Dia 1
Sujando-se no chão da floresta, um jovem jazia caído, desorientado e sem rumo. 'Onde estou?' pensou, enquanto seus lábios, ressecados e frágeis, não se moviam para formar qualquer palavra.
Ele não sabia como havia ido parar naquele lugar, como se todas as suas memórias tivessem sido arrancadas. Cada tentativa de lembrar resultava em um vazio profundo, deixando-o ainda mais perdido. Sua amnésia era tão intensa que ele não conseguia se lembrar nem do seu próprio nome.
Uma ansiedade crescente, acompanhada por uma forte dor de cabeça, dominava seu corpo. Ele estava completamente desorientado, esquecido pelo mundo, perdido em uma floresta vazia e silenciosa. Nem mesmo os pássaros ousavam cantar ao seu redor.
"O que é isso?" pensou ele, ao sentir lágrimas misturadas com suor e sangue escorrendo pelo rosto. O desespero era tão grande que ele não conseguia conter as próprias emoções, tentando gritar em vão. Sua voz, presa na garganta, só aumentava a dor a cada tentativa, até que começou a cuspir sangue.
Ele olhava para cima, perplexo, e se perguntava: "É noite? Por que está tão escuro? Será que meus olhos estão me enganando?" Não era noite, mas as árvores ao seu redor tinham arbustos tão densos que bloqueavam cerca de 80% da luz do sol. Além disso, naquele dia específico, o ambiente estava particularmente escuro.
"O que é isso? Sangue? É de algum animal? Não, é o meu!" A cada nova constatação, ele se sentia mais tenso e amedrontado. Seu espírito e seu corpo estavam prestes a desabar.
Perdido e sem saber o que fazer, ele ouviu um som que parecia vozes vindo da sua esquerda. Instintivamente, correu desesperado em direção ao som, o mais rápido que podia, mas sentia seu corpo enfraquecer a cada passo, diminuindo a velocidade. Após apenas trinta segundos de corrida, avistou uma estrada e viu duas pessoas a cerca de dez metros de distância, quando seu corpo desabou. Seus músculos estavam doloridos, suas pálpebras tão pesadas que não conseguia abrir os olhos, e até seus sentidos pareciam tê-lo abandonado. Sua fraqueza era tão grande que ele desmaiou.
Vendo sua queda, uma das pessoas na estrada correu em direção a ele para oferecer ajuda. No entanto, seu companheiro de viagem tentou impedi-la, segurando seu braço firmemente.
— Me solte, Salrah. Eu preciso ver quem é aquele garoto.
— Você não sabe se é alguma armadilha.
— Eu duvido. E, se for, você está aqui para me proteger.
— Você é sempre tão imprudente, Elara — disse ele soltando seu braço.
Quando se aproximou do jovem caído, Elara logo percebeu os profundos ferimentos e o sangue jorrando de seu corpo. A cena era grotesca: ele tinha cortes por todo o corpo e uma perfuração no peito. Com tais ferimentos, os dois se perguntavam como aquele garoto ainda estava vivo.
Havia manchas de sangue seco em seu corpo, indicando ferimentos mais antigos, enquanto ele continuava a jorrar sangue. O fluxo era tão intenso que manchou toda a pele do rosto e tingiu seus cabelos brancos de vermelho. Até mesmo seus dentes estavam sujos de sangue e poeira.
— Isso é incrivelmente assustador — disse Elara.
— Teria que haver uma grande habilidade de manipulação de Zar para manter os órgãos intactos depois de tantos ataques.
— Então ele é forte?
— Não. Eu não sinto nenhuma aura vindo dele... É como se ele não tivesse Zar em seu corpo.
Os dois estavam intrigados com o jovem e seus ferimentos. Essa curiosidade os levou a estancar os próprios ferimentos ali mesmo e a carregá-lo até o vilarejo mais próximo.
— Eu não quero ter que carregá-lo — disse Salrah.
— Eu vou dar um jeito. Vou usar o rixal.
Rixal era uma habilidade simples usada por Elara que lhe permitia levitar qualquer objeto que tocasse, incluindo a si mesma. Ela manipulava o seu zar envolvendo todo o objeto e diminuindo sua massa e fazendo-o levitar. Enquanto estivesse em contato com o objeto, ela poderia controlá-lo e determinar a altura à qual ele poderia ser levantado, sem esforço algum.
Com a ajuda dessa habilidade, os dois levaram o jovem até uma taverna e o colocaram em uma cama para se recuperar, sem fazer esforço.
— Elara, eu não acho que estamos fazendo a coisa certa. Devíamos ter entregado ele às autoridades do vilarejo. E se ele for algum criminoso?
— Você acha que ele seria um criminoso com essa idade?
— Parece que você não se lembra da nossa infância.
— Sim, eu me lembro. Mas não consigo acreditar que esse garoto seja um criminoso. Chame isso de intuição.
— Então você não se importará de me deixar usar meu nirix?
— Tire suas próprias conclusões.
Salrah colocou as mãos sobre o corpo desacordado do garoto e se concentrou. Sua habilidade, nirix, permitia-lhe sentir intenções e sentimentos, funcionando como um detector de mentiras. Ele poderia facilmente discernir se alguém carregava intenções assassinas em seu coração. Para isso, bastava tocá-lo. A habilidade era imperceptível, tornando impossível saber quando ele a estava utilizando.
— Não senti nenhuma maldade no coração dele — afirmou Salrah
— Isso é o suficiente para te convencer?
— Acho que sim. Mas por quanto tempo você planeja cuidar dele? Isso vai nos atrasar muito.
— Pelo menos até que ele esteja consciente e consiga se mover sozinho.
— Acho que seria prudente procurarmos um dixandor para curá-lo.
— Então eu farei isso. Você é sempre tão desconfiado.
— Você fala como se fosse um defeito.
Enquanto Salrah monitorava o jovem desacordado, Elara saiu pela vila a procura de um dixandor, um curandeiro.
— Espero que ela volte logo — disse consigo mesmo, Salrah.
O trio estava em uma pequena vila próxima à capital de Naxara, na província de Zixara. Vale ressaltar que Naxara é conhecida como a "capital intelectual". É lá que estão localizadas as principais academias, bibliotecas e centros de estudo. É onde os sábios e estudiosos de Zallarn se reúnem para desenvolver o conhecimento e a cultura.
Enquanto Elara continuava a procurar um dixandor, Salrah ficava cada vez mais preocupado com o passar do tempo. Sua ansiedade não se voltava para a segurança de sua parceira, mas para a possibilidade de chegarem a Naxara a tempo.
Em todos os locais por onde Elara passava, ouvia pessoas murmurando palavras inaudíveis. Como estrangeira, ela era olhada com desconfiança e as pessoas se recusavam a dar-lhe qualquer orientação. Sentia-se frustrada e irritada, mas sabia que não podia desistir se quisesse salvar aquele garoto.
— Você procura um dixandor?
Elara ouviu uma voz vindo de um beco escuro enquanto andava. A voz, fraca e aveludada, não parecia refletir perigo. No entanto, o beco escuro, onde nada era visível, deixava Elara um tanto preocupada.
— Você sabe onde tem um? Preciso urgente.
— Siga-me pelo beco.
Sem muitas opções, ela entrou no beco escuro. Embora não conseguisse ver o emissor da voz, ainda sentia sua presença a guiando pelo beco estreito. "Salrah nunca entraria nesse beco, haha", pensava ela enquanto sentia o suor escorrer pelo pescoço.
A cada passo, Elara se aprofundava mais na escuridão daquele beco. Sua coragem era inspiradora, mas ainda assim, não conseguia abafar a ansiedade e a expectativa do que a aguardava no fim do caminho.
— Não sinta medo — disse a voz.
— Eu vou te levar ao dixandor.
— Ande rápido.
Elara seguia a voz, mas não conseguia ver um corpo. Talvez fosse a escuridão ou seus olhos lhe pregando peças, mas a única coisa que ela enxergava à sua frente eram dois olhos totalmente brancos, sem pupilas, a guiando.
— Enfim chegamos — afirmou a voz.
Quando finalmente Elara viu a luz do dia, não encontrou mais aqueles olhos brancos e sem vida à sua frente; viu apenas uma pequena casinha com uma placa na frente onde se lia "Dixandor de Horn". 'O que é Horn?' pensou, pois não sabia que esse era o nome da vila.
— Acho que devo entrar.
Sem hesitar, ela passou pela porta e tocou a campainha. Ao entrar, percebeu aqueles mesmos olhos brancos flutuando acima do balcão, o que a deixou um tanto assustada.
— Não tenha medo, jovem. Eu sou a dixandor.
Como aqueles olhos poderiam estar falando? E como eles poderiam ser o dixandor? Várias dúvidas ecoavam em sua mente, mas ela as encarava corajosamente.
— Preciso que venha comigo.
— Então precisarei me materializar. Aguarde um pouco.
Ao terminar essas palavras, uma aura branca ao redor dos olhos flutuantes iluminou a sala, tomando a forma de um corpo humano. Aos poucos, aquela aura de pura energia começou a se solidificar e a ganhar cores, até que um corpo feminino se formou.
— Este é meu corpo "humano". Não se assuste, há muitas coisas neste mundo que você ainda não conhece.
— Como devo te chamar?
— Me chame de Lixara. Agora, leve-me até seu amigo.
— Como sabe que é um homem? — questionou, surpresa.
— Não há nada que meus olhos não possam ver dentro de Horn.
Alguns minutos depois, Elara e Lixara, a dixandor, chegaram à porta do quarto onde Salrah e o jovem estavam.
— Sou eu — disse Elara. — Pode abrir, Salrah.
— Você conseguiu um dixandor? — questionou Salrah, do outro lado da porta.
— Sim. Abra a porta.
— Mas primeiro, só você.
Elara concordou e pediu que Lixara esperasse do lado de fora por alguns instantes enquanto ela conversava com seu companheiro dentro do quarto. Ela sabia bem do que se tratava: a desconfiança exacerbada de Salrah. Ele não conseguia confiar em ninguém que não conhecesse ou em quem não tivesse usado seu nirix. O desafio de Elara naquele momento seria convencê-lo.
— Você mesmo disse que devíamos trazer um dixandor — apontou Elara.
— Sim, mas como podemos confiar nele?
— Ela, na verdade, parece ser uma pessoa confiável.
Claro que uma senhora de 60 anos, com cabelos brancos aveludados, uma corcunda e uma bengala na mão, não parecia oferecer perigo, mas Salrah sabia que nem tudo é o que parece.
— Faz o seguinte, ela vai entrar e você usa o seu nirix — propôs Elara.
— Não posso desperdiçar zar assim. Ainda teremos um longo dia pela frente.
— Você entende que eu não vou desistir de ajudar esse garoto? — Ele concordou com a cabeça. — Então, o melhor jeito de ajudá-lo logo será com a dixandor. Pense que, assim, sairemos desta vila estranha mais rápido.
E assim, Salrah foi persuadido por Elara a aceitar a ajuda da dixandor. Elara conhecia Salrah melhor que qualquer outra pessoa no mundo e sabia que desafiar sua desconfiança não era fácil; era preferível aproveitar sua impaciência.
— Pode deixá-la entrar — autorizou Salrah.
Assim que ela entrou, foi diretamente até o corpo desacordado estendido na cama. Checou seu pulso e sinais vitais, observou suas feridas e concluiu:
— Ele está em estado crítico. Posso curá-lo, mas isso terá um custo.
— O que quer dizer? Você quer moedas? — questionou Elara.
— Quero três silans.
— O quê?! — exclamou Salrah. — Sabia que ela não era confiável.
Em Zallarn, existem três tipos de moedas: Zaril, Silan e Oran. Um Zaril é suficiente para comprar uma maçã barata em uma feira, sendo a moeda mais usada em todo o território por ser a mais acessível; um Silan equivale a cinquenta Zarils, geralmente encontrada nas mãos de comerciantes e aventureiros; já o Oran vale cinquenta Silans, ou seja, dois mil e quinhentos Zarils, sendo uma moeda exclusiva da burguesia e da realeza. Obter um Oran é considerado um sinal de ascensão social, e muitas pessoas no reino nunca viram ou tocaram um em toda a vida.
— Não poderia ser apenas dois silans? — pediu Elara.
— Não posso fazer por menos. Você estaria desvalorizando meu trabalho.
— Então, pode ir embora — ordenou Elara. — Não precisamos de você.
A maneira firme e decidida com que ela disse isso surpreendeu até mesmo seu companheiro, que não esperava tal atitude dela.
Observando melhor, Salrah percebeu que os olhos de Elara haviam mudado do seu azul tradicional ficaram escuros como trevas, então logo ele entendeu o que estava acontecendo. "Então resolveu dar as caras, Nyx" pensava ele enquanto observava o desenrolar da situação totalmente relaxado.
— Se não pagar, ele morrerá antes de chegarem a uma cidade — afirmou Lixara, pressionando Elara.
Lixara era conhecida na cidade como uma aproveitadora. Embora fosse uma dixandor, usava sua habilidade para extorquir viajantes desavisados. Por ser a única em um raio de 30 km, todos aceitavam suas condições e valores absurdos. Elara não era tola e logo percebeu isso.
— Quer saber, faça o que quiser. Se você quiser curá-lo, eu pagarei, mas apenas um silan. Se não quiser, deixe ele para morrer.
— Você deixaria seu colega morrer assim?!
A dixandor não sabia o que estava acontecendo. Como aquela jovem gentil e inocente poderia estar encurralando ela assim? Ao mesmo tempo, uma onda de medo começou a percorrer toda a sua espinha, ela sentia que algo poderia acontecer.
— Escuta aqui, sua velha, você pensa que eu não sei que se aproveita dos viajantes que passam por aqui? Não me tome por idiota! — disse Elara, com firmeza, olhando fundo nos olhos brancos e sem vida; mas naquele momento, aqueles olhos pareciam cheios de temor. — Você vai curá-lo por um silan ou de graça. Qual você escolhe?
— Eu curo! — exclamou Lixara, amedrontada.
— E você vai fazer isso em silêncio. Não quero mais ouvir sua voz irritante.
Pressionada e encurralada, Lixara não viu alternativa a não ser aceitar as condições. Concordou em curar o garoto e aceitou todas as exigências.
Usando algumas ervas que carregava em um vaso no bolso do casaco, Lixara preparou uma poção de cor verde. Concentrou suas mãos, fechou os olhos e apertou o vaso firmemente. Aos poucos, uma luz verde começou a brilhar ao redor do vaso, e a aura de Lixara escorria em direção ao recipiente.
Um dixandor é basicamente um curandeiro, mas não pode ser chamado assim. Curandeiros utilizam ervas e remédios para tratar doenças ou ferimentos, enquanto dixandors potencializam os efeitos das ervas com sua própria aura, mesmo que essas ervas não tenham propriedades curativas. Quando um ferimento é grave o suficiente para matar a pessoa rapidamente, apenas um dixandor pode ajudar, e há casos em que nem eles conseguem.
Dixandors não são comuns, sendo uma arte de cura transmitida de geração em geração. Eles são mais frequentes em vilarejos do que em grandes cidades. As grandes cidades desenvolveram seus curandeiros para suprir a necessidade de dixandors, criando os ziran's. Embora os ziran's não usem zar em seus remédios como os dixandors, eles ainda obtêm resultados superiores aos de qualquer curandeiro.
Após preparar o remédio, Lixara o colocou na boca do jovem e o forçou a engolir. Seu corpo ainda desacordado acatou facilmente as instruções da dixandor. Em questão de segundos, o corpo do jovem começou a brilhar com uma luz verde intensa, semelhante a uma esmeralda sob a luz do Sol. O corpo começou a levitar sozinho acima da cama e, logo, desabou, melhor dizendo, foi arremessado contra a cama, quebrando a cama e surpreendendo a todos. O efeito da cura foi drástico e inesperado, deixando Elara e Salrah preocupados.
O som da madeira se rompendo fez com que o dono da taverna, no andar de baixo, corresse rapidamente até o quarto para verificar o que estava acontecendo.
— Como esta cama se quebrou? — questionou o taverneiro.
— Não podemos responder a essa pergunta — afirmou Salrah.
— Eu não faço perguntas, desde que vocês paguem por ela, não posso ter prejuízo.
— E quanto custa?
— Dois silans.
— Abaixe esse preço. Não é como se a cama não pudesse ser consertada. Com apenas quarenta zarils poderia reformá-la — disse Salrah.
— Não posso abaixar esse preço.
— Você vai abaixar — disse Elara, se aproximando do taverneiro e olhando-o nos olhos. — Acabei de me livrar de uma aproveitadora; você não vai querer fazer o mesmo.
Aqueles olhos uma vez azuis como safiras, agora escuros e sem vida olhava no fundo da alma do taverneiro. Ele sentia como se uma parede de duas toneladas estivesse dentro de sua cabeça, ele não conseguia entender o que estava acontecendo; mas se viu obrigado a ceder.
Engolindo em seco, ele aceitou a proposta de um silan. Então, Elara tirou de sua bolsa dois silans, um para o taverneiro e outro para a dixandor. Além disso, pegou mais trinta zarils para pagar a estadia na taverna. Em seguida, exigiu que ambos se retirassem do quarto.
— Você sempre me surpreende, Nyx — disse Salrah. — Nunca sei quando você vai tomar o controle.
— Apenas quando Elara não tem pulso para lidar com a situação.
Simplificando, Nyx funcionava como uma segunda personalidade de Elara. Elas dividiam a mesma mente e o mesmo corpo, porém Elara assumia durante o dia e Nyx durante a noite, pois Nyx era mais firme e poderosa que Elara. Nyx também assumia o controle quando percebia ser necessário, mas sempre em comum acordo com as duas personalidades.
Zuran-Tharn era uma habilidade rara, considerada por muitos uma lenda, pois havia sido perdida há muito tempo. Conhecida como "O Peso do Medo", fazia com que a vítima sentisse um peso imperceptível dentro da cabeça, como se o cérebro estivesse sendo esmagado por dentro. O peso variava de acordo com o medo que a pessoa sentia no momento. Por isso, Nyx trazia à tona todos os medos do subconsciente da vítima, forçando a habilidade sem que ninguém pudesse perceber ou resistir.
— Você não deveria ter usado Zuran-Tharn — advertiu Salrah.
— Não seja dramático. Eu resolvi o problema que vocês dois não tiveram coragem de resolver.
— Você não pode se revelar assim, Nyx. Você é valiosa; se o inimigo souber de sua existência...
— Eu sei que Elara corre perigo com isso, mas já estou indo embora. Não seja um fracote, Salrah.
Com essas palavras, Nyx abandonou o controle, e os olhos voltaram ao azul natural enquanto Elara reassumia o comando do corpo. Embora fosse algo comum, já que as duas compartilhavam o corpo desde o nascimento, havia consequências quando essas transições ocorriam de forma repentina, podendo variar de náuseas até desmaios súbitos, o que poderia ser uma desvantagem em combate.
— Está bem, Elara? — preocupou-se Salrah.
— Apenas um pouco tonta. Quando ela assume assim sem aviso prévio, me deixa desorientada.
— Senta um pouco.
Enquanto tudo isso acontecia, o corpo do jovem permanecia jogado na cama quebrada, sem nenhuma expressão. Seus ferimentos estavam curados, mas ele ainda se encontrava em um sono profundo. "Talvez seja apenas cansaço", pensaram os dois aventureiros, mas decidiram esperar até que o jovem acordasse antes de partirem.
E assim, ficaram ali durante toda a manhã, esperando o despertar do jovem. Enquanto Elara aguardava pacientemente, Salrah se via cada vez mais impaciente com a espera. O objetivo deles era chegar a Naxara antes do anoitecer, e ainda tinham pelo menos 30 km a percorrer.
Algo muito importante os aguardava em Naxara: uma audiência com o reitor da principal universidade de Zallarn, Thalaris. O nome desta instituição dispensava apresentações. A universidade era tão grandiosa que somente os maiores intelectuais e mais habilidosos tinham o privilégio de se formarem lá. Para ser aceito, era necessário obter a aprovação unânime de um conselho composto por doze membros.
Em Thalaris, todos estudavam o controle do zar nos níveis mais elevados. Qualquer um que desejasse se tornar um vixar, um aventureiro, precisava se formar em Thalaris e receber sua carteira de vixar. Mas não apenas aventureiros se formavam em suas academias; ziran's e outras classes de manipuladores de zar também treinavam lá.
— Não podemos esperar mais, Elara. Precisamos partir. Deixe-o aí mesmo, dormindo.
— Mas, assim, o taverneiro o jogará na rua logo que sairmos.
— Não há mais nada que possamos fazer. Já o ajudamos mais do que devíamos. Precisamos ir.
Quase que instintivamente, pressentindo o perigo de ser abandonado, o jovem despertou subitamente, assustando os dois. Ele ainda parecia estar em transe, mesmo de pé; seu olhar era distante, como se não enxergasse os dois à sua frente.
Um despertar repentino os deixou intrigados. Afinal, há pouquíssimo tempo, aquele jovem estava praticamente morto. Sua mente ainda parecia distante, e ele não parecia ter sequer consciência de que estava acordado.
Então, Salrah sentiu uma forte hostilidade emanando do garoto e se preparou para um combate iminente, puxando a espada que estava em sua cintura. Nyx assumiu o controle do corpo de Elara e concentrou sua aura nas mãos, pronta para a batalha.
O jovem não atacava, mas a hostilidade e a sede de sangue que ele exalava mantinham os dois tensos e ansiosos pelo combate. A experiência dos dois em batalhas lhes ensinara a nunca atacar um oponente cuja habilidade ainda desconheciam, por isso permaneciam imóveis, preparados para o confronto iminente.
Após alguns instantes, o garoto começou a recobrar a consciência e percebeu os dois prontos para matá-lo. O susto foi tão grande que ele caiu para trás. Percebendo que a hostilidade havia desaparecido, Elara reassumiu o controle de seu corpo, e Salrah embainhou a espada antes de ir ajudar o jovem a se levantar.
— Garoto, qual o seu nome? — perguntou Salrah.
— Eu... Eu... — gaguejava o jovem, lutando para formar palavras, — não sei.
— Amnésia? Não me surpreende, considerando todos esses ferimentos.
— Devemos levá-lo conosco? — questionou Elara.
— Não. Ele já consegue se virar.
— Mas ele não sabe de nada, não nos trará perigo.
— Por que você quer adotar este cachorrinho?
— Porque esse garoto me intriga.
— Vamos deixar Nyx decidir. Ela costuma ser mais sensata que você em muitas situações — disse Salrah. — O que acha, Nyx?
Enquanto eles discutiam, o jovem se sentia cada vez mais perdido e confuso. Quem eram eles? Onde ele estava? Várias questões permeavam sua mente, deixando-o ainda mais desorientado.
— Concordo com ela — disse Nyx, assumindo o controle por alguns instantes, assustando o jovem. — Essa sede de sangue e hostilidade que senti dele não são de uma pessoa comum.
Nyx podia assumir o controle de partes específicas do corpo, como a boca para falar por Elara. Era perceptível quando Nyx estava no comando, pois sua voz se tornava mais forte e poderosa, em contraste com a de Elara, que era leve, suave e aveludada. Em momentos como esses, não haviam consequências.
— Tudo bem. Vocês duas venceram — concordou Salrah.
— Muito bem, garoto. Se você não se lembra do seu nome, eu vou te dar um — disse Elara, após reassumir o controle. — Seu nome será Xenlaris, que significa "sem memórias".
— Que nome horrível, Elara — disse Salrah.
— Não seja chato. Esse nome faz todo sentido. Não é mesmo, Xenlaris?
— Acho que sim — respondeu ele, ainda gaguejando.
— Então partiremos agora. Você será responsável por ele. Eu não vou sujar as minhas mãos — afirmou Salrah.
— Não se preocupe, Xenlaris, eu vou te proteger.
— Tá bom...
— Mas acho que vou te chamar de Xen. Como um apelidinho.
— Chega de enrolação, Elara — esbravejou Salrah.
E assim partiram os três rumo a Naxara, a capital intelectual. Xen, em busca de suas memórias, e Elara e Salrah, em busca de sua audiência com o reitor de Thalaris. Objetivos traçados, e todos prontos para a viagem.