Uma última dança antes de partir, Lívia? — sua boca não se abria ao falar, a voz parecia sair das narinas, que expeliam fumaça misturada ao som.
Então eu senti alguma coisa se rompendo dentro da minha cabeça, no momento em que reconheci que aquela não era a primeira vez que eu ouvia aquela voz. Há muitos, muitos anos atrás, ela sussurrava para mim de cima do roupeiro.
Um grito de desespero se entalou na minha garganta, mas nunca teve a oportunidade de sair. Porque naquele momento, aquela coisa que me impelia a ajudar a criatura assumiu o controle com força total. Eu fui empurrada para o fundo da minha própria mente. Eu estava entocada, confortável, assistindo o que acontecia do lado de fora através das janelas dos meus olhos.
Os olhos da criatura assumiram um brilho azulado, quando chamas começaram a queimar em suas órbitas. Assistindo a tudo no "banco do carona", percebi que meus próprios olhos também queimavam. Não era uma sensação ruim. Me lembrava a vez que eu tinha alcançado Galantyr, quando lutamos juntos para fechar a porta. Mas no lugar de toda a raiva do Acorrentador, havia outro tipo de sentimento.
Uma enorme solidão se abateu sobre mim. Anos e anos daquele sentimento acumulado. Eu fui afundando naquilo, me deixando afundar, até atingir um espaço sólido na mente do demônio. Uma ilha de memórias. Através dos olhos da criatura, eu me arrastava pelo deserto infinito, me aquecendo sob a luz de um sol imenso. Subi me enroscando pelos galhos da árvore dourada, admirando o horizonte completamente desprovido de vida. Perdida, mas em casa.
— Você pode voltar agora, Cromalum.
E então eu estava de volta no controle. Olhei ao meu redor e só encontrei Gabi, parada na saída da clareira, com o queixo quase no chão. Não havia mais Cromalum. As botas também tinham desaparecido.
— O que aconteceu? — Gabi perguntou, mas poderia muito bem ter sido eu a fazer a pergunta.
Fizemos o caminho de volta sem conseguir chegar a uma conclusão. Eu descobri que ela não havia visto nada. Para ela, eu apenas fiquei parada por um momento em frente às botas, falando sozinha enquanto alguma coisa esquisita acontecia com os meus olhos.
— Então, você nunca viu um deles?
— Ver? — Gabi quase riu — Não exatamente. É um tipo diferente de percepção. Eu conseguia sentir a presença, mas… Ver, do jeito que você viu?
Ela balançou a cabeça e seguiu andando. Parecia tranquila, porém, pensei ter visto algo na sua expressão que me dizia o contrário. Antes de entrarmos, pedi que ela se sentasse comigo na varanda. Em questão de semanas já estaria muito frio pra curtir a brisa noturna, e eu queria aproveitar a oportunidade. Já fazia muito tempo desde a última vez.
Sentamos em silêncio, apreciando a companhia uma da outra. Eu queria agradecer, mas tinha medo de como poderia soar. Não sabia se aquilo causava tanta dor para ela quanto para mim, e a verdade é que eu preferia não saber.
A Gabi não nasceu nessa casa, nem nessa família. Os pais dela a trouxeram um dia, implorando por um exorcismo. Na mesma hora, meu pai sabia que não era o caso. Não havia demônio nenhum ali. Só uma criança em um episódio de psicose, causado pelas condições em que ela vivia.
Seu Clécio sabia que seria impossível explicar isso aos pais da menina. A ideia de problemas causados por uma neuro-divergência estavam distantes demais da realidade deles. Continuariam tentando "expulsar o demônio" da garota. Assim, meu pai se ofereceu para ficar com ela. Os pais ficaram quase felizes em se livrar dela.
Isso foi antes de nossos pais se divorciarem, o que eu chamo de "período de teste de fé do Seu Clécio". Eu escolhi me afastar de tudo aquilo na primeira oportunidade, indo morar na capital e fechando os olhos para os "assuntos da fé". Gabi nunca teve essa escolha.
Só agora, sentada ao lado da minha nova professora de exorcismo, eu deixei que a dúvida represada durante tantos anos viesse à tona. Como será que ela se sentia sobre isso?
Pois é. Essa pode não ser a história que você estava procurando, mas é a história que eu tenho para contar. Nunca cheguei a fazer a pergunta. Precisava estar pronta em dois dias, e ainda tinha muito o que aprender. Haviam muitas pessoas para ajudar.
Eu pensei que ela entenderia.