A tela do celular acendeu-se, fria e espectral, no meio da escuridão do apartamento. Uma notificação solitária, cruel em sua brevidade, piscava no centro: "Compra Recusada." Daniel fitou as palavras, o estômago revirando. Mas a caixa estava ali, real, pousada sobre a mesa como uma promessa silenciosa. Quem pagou por isso? E por quê?
Horas antes, o despertador tocou às 6h30, um som estridente que Daniel mal ouvia. A apatia era um cobertor pesado, abafando os sentidos. O sol da manhã mal penetrava as cortinas fechadas, a luz pálida incapaz de dissipar a penumbra do quarto – assim como a esperança parecia incapaz de penetrar sua alma.
Ele arrastou-se para a cozinha. O café, sempre amargo, tremia em suas mãos enquanto seus olhos, sem foco, vagavam pelo computador aberto. Os e-mails, frios e impessoais, continuavam chegando: "Lamentamos informar que sua posição foi descontinuada…" e "Processo seletivo encerrado…". O mundo lá fora girava, implacável, mas o de Daniel havia parado no dia da demissão. E no dia em que Charlotte se fora.
Entre as contas acumuladas e a geladeira quase vazia, um bilhete rabiscado – um fantasma do passado – ainda ecoava: "Você precisa recomeçar." Palavras de Charlotte? Ou um autoengano desesperado? Já não importava mais.
No carro, a direção automática assumiu o controle. No semáforo vermelho, as mãos de Daniel suaram. "Ela estava certa?", pensou, a voz de Charlotte mais acusatória que um grito. "Você se perdeu, Daniel." O sinal verde, a inércia do movimento, mas ele sentia como se estivesse afundando em areia movediça. Buzinas, pessoas apressadas, o ruído indistinto de uma vida que não era mais a sua. "Você esqueceu de novo, né?", a consciência sussurrava, implacável. "Desculpe," murmurou para o vazio, "Eu ando meio... distraído."
Sem rumo, sem destino, Daniel dirigiu até o bar da esquina, o refúgio dos náufragos. No caminho, um pensamento vago, "Hoje o céu está azul, quase como os olhos da mamãe…". Olhou para o banco vazio, um sorriso triste para o espectro da lembrança.
"Ela virou estrela," lembrou, o nó na garganta apertando. "Talvez a mais brilhante." A constatação, um soco no estômago, forçando-o a engolir o choro.
De volta ao apartamento, o silêncio da noite pesava, amplificado pela ausência de Charlotte, de cor, de vida. Abriu o laptop, o cursor piscando, acusador.
Um e-mail, sempre o mesmo: "Lamentamos informar…". Um calafrio na espinha, a luz da tela repelindo-o. Fechou o notebook, em vão.
Na cozinha, a geladeira zumbia, um lamento fúnebre. Abriu-a: mofo, ranço, o espetáculo patético do abandono.
Pizza ressecada, vinho pela metade, o bolo de Charlotte – uma lápide esverdeada. Ao tocar a garrafa, o aroma do bolo fresco, uma punhalada na memória, a náusea subindo. Ela nunca mais faria bolos. Sentença implacável.
Cambaleou até o quarto, o laptop aberto, a tela azulada, fantasmagórica. Digitou "emprego+TI+urgente". Resultados, sempre os mesmos: portas fechadas. Experiência, Python, viagens… requisitos inatingíveis para um homem de 34 anos à deriva, colecionador de esquecimentos, preso à margem da vida.
Então, o pop-up, hipnótico, irresistível:
"fayconnection" Uma Nova Realidade para Quem Não Encaixa na Antiga."
Óculos prateados flutuando sobre um rio de luzes azuis. Promessa vã? Ou a corda de salvação? Recomeço. Propósito. Daniel riu sem humor, a garganta seca. O que eu sempre quis ser? A resposta, um eco distante, perdido no labirinto da memória.
Realidade virtual. Desconhecida. Ultrapassada para um "veterano" do 2D? Refúgio infantil para almas perdidas? Talvez. Mas… tentador.
Preço em vermelho: R$ 6.000. Abismo financeiro. Impossível. Loucura… necessária?.
Abaixo, a miragem: "TESTE GRATUITO (7 dias)."
{Coração acelerado, espasmo hesitante na apatia. Sete dias. Para fugir de si. Dessa ruína ambulante}.
Dados preenchidos, dedos trêmulos no cartão. Clara me mataria. A imagem dela, o olhar frio, esvaecendo na urgência do alívio. Sete dias para respirar, reencontrar-se, ressuscitar? Talvez…
Botão "CONFIRMAR" verde, a notificação: "Seu pedido foi aprovado. "fayconnection" chegará amanhã às 9h." Destino selado.
Laptop desligado, mãos gélidas, tremor leve. Janela, lua cheia, olho silencioso no céu noturno. O que eu estou fazendo?, sussurrou para o vazio.
No quarto, o urso de pelúcia, lembrança desbotada de Charlotte. Tecido macio, cheiro de infância, shampoo suave, lembranças esvanecidas. Abraçou o urso, consolo frágil, propósito incerto.
— Só sete dias — sussurrou para o urso, promessa vã. — Depois… volto a ser alguém.
Mentira sussurrada à própria alma. Sete dias: fuga, adiamento. E depois? Mais perdido, mais vazio? Talvez. Mas agora, FayConnection: miragem azul no deserto da existência.
Macarrão instantâneo, omelete – banquete de um improdutivo dia sem propósito. "O tempo voa parado," – eco vazio da tarde perdida em busca de empregos, contas a pagar.
Toque estridente na campainha, 21h. Sem aviso, sem interfone. Quem seria? Arrepio na espinha.
Passos lentos até a porta, mão hesitante na maçaneta. Lua cheia, impassível, observando o desconhecido.
Porta aberta, caixa de papelão, simples, sem adornos. "fayconnection" em letras garrafais, selo enigmático: olho estilizado, engrenagens intrincadas. Sem rastreio, sem remetente. Surpresa, preocupação, excitação estranha. Nó na garganta. Corredor silencioso, pesado. Olhar final, ninguém por perto. Pacote pego, textura áspera do papelão. Peso leve, presença opressiva.
Porta fechada, trancada. Caixa na mesa, luz amarelada da luminária. Símbolo encarando-o, olho e engrenagens pulsando na mente.
Celular na mão, aplicativo do banco aberto. Tela percorrida, olhos congelados.
Compra Recusada.
O quê? Piscando, informação absorvida. Transação sumiu do histórico. Nunca existiu.
— Mas que porra é essa...?
Estômago revirando. Caixa ali, real, sólida, troféu macabro do incompreensível. Mãos suando.
Se não pagou, quem pagou? Por quê? – Intrigado.
Lábios secos, peito descompassado. Ironia amarga. Meses tentando comprar escape, refúgio. Agora, de graça?
Encarou a caixa. Logotipo, olho e engrenagens, fitando-o de volta. Arrepio na nuca.
— Estranho, mas já que está aqui… vamos ver essa merda – Para si.
Silêncio denso. Olhar ao redor, sombra, resposta nenhuma. Nó no estômago, medo e adrenalina. Porta entreaberta para o maior… incrível ou terrível?
Punhos cerrados. Respirou fundo.
Puxou a caixa. Sem hesitar. Coração acelerado, respiração contida. Caixa leve, objeto simples, promessa imensa.
Olhar ao redor, mundo reagindo? Apartamento silencioso, luz fraca, noite expectante.
Abriu a caixa. Fita desfeita, tampa deslizou. Óculos FayConnection, tecido aveludado azul-escuro. Bilhete dobrado ao lado.
Bilhete pego, desdobrado, arrepio leve. Caligrafia cursiva, elegante:
"Bem-vindo a FayTheria, Daniel. Eu sou Fay, e este é apenas o começo."
— Jogo divertido, interativo, pensaram em tudo – Ansioso.
Celular estridente, toque inesperado. "Número desconhecido". Cobrança? Frustração.
Ligação ignorada, retorna. Desliga, irritado. 30 segundos, toca de novo. "Número desconhecido".
— Mas que inferno! – Irritado.
Atendeu, hesitante. "Alô?"
Silêncio. Voz feminina, suave, clara, tom indefinível.
"Olá, Daniel. Eu sou Fay."
Testa franzida, cérebro racionalizando. Chatbot? Mensagem pré-gravada? Imersão?
"Quem... como liga pra mim?" Voz firme, inquietação velada.
Risada leve, divertida.
"Disse que era só o começo. Não só jogo, Daniel. Adoro brincar. Vamos brincar!". — Risada sonora, fina, divertida, arrepio na espinha, alerta involuntário de perigo!
Conexão cristalina, voz… peito apertando. Real demais.
"IA avançada?" Telefone apertado. "Ou falando sozinho?"
"Não está sozinho." Voz baixa, quase gentil. "Respostas? Confie em mim."
Engoliu em seco, mão suada no celular.
"Te vejo em FayTheria, tchauzinho!." — Risada infantil, sinistra, desliga.