Ah... um teto familiar.
Novamente, acordei me sentindo exausta mas confortável ao mesmo tempo. Novamente, o sol havia inundado o quarto com uma luz brilhante, e pela condição do meu estômago, já estava muito além da hora do café da manhã.
Tanto quanto eu sabia, também havia pulado o almoço.
"Haa... Estou me sentindo tão preguiçosa..."
Afundando meu corpo no colchão macio, virei minha cabeça para o espaço ao meu lado. Mas dessa vez, não fui recebida pela visão do peito exposto e abs esculpidos do Senhor Demônio como antes.
Que pena.
Em vez disso, o Senhor Demônio fez sua presença ser conhecida através de sua voz. "Está se sentindo bem?" ele estava em pé na entrada que levava ao banheiro, e tive que esticar o pescoço para poder apreciar seu rosto bonito.
Ele não estava mais em um roupão de noite, já vestido apropriadamente, embora mais casual do que o seu traje habitual.
Ainda assim... que pena.
"... com fome," foi o que eu disse depois de uma longa pausa. "Que horas são?"
"Um pouco depois do almoço," ele caminhou até a cama, mas em vez de se aproximar do colchão, parou em frente à mesa de cabeceira.
Foi então que percebi que havia uma caixa em cima da mesa. Natha tamborilou os dedos na caixa antes de me informar sobre sua identidade. "Peguei seus pertences."
Pertences. Não pude deixar de me enrijecer com isso.
Eu não tinha nenhum pertence.
Fiquei olhando fixamente para a caixa, os engrenagens em minha mente girando tão devagar na manhã — tarde. Ou talvez fosse porque eu estava com fome.
O Senhor Demônio, vendo minha reação vazia, gentilmente colocou a caixa, assim como ele mesmo, sobre o colchão. Ele afastou minha franja, e a mão fria parou ali por um tempo, provavelmente verificando minha temperatura.
"Você deveria comer algo," ele finalmente disse. "Vamos fazer uma refeição aqui mesmo."
Ele esfregou meu queixo por um pouco e então se levantou e saiu do quarto. Isso me deu a chance de abrir a caixa e examinar o conteúdo sem nenhum olhar observador. Assim que vi as coisas na caixa, imediatamente reconheci esse grito de sensação de dissociação.
Claro. Eram pertences de Valmeier.
Não é de se admirar que eu não pudesse registrar a palavra 'pertence' quando ouvi pela primeira vez. Porque nada disso 'me pertencia'. Eram coisas com as quais eu não tinha nenhum vínculo emocional.
Uma foto antiga do pequeno Valmeier e do padre que o acolheu. Um caderno repleto dos estudos de Valmeier sobre magia de atributo de luz e como utilizar a Lança do Julgamento. O contrato de dívida que eu preferiria queimar em cinzas. Cartas e cartões-postais das freiras e do padre velho — agora morto —, bem como alguns de sua antiga unidade de frente. Alguns bugigangas, provavelmente souvenirs dos soldados e algumas pessoas que ele salvou no passado.
Mas o que ocupava mais espaço era outra caixa. Era uma caixa de madeira simples, sem qualquer decoração, mas bem conservada. Havia apenas uma coisa guardada lá dentro; a identificação militar dos soldados mortos sob seu comando.
Olhei para aquelas plaquetas, esperando que talvez algum tipo de emoção fosse despertada dentro do meu coração. Alguma reação, do remanescente da suposta alma morta de Valmeier.
Mas não havia nada.
Eu conhecia a memória, podia lembrar cada rosto do dono das plaquetas e recitar as letras com a memória perfeita de Valmeier. Mas parecia cena de um filme, ou texto de um romance. Embora evocassem algum tipo de emoção, nada parecia pessoal.
Esta caixa, e as coisas dentro dela, apenas me lembravam que eu não era Valmeier. Que eu não tinha nada. Que eu não tinha ninguém. Que eu estava em um lugar completamente estranho, em um corpo estranho com um poder que eu realmente não entendia.
"Por que está fazendo uma cara tão difícil?"
Sem que eu percebesse, Natha já havia sentado na borda da cama, inclinando a cabeça para me olhar. Seus dedos alcançaram para esfregar a dobra entre minhas sobrancelhas, enquanto seus lábios se estendiam em um sorriso gentil.
Imagino que tipo de pensamento ele sentiu em mim desta vez.
"Quer que eu guarde isso?"
Uau. Tanto assim?
Sem palavras, fechei a caixa, e ele passou a mão sobre sua superfície. E assim como isso, o peso desapareceu do meu colo; o mesmo peso se dissipou do meu coração.
"... obrigada," levantei a cabeça, e pela primeira vez desde que acordei, olhei em seus olhos.
Os orbes prateados estavam calorosos hoje, como se o dono estivesse de bom humor. E os lábios finos se separaram para uma risada, antes de pousar uma sensação fria em minha bochecha que gradualmente aquecia.
"Se está grata, então faça algo por mim," ele afastou um cabelo solto da minha bochecha e penteou meu cabelo desgrenhado de cama.
Meus olhos se estreitaram enquanto eu observava o brilho travesso em seus olhos. "Você ainda me deve um golpe, meu Senhor," eu levantei um punho fechado na frente de seu rosto risonho, lembrando-o do nosso 'acordo' da noite passada.
Eu não me lembrava de nada depois da primeira onda de dor, mas ainda lembrava da parte antes disso.
Embora... fosse uma atmosfera bem errada para trazer à tona.
"Certo," ele me deu um sorriso profundo. "Quer fazer isso agora?"
"Não, vou guardar até estar em condições ótimas," dei de ombros e abaixei meu punho. "Mas o que é que você quer que eu faça?"
O sorriso em seu rosto se aprofundou, mas seus olhos exalavam algo afiado e sério. "Meu nome," ele disse em um tom gentil, mas firme.
Pisquei confusa. "Seu... nome?"
"Chame meu nome de agora em diante," ele se inclinou para mais perto, o suficiente para que pudéssemos ver o reflexo um do outro em nossos olhos. "Não 'meu Senhor' ou qualquer outro. Como eu disse para me chamar?"
Ah... agora que eu me lembrava, nunca o havia chamado pelo nome. "... Natha?"
"Mais uma vez."
O que era isso? Mas eu seria louca o suficiente para argumentar com um Senhor Demônio?
"Natha," eu repeti, olhando para os olhos prateados, tentando manter minha voz firme e não gaguejar como uma tola apesar do som forte de batidas dentro do meu peito.
Foi só depois disso, que a afiação dentro dos olhos prateados finalmente foi substituída por calor novamente, e os dedos que penteavam meu cabelo se transformaram em um carinho familiar.
"Bom," o sorriso doce e gentil que ele deu naquele momento parecia que iluminava o quarto mais do que a luz do sol podia. "Vamos sair para um encontro depois de você comer."
"... hein?"
* * *
Que tipo de bandeira eu tinha acionado para produzir este evento aleatório?
Com a mão presa pelo Senhor Demônio, segui seus passos, subindo as estreitas e sinuosas escadas até o topo da torre. Não — não o quarto acima do espaço residencial, mas o topo mesmo. Seria correto chamar de telhado? Terraço da torre?
De qualquer maneira, pensei que ele usaria novamente aquela magia de teletransporte dele, mas ele apenas pegou minha mão após eu terminar de comer e tomar banho, e me levou para as escadas ascendentes que eu nunca havia usado antes.
Quando eu estava me perguntando por que não nos teletransportamos como de costume, ele virou a cabeça com um sorriso e me disse antes que eu pudesse perguntar em voz alta. "Já que isso é um encontro, devemos aproveitar o momento, não é?"
Um encontro... um encontro... eu continuava me sentindo aquecida quando ouvia ele dizer isso, ainda mais do que quando ele disse 'noiva'. Talvez porque 'noiva' parecesse tão distante e irrealista, mas algo como um encontro...
Eu nunca tinha feito isso antes, e não pude evitar ficar animada por causa disso.
Ignorando o fato de termos ou não sentimentos românticos um pelo outro, fazer algo novo era sempre empolgante. E eu estava cheia de curiosidade sobre que tipo de 'encontro' o Senhor Demônio teria—
Uau...
A porta para o pico escalonante se abriu e a primeira coisa que senti foi uma abundância giratória de mana elemental. Eles me invadiram como uma brisa suave, e senti como se estivesse mergulhada em uma agradável fonte termal.
"Kueeekk!"
E então eu ouvi os gritos familiares que sempre me saudavam sempre que eu saía para a varanda.
Lá, no espaço aberto do pico da torre, havia uma tempestade gentil de arco-íris. Dezenas de pássaros de aparência etérea voavam em cores vibrantes variadas, cada um emanando diferentes magias elementais que, ao invés de se chocarem, misturavam-se harmoniosamente.
Lembrei-me de ler uma enciclopédia e ver algo chamado pássaro do paraíso lá. Aqueles pássaros, com plumagens coloridas vívidas e longas penas balançando elegantemente de suas caudas, fazem-me lembrar do pássaro do paraíso. E com essa visão, onde eles voavam em círculos ao redor do pico da torre, sob o céu azul brilhante, eu poderia também ter vislumbrado um paraíso.
"Nossa..." Não pude evitar de exclamar, contendo a respiração enquanto Natha me levava para o centro do telhado.
E parece que eles ouviram minha voz, pois viraram a cabeça em nossa direção no momento em que eu fiz um som. Alguns gritavam, e alguns deles mergulharam em direção ao telhado, pousando na borda do pico da torre.
Quando seus olhos brilhantes, que brilhavam como joias, olharam para mim, meu corpo reagiu com um sobressalto, e Natha parou de andar. Ele esfregou o polegar em minha mão e perguntou gentilmente. "Está com medo?"
"Não," Virei a cabeça para olhar ao redor. "É só... nunca fui cercada por animais antes..."
Agora que pensei sobre isso, não acho que já havia visitado um zoológico na minha vida. Não importa quão bela fosse a visão, ainda era desconcertante estar cercada por criaturas vivas menores em grandes quantidades.
"Não se preocupe," Natha segurou meu ombro e me empurrou para ficar no centro. "Eles não vão machucar o residente da torre."
Hã? Isso significaria que eles poderiam prejudicar forasteiros?
"Além disso, é bastante incorreto venerá-los como animais," Natha me informou, estendendo um de seus braços ao mesmo tempo. "Eles são mais próximos de 'familiar', se for para fazer distinção."
Um dos pássaros voou para os braços de Natha então, as penas de sua cauda balançando pelo ar como uma bonita fita verde. Quando pousou no braço do Senhor Demônio, as orbes verde-escuro olharam para mim atentamente, como se observando. O resto das suas plumas estavam em várias gradações de cor verde, como se enfatizassem o mana de atributo de madeira emanando de seu corpo.
"Familiar?" mesmo enquanto eu lançava uma pergunta ao Senhor Demônio, eu não conseguia desviar o olhar dos olhos cristalinos. "Seus familiares?"
"Não, não os meus," Natha moveu seus braços — junto com o pássaro — mais perto de mim. "Eles são o familiar da torre."
Pisquei meus olhos repetidamente — não porque o pássaro de repente moveu a cabeça em minha direção, mas por causa da revelação. "Torre... pode ter familiares?"
"Claro — tente tocá-lo, eles não mordem — toda torre proeminente tem familiares que a protegem de danos ou infiltrações. Você não acha que eu só estacionei dois guardas para este lugar, não é?"
Bom...
Devagar, tentei estender minha mão e toquei o pássaro abaixo de seu bico com a parte de trás do meu dedo. Ele inclinou sua cabeça, e eu passei a mão suavemente pelo seu peito, segurando a respiração inconscientemente enquanto fazia isso. Vibração suave corria pela minha pele com o mana emanando da plumagem.
O pássaro de repente moveu as asas para esfregar no meu braço e, num movimento rápido, pulou do braço do Senhor Demônio para o meu, fazendo-me quase recuar de surpresa. Mas Natha ficou atrás de mim e me segurou no lugar.
"Eles respondem ao mestre da torre," Natha passou a mão no meu outro braço e levantou minha mão — aquela com sua marca. "E agora, eles vão responder a você também,"
Assim como ele disse, os pássaros, que até então mantinham uma distância, se apressaram para o centro do pico da torre.
Sim. Para mim.
O bater de suas asas fez um som harmonioso de brisa, trazendo o aroma de fogo e água e terra e cada parte da natureza.
Acho que deveria ser uma visão bonita e majestosa... mas eu entrei em pânico.
"E-espere! Espera! Ahh — intervalo! Tempo! Tempo!" Eu recuei e me afundei no peito robusto do Senhor Demônio. Os pássaros pairavam sobre mim, ao meu lado, ao meu redor... batendo suas asas e preenchendo minha visão com uma explosão de cores vibrantes.
Mas em vez de fazer algo para acalmar aqueles pássaros, ele riu, segurando-me por trás para que eu nem pudesse fugir.
'Que tipo de encontro é esse?!
Quando os pássaros começaram a me cutucar com a cabeça, dei um tranco tão forte que minhas pernas cederam e, de maneira desajeitada, caí no chão. Mas eu não tinha espaço nem para me importar com isso, já que muitos dos pássaros pousaram no chão e se pressionaram contra mim, aninhando-se ao meu lado e tudo e... droga!
"Uhh! Na...Natha! Socorro socorro o que é isso — espera! Não empurre — Natha!" Olhei para cima e encarei seu rosto risonho. Foi só então que ele assobiou e os pássaros recuaram um pouco, embora ainda estivessem aglomerando o chão ao nosso redor.
"Essa é uma reação interessante," ele se agachou atrás de mim e riu. "Eu disse que eles não vão te machucar, então por que está com medo?"
"Eu...não é — eu não estava..." Eu gaguejei feito tola e decidi apenas fechar os lábios. Um afago gentil na minha mão trouxe minha atenção de volta aos pássaros. "Eu só... me surpreendi, tá?"
Vários olhos cintilantes me encaravam, cabeças e asas pressionando meu corpo. Mas desta vez foi mais gentil e meu pânico inicial diminuiu. Agora que eu não estava tão assustada — quero dizer, surpresa — minhas mãos se moveram por conta própria, fascinadas pelo brilho da mana e o brilho dos seus olhos, acariciando cuidadosamente as cabeças dos pássaros.
Eles se aninharam em minhas palmas em resposta, e meu coração se agitou com isso. Sem que eles batessem freneticamente suas asas como se quisessem me atacar, esses pássaros finalmente pareceram bonitos e fofos aos meus olhos.
Sem mencionar a vibração suave e o brilho do mana de atributo da natureza que emitiam. Eles me envolveram como um cobertor, e eu me senti confortável como se estivesse tomando banho sob o sol quente em um agradável dia de primavera.
Um dedo frio acariciou minha bochecha e uma voz doce e suave soou atrás de mim. "Você parece animada," ele esfregou minha bochecha, e eu virei meu pescoço para olhá-lo. Eu tinha meio que esquecido que ele estava sentado atrás de mim, ou que minhas costas praticamente tocavam seu peito. "Gosta deles?"
Ele estava sorrindo tão calorosamente e esse sentimento confortável me fez me sentir bem. Então eu lhe respondi honestamente, com um sorriso que senti do coração. "Sim,"
E então aquele coração meu começou a bater erraticamente, enquanto seus olhos prateados penetravam em mim. A mão que estava esfregando minha bochecha moveu-se para inclinar meu rosto para cima, até minha cabeça se apoiar em seu peito e minha visão foi preenchida com sua imagem. Sem dizer nada, um polegar frio esfregou meus lábios, e meu coração acelerado parecia ter parado de funcionar.
Não havia pássaros, não havia magia, nada neste mundo parecia registrar em minha mente, exceto o ondular de suas íris prateadas. Seu rosto, que pairava acima de mim com uma expressão que eu não conseguia decifrar, se inclinou.
"Me perdoe por isso," seu sussurro baixo veio primeiro e, então sua palma fria, cobrindo minha boca.
Mas mesmo através de sua palma, eu conseguia sentir o frio familiar de seus lábios.