O som ritmado dos saltos de Marina ecoava pelo longo corredor da editora Andrade & Martins. Cada passo era meticulosamente calculado, refletindo sua personalidade: firme, controlada e absolutamente inabalável. O relógio de pulso marcava 8h45, e, como sempre, ela chegava quinze minutos antes da primeira reunião. A rotina era um ritual. Marina gostava de pensar que o sucesso era uma questão de precisão.
Ao entrar em sua sala, tudo estava como deveria estar: a mesa organizada, a pilha de manuscritos à esquerda, e a xícara de café fumegante já preparada por Lucas, o assistente que parecia conhecer suas manias melhor do que ela mesma. A visão panorâmica da cidade pela enorme janela de vidro era um lembrete constante de onde ela estava — no topo.
Marina colocou a bolsa de couro preta em cima da cadeira ao lado e abriu o notebook. A tela acendeu, revelando a agenda do dia. Lançamentos, revisões e, no topo da lista, "Gabriel Torres – Manuscrito: O Último Capítulo". Marina revirou os olhos antes de se recostar na cadeira. Não era a primeira vez que um autor jovem e cheio de si ganhava destaque sem ter provado seu real valor.
— O que foi? — perguntou Lucas, entrando na sala com dois arquivos em mãos.
— Esse Gabriel Torres. Ele mal entrou no mercado e já acha que pode ditar as regras — respondeu Marina, pegando o arquivo que ele lhe entregava. — É só mais um autor estrelinha.
Lucas soltou um riso leve.
— Talvez ele te surpreenda. Dizem que o manuscrito dele é bom. Além disso, a crítica literária está elogiando bastante a autenticidade do texto.
— Autenticidade? Prefiro técnica — retrucou Marina, com um tom ácido. — Autenticidade não vende se não estiver bem lapidada.
Ela folheou o resumo do manuscrito com os dedos finos e perfeitamente manicurados. A história parecia interessante, admitiu para si mesma, mas não deixou transparecer. Ninguém precisava saber que algo havia chamado sua atenção. Não ainda.
Lucas inclinou-se contra a porta, observando-a com aquele ar de quem sabia mais do que dizia.
— Ele vem hoje, não é?
— Infelizmente, sim. Às 10 horas. Mais uma daquelas reuniões onde o autor acha que pode discutir tudo.
— Ele pode ser diferente — Lucas insistiu.
— Ou pode ser exatamente igual aos outros. — Marina fechou o arquivo e levantou-se. — E, para o bem dele, espero que saiba o que está fazendo.
Ela se aproximou da janela, olhando o movimento frenético da cidade. Marina não tinha tempo para autores que tratavam o trabalho como um jogo. Mas, por alguma razão, a simples menção de Gabriel Torres fazia seu estômago revirar — uma sensação que ela se recusava a reconhecer.
Naquele momento, Marina não sabia, mas o homem que estava prestes a cruzar as portas de sua editora traria não apenas um manuscrito, mas o descontrole que ela tanto evitava.
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A sala estava cheia. O burburinho de conversas baixas e risos contidos preenchia o ambiente enquanto os funcionários da editora se preparavam para a reunião do dia. O aroma de café fresco pairava no ar, misturado ao cheiro levemente metálico dos papéis e da tinta das impressões. Marina não se importava com os detalhes do cenário — sua atenção estava voltada para a porta, para o homem que acabara de entrar.
Gabriel Torres.
Ele não era o tipo de homem que passava despercebido. Alto, com uma postura relaxada, ele carregava consigo uma aura de facilidade, algo que contrapunha a rigidez e a seriedade de Marina. Seus cabelos castanhos, ligeiramente desarrumados, e o olhar tranquilo contrastavam com a impaciência de Marina, que aguardava a entrega do manuscrito. Ele parecia mais à vontade do que ela, o que de alguma forma a incomodava.
Gabriel sorriu ao entrar na sala, um sorriso aberto e direto, sem vestígios de hesitação. Ele se aproximou da mesa de Marina com um arquivo em mãos, os olhos curiosos e atentos. A sensação que ela teve ao vê-lo pela primeira vez foi de uma desconcertante impressão — algo que ela não queria sentir, mas que já estava ali, inegável.
— Boa tarde, Marina — disse Gabriel, a voz suave e cheia de uma confiança quase provocante.
Ela levantou o olhar do computador e manteve a expressão impassível.
— Gabriel Torres, finalmente. O prazer é meu — respondeu, tentando ocultar o leve desconforto em sua voz.
Ele não se intimidou com sua frieza. Colocou o manuscrito sobre a mesa de vidro de Marina, seus dedos tocando levemente o arquivo antes de se afastar. Era um gesto sutil, mas com um significado claro: ele estava ali, presente, esperando algo mais.
Marina pegou o manuscrito com as pontas dos dedos, observando a capa do arquivo. O título do livro estava impresso em letras elegantes: O Último Capítulo. Ela sentiu uma pontada de curiosidade, algo que ela raramente sentia por algo tão ordinário quanto um manuscrito. Mas, como sempre, se controlou. Não podia deixar que sua curiosidade se transformasse em entusiasmo.
— Eu já li o seu resumo, Gabriel. — Ela o encarou com frieza, sem perder o controle. — Agora, me diga, o que há de tão especial nesse livro?
Gabriel sorriu novamente, mas era um sorriso mais íntimo, como se ele entendesse algo que ela ainda não tinha percebido.
— O que há de especial? Bem... acho que isso depende do que você está procurando, Marina. — Ele se recostou na cadeira ao lado da mesa, mantendo os olhos fixos nela. — Eu não escrevo para agradar, escrevo para expor a verdade. A verdade das pessoas, das relações, dos sentimentos. Não há personagens idealizados aqui, apenas seres humanos, com seus erros e seus desejos.
Marina franziu a testa, não conseguindo esconder a incredulidade que invadiu seu olhar.
— Não me venha com esses clichês de escritor atormentado. Eu só quero saber se o seu texto é bom, Gabriel. O que ele tem a oferecer de novo?
Ela sabia que suas palavras poderiam soar ríspidas, mas não estava disposta a perder tempo com rodeios. Ela queria entender de uma vez por todas o que fazia Gabriel Torres ser o autor da vez, e por que ele estava na sua sala, apresentando um manuscrito como se fosse a última grande descoberta literária.
Gabriel, no entanto, não se abalou com a resposta dura de Marina. Ele parecia quase divertido com a situação. Talvez porque soubesse que ele não estava ali para ser julgado, mas para se apresentar de uma maneira que não se limitava àquelas palavras, ao julgamento de Marina. Ele sabia que a verdadeira prova de seu trabalho viria com o tempo — mas o que ele não esperava era que esse tempo começaria a ser contado em minutos, ali mesmo, naquela sala.
— Acredito que você verá por si mesma — respondeu Gabriel, de maneira tranquila. — Eu escrevo sobre o que nos move, Marina. A dor, o prazer, a obsessão... Eu não espero que todos compreendam de imediato. Mas, talvez, você consiga.
Marina não respondeu de imediato. Ela se permitiu, por um momento, absorver suas palavras e o tom em que foram ditas. Algo no que Gabriel havia dito parecia mexer com ela de uma maneira que ela não queria admitir. Seu olhar passou rapidamente pelo manuscrito, tentando não ceder à curiosidade. Mas, antes que pudesse afastar esse sentimento, uma parte dela já estava imersa na ideia de descobrir o que mais havia naquele texto.
— Você realmente acha que pode me impressionar com palavras, Gabriel? — Ela perguntou, com um sorriso cínico.
— Não — ele respondeu, sem hesitar. — Eu não estou aqui para impressionar. Estou aqui para mostrar a verdade. E, quem sabe, depois, você decida o que fazer com ela.
Marina respirou fundo, tentando reconquistar o controle sobre si mesma. Ela não queria dar a Gabriel o poder de desconcertá-la, mas o fato era que ele havia tocado em algo profundo dentro dela. Ele não estava ali para buscar aprovação, não estava ali para ser uma estrela em ascensão. Ele estava ali porque acreditava no que tinha escrito. E isso, de alguma forma, a fez questionar o próprio caminho que ela tinha trilhado na vida, sempre tão segura, tão certa de tudo.
O que Gabriel estava oferecendo não era apenas um manuscrito. Era algo mais visceral, mais instigante. Algo que poderia, de fato, desafiá-la de maneiras que ela não estava preparada para enfrentar.