Estamos nos aproximando da reta final, e meu arrependimento cresce a cada palavra escrita que nos leva a prosseguir. Desde o começo, meu objetivo ao compartilhar essa história era te tornar ciente do perigo que todos nós corremos ao nos envolver com essas entidades. Um perigo desencadeado por eventos que eu talvez pudesse ter evitado ao manter meu relato em segredo.
Cada ponto final desse texto encerra uma pergunta: será que não seria melhor parar agora? Eu queria que você pudesse me ajudar a encontrar a resposta.
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— Acorda — disse Davi, chacoalhando de leve meu ombro.
Meus olhos demoraram para se adaptar à escuridão. Não havia nada para ver através da janela do carro além dos contornos sombrios de algumas árvores na beira da estrada, que logo ficavam para trás.
Minha mente começou a trabalhar. Havíamos deixado o sítio do meu pai de manhã bem cedo. Deveria ser uma viagem de 4 horas, no máximo. Perguntei a Davi o que nos havia obrigado a parar.
— Nós tocamos direto. Fizeram alguma coisa para nos atrasar. Mas não te preocupa, — apontou na direção das luzes da cidade lá na frente — já estamos chegando.
Começamos a discutir o plano. Elifas sabia que estávamos voltando. Davi disse que o objetivo do pai seria assegurar a "posse" de Galantyr e acabar com a gente. Provavelmente estaria em sua mansão, rodeado de seguranças.
Nossas opções não pareciam boas, e estavam prestes a ficar ainda piores. Um áudio de Tati chegou no meu telefone:
"Ô Lívia, retorna aí quando puder. Acho que o bicho vai pegar, aqui. Será que eu chamo a polícia?"
A voz de Tatiana estava bastante calma, o que era surpreendente devido aos estrondos que podiam ser ouvidos no fundo do áudio. Um forte impacto, e depois o som de coisas caindo. Duas vezes em poucos segundos.
Havia um áudio anterior, que devia ter chegado enquanto eu ainda estava dormindo:
"Oi, Lívia! Ainda tá no sítio? Olha só, o Pólux veio trocar uma ideia meio esquisita. Ele disse que tem algo vindo pra cá. Sabe do que ele pode estar falando?"
— Taquepariu! Davi, tu ouviu?
Ele tinha ouvido. Avisou o motorista de que iria alterar o trajeto, que àquela altura respondeu somente com um grunhido, sem tirar os olhos da estrada. Parecia hipnotizado, ou meio bêbado. Esperava que fosse a primeira opção.
— Nós vamos ter que improvisar. Tenta segurar o Galantyr, enquanto eu me resolvo com o meu pai.
— E se tiver mais pessoas lá, tipo aqueles seguranças do seu pai?
— Acredito que não será o caso.
Davi pediu para o motorista nos deixar há meia quadra de distância do Café. Enquanto eu criava coragem para sair do carro, ele tocou meu ombro.
— Pode não ser a melhor hora para isso, mas quero pedir desculpas pela noite passada. Às vezes eu penso em uma forma de me expressar, mas as coisas não saem como eu imaginei.
Ele falava de forma pausada, como se estivesse tentando montar um quebra-cabeças com os próprios pensamentos.
— Eu só queria te dizer que eu não tinha intenção nenhuma de te machucar. Na verdade, eu acho que não conseguiria nem se quisesse. Desculpa, eu tô sendo esquisito de novo. Mas você está me ajudando, e não tem obrigação nenhuma de fazer isso. E eu queria que você soubesse que ninguém nunca fez algo assim por mim, e eu me sinto mal por ter retribuído a ajuda de uma amiga dessa forma.
Sorri pra ele.
— Tá tudo bem. Já jantei com caras que fizeram coisas mais esquisitas. Quando a gente acabar com isso, talvez eu possa te dar umas dicas de como não ser um péssimo amigo!
Suas bochechas começaram a corar. Ele se virou no banco e abriu a porta do carro para sair.
— Me espera ali na frente… Só vou pegar a bagagem no porta-malas.
Desci para a calçada. O Café estava há algumas dezenas de metros à frente, mas era possível ouvir o ruído do impacto. O mesmo som dos áudios de Tati ecoava pela rua.
O Uber foi embora. Davi se aproximou.
— Ué, cadê o seu projeto de marcenaria?
— Pedi pra ele deixar na minha casa.
Ele sorriu, e havia algo de estranho naquele sorriso. Na hora eu não soube dizer o quê. Seguimos lado a lado pela calçada.
O portão do Café estava arrebentado. O banquinho de madeira, assim como boa parte das plantas, havia sido completamente destruído. Um Galantyr em sua forma natural golpeava sem parar a porta da frente. Ao lado dele, estava Elifas.
Passamos pelo portão. Assim que nos aproximamos, percebi que Galantyr não estava golpeando a porta, de fato. Havia alguma espécie de barreira invisível entre o demônio e o prédio. Era esse choque de energias que produzia o ruído esquisito.
Galantyr parou de bater assim que o pai de Davi percebeu a nossa chegada.
— Bem na hora! — Elifas fez um gesto em nossa direção — Galantyr, traga o dono da casa aqui e faça ela abrir a porta.
Eu passei três dias me dedicando a aprender tudo o que podia para aquele momento. Estava tão concentrada em fazer aquilo do jeito certo, que não parei para me perguntar se seria capaz de fazer rápido o suficiente.
Os cascos de Galantyr afundaram as tábuas da entrada do Café quando ele pegou impulso. Em um piscar de olhos ele já estava na metade do caminho, e eu ainda não tinha nem começado a me concentrar. Mais um impulso e ele me alcançaria.
Algo se colocou entre nós. Davi ergueu os braços ao lado do corpo, barrando o avanço do demônio. Galantyr não hesitou.
Um punho fechado desceu sobre Davi mirando na cabeça. Suas mãos foram esmagadas quando ele as colocou na frente do golpe. O primeiro soco o fez cair de joelhos, o segundo o deixou deitado de costas no chão. No terceiro, meus gritos não foram capazes de abafar o som dos ossos quebrando. No quarto, minha fúria se projetou para fora de mim assim como as costelas se projetaram para fora do corpo dele, abrindo caminho pela pele com um jorro de sangue. No quinto, minha visão estava tão vermelha quanto o chão abaixo dos punhos de Galantyr.
Eu estava bem ciente do desespero que crescia no meu peito, mas fiz de tudo para impedir que ele me dominasse. Erguendo a medalha de São Bento, disparei minha força de vontade na direção do Acorrentador como se arremessasse uma lança. Deixei minha dor impulsionar o comando, perfurando as defesas mentais do demônio.
— Galantyr, o Acorrentador, eu ordeno que pare!
O comando atingiu a mente de Galantyr, rompendo algo lá dentro. Minha mente foi inundada por uma onda de angústia que abafou qualquer pensamento. Eu não conseguia me mexer, nem falar, nem pensar direito. A dor dentro de Galantyr era tão imensa que me fazia querer desistir de tudo, mas nem isso eu era capaz de fazer.
Não sei dizer por quanto tempo fiquei perdida dentro dos olhos do demônio. Acho que foi aquele desespero e a vontade de correr até Davi e ver como ele estava que me tirou parcialmente do transe. Ainda não era capaz de me mexer ou desviar o olhar, mas a ideia de confirmar minha suspeita terrível em relação ao estado dele me provocou medo, e aquela parte de mim que sentia medo foi capaz de se libertar.
Foi então que eu senti a presença de mais uma mente. Havia outro fio conectado aos pensamentos de Galantyr, e eu podia sentir que ele também estava lutando contra aquela angústia avassaladora que emergia do demônio.
Concentrando toda a minha vontade, comecei a seguir a linha que me levou à mente de Elifas. Seus pensamentos eram como uma sombra em um dia nublado, quase desaparecendo em plena vista. Não havia remorso pelo que acabara de acontecer com seu filho, apenas um ímpeto selvagem para se livrar daquelas amarras mentais. Um desejo de vingança contra todos ao seu redor. Medo de perder o poder que estava quase ao seu alcance.
Medo. Medo era a chave para escapar daquela armadilha. Parei de tentar me acalmar. Senti o controle da minha própria mente escapando pelos meus dedos, e não fiz nada para impedir. E conforme a sensação esmagadora que fluía da mente de Galantyr ia tomando conta de todo o meu ser, o medo crescia.
Aquela parte de mim que sucumbia ao medo foi crescendo e se tornando mais forte. E então meus olhos já não estavam mais presos aos de Galantyr, e todo meu corpo começou a tremer como se estivesse muito frio, e frases sem sentido começaram a sair pela minha boca.
E quando o medo começou a me levar em direção ao portão, para fugir e me esconder e salvar a minha vida, eu tomei o controle de volta. Conduzi meu animal interior para as profundezas da minha mente e agradeci pela ajuda. Deixei que passasse através de mim e mostrasse todas as coisas terríveis das quais ele queria me proteger, e em momento algum lutei contra ele.
O medo passou. Eu fiquei. Eu, Lívia Antunes, era a dona daquela casa, e estava no controle. Haveria um tempo para lidar com o medo, depois que o perigo já tivesse passado.
Não precisava me preocupar com Elifas agora. Ele ainda estava perdido dentro da mente de Galantyr. Antes mesmo de pensar com ele, corri em direção à Davi.
Me abaixei ao lado do que havia restado do garoto. Me obriguei a olhar e ter certeza. Não precisava ser médico para saber que ele não sairia dessa. Ainda assim, algo chamou minha atenção. Não sabia dizer o quê, mas havia algo de errado com Davi. Claro, ele havia sido esmagado por um demônio, mas não era isso. Enquanto eu tentava entender o que havia de tão estranho, peguei um movimento com o canto do olho. Lá no fundo, ao lado de Elifas.
Um rosto apareceu sobre o ombro do velho. Uma mão ágil sacou uma lâmina, enquanto a outra buscou apoio sobre sua cabeça, puxando os cabelos com os dedos e expondo o pescoço. O golpe desferido em Elifas foi rápido e preciso.
O corpo de Davi jazia aos meus pés, reduzido a uma poça de sangue, entranhas e ossos partidos. No entanto, lá estava ele, do outro lado do pátio, sorrindo triunfante enquanto abria a garganta do pai.