O pequeno moedor de café roncou com o barulho das sementes sendo moídas. Era um som que, para mim, era tudo menos desagradável. Quero dizer, tratando-se de café, nunca poderia ser algo desvalorizado de qualquer forma.
O doce aroma que me lembrava terra, mas com uma doçura quase ácida, fez com que, de forma involuntária, minha boca salivasse de desejo. Aquele aroma das terras do sul de Xalia fez com que minha manhã fosse, no mínimo, agradável.
Estar ao lado desses manuscritos velhos e empoeirados me dava a sensação de estar me tornando um daqueles arqueólogos malucos, de barba grisalha e branca, e eu detestava isso. A porta à minha direita se abriu de forma acanhada e lenta, indicando que alguém estava prestes a entrar. Isso me fez tirar as pernas da mesa de ferro, longa, que ia da parede esquerda até o fim do quarto.
Temendo que fosse Calia, não me atreveria a deixá-la ainda mais irritada e zangada. Mal se passaram alguns segundos e minha hipótese foi confirmada, já que a doce mulher, pelo menos em aparência, entrou porta adentro.Ela estava com aquele olhar zangado e inconfundível de sempre.
Peguei um lápis amarelado da mesa e continuei a divagar com a preguiça e o desdém de antes."- Angrissa, como vai sua tarde, chefe?" Saudando-a com os velhos costumes da igreja da qual ela era... Se não me falha a memória, era do Lorde Louco.
Ela apenas se irritou ainda mais com a minha aparente preguiça."- Angrissa, vejo que está vagabundeando ainda, seu desgraçado." Um pequeno soco que ela deu na mesa de metal produziu um leve baque. Calia era o tipo de mulher de aparência dócil, mas com um espírito de problema e raiva, quase como um gato zangado.Eu entendia por que ela era assim.
Ser largada daquela forma acabava com o espírito de qualquer um."Acho que já deve ter terminado seu relatório diário, não é mesmo?"Lucius ficou um pouco desconcertado por ter sido chamado de incapaz por parte dela. Ele poderia muito bem ser chamado de preguiçoso, mas nunca de incapaz de fazer sua função.
Pegou os três papéis com as frequências mais notáveis do dia, além, é claro, de todo o cálculo do espectro que informava de qual conglomerado de estrelas e supernovas tais sinais vieram, e os colocou sobre a mesa. Calia apenas resmungou e os pegou prontamente."Satisfeita?"
Lucius pegou sua cartola longa e cinza, que estava na cadeira ao lado, e a colocou na cabeça, inclinando-se de forma confortável. Calia averiguou os sinais de forma rápida e despreocupada."E esse pico na onda 1478, registrado às 12:35?"Ele se virou para ela, ainda deitado em sua cadeira."Foi, aparentemente, na constelação Black NewGod!" A afirmação voou pelos ares em direção à mulher irritada à sua frente.
Apesar de ter menos de 1,70 de altura, o que não a ajudava no papel de parecer imponente e perigosa para Lucius, ele continuou de todo modo:"Aposto que deve ser apenas alguma morte de estrela, um quasar ou o surgimento de mais um buraco negro.
De toda forma, que diferença faz um sinal nem tão notável assim, tratando-se do meu querido espaço insondável e infinito..." Ele deu de ombros, levando-os para trás e resmungando levemente com os olhos debochados e preguiçosos.Um longo suspiro se seguiu de volta.
A mulher já estava cansada desse homem preguiçoso e descuidado."Tanto faz... Realmente você não tem jeito mesmo." Ela resmungou, amassando os papéis com a mão esquerda, com força notável, e saindo pela porta, mas não antes de se servir com uma xícara de café considerável.
Seus lábios se deitaram na xícara de cerâmica branca, com ornamentos de flores rústicas verdes em toda a superfície. Ela soltou um longo suspiro de deleite e pensou secretamente para si mesma: "Pelo menos ele sabe fazer um café delicioso." Saindo satisfeita do recinto, para alegria de Lucius.
Ele se reorganizou, deitado naquela dura cadeira de couro velho e nada confortável. Seus olhos se viraram como os de uma criança que estava acordada na madrugada sem permissão da mãe. Olhou para todos os lados, tendo a certeza de que estava livre das garras e unhas longas pintadas de vermelho desbotado dela, para sua própria alegria.
Ele reorganizou sua mente também e, com leve pesar, começou a pensar no que traria do mercado no caminho de volta para casa. A dúvida pareceu ficar cada vez mais excruciante, crescendo como o espinho disposto em uma rosa de jardim.
Talvez comprasse algumas costelas suínas e batatas, além, é claro, de temperos e um bom vinho proveniente de Yoster? Era uma boa dúvida, e essa última probabilidade era perfeita e tentadora demais para ele. Concluiu isso tudo com um sorriso envergonhado e depreciativo:
"Quem estou tentando enganar?" Tratando-se dele, a melhor hipótese era comprar alguns atuns congelados ou salmão enlatado e esquentar com o resto do jantar do dia anterior. Era perfeito, pois não o faria perder tempo.
Suas divagações tomaram todo o tempo restante de seu plantão e, com uma animosidade desconhecida, ele se levantou da cadeira, espreguiçando suas costas doloridas. O pequeno corredor ficou cada vez mais evidente, levando da sala de checagem e equipamentos de rádio até a área dos funcionários.
Não demorou muito até a sala, cheia de papéis e plantas verdes, aparecer.A sala era em formato redondo, com pequenos corredores saindo em cada lado, levando às salas onde cada um exerceria sua função.
Era um espaço calmo e tranquilo, embora o detalhe do "calmo" não fosse tão presente quanto em outra época.A cada porta dos corredores havia algumas plantas, e alguns quadros com anotações e checagem de pontos e metas mensais ficavam em sua circunferência. Um sofá circular sem fim rodava no centro.
Lucius saiu por seu corredor e viu, sem novidades, seu quadro, no qual ele escreveu seu horário de saída sem fazer questão. Os ponteiros esboçavam que eram 18:00 da tarde, o horário devido, pensou sóbrio.
Sem questionar, ele saiu pela sala circular rumo à porta de saída, sem emoção, mas é claro, não antes de cumprimentar todos e acariciar o gato Morder... Ele miou em calma, já que estava dormindo antes de ser acordado.
Seria e Filgo estavam ocupados com um montante de papéis, e por isso ele não ousou fazê-los perder tempo. Ambos sinalizaram que Calia já havia saído 40 minutos antes, talvez para um encontro secreto... Os dois fizeram pirraça.
A porta de saída rangeu com assobios metálicos, fazendo com que os últimos raios de sol iluminassem sua cabeça e corpo. Pelo horário, fez com que um leve calor percorresse o corpo dele. Ele seguiu com ânimo, na expectativa de chegar em casa e apenas deitar e dormir até por volta das 21 da grande noite.
Seu caminho foi o mais normal possível, passando pela árvore dupla no início do terreno da CHI. Ambas eram árvores antigas e que poderiam ceder a qualquer momento, tinham por volta de 300 anos e eram Oliveiras de Pardal.
Ele cumprimentou o antigo senhor Kiler Muller, que preparava sua bolinha de chá de ervas antigas. A água fervilhou, e seu vapor subia da caneca. Ele cumprimentou com o símbolo de graça do Deus Louco, com sua cartola preta.
Ele subiu a rua modesta rumo à sua primeira saída à esquerda, dando de cara com a mais larga e micro avenida de Santo Mets. Ele logo viu a pequena igreja alta, com seus sinos que criavam uma sonoridade musical aos ouvidos de todos que estavam nas redondezas.
Os dois sinos: um de cor de cobre amarelado no topo da torre da esquerda, no qual havia o símbolo de uma árvore com galhos caóticos. No seu centro, havia também o símbolo de um capuz negro antigo do Louco. Já o segundo, de cor avermelhada como sangue, na torre da direita, badalava igualmente. Seu símbolo era de um olho dourado com íris avantajadas e agressivas brancas, e sua espécie de íris era dourada como ouro.
Lucius já havia tido algumas aulas e também lido alguns livros, dos quais o seu acesso era permitido na Prefeitura de Castelmar, luxos que sua promoção lhe havia conquistado. Ele logo soube, no fundo de sua mente, que aquele símbolo não era tão famoso quanto o do Louco, mas era da Mãe do Sangue, a segunda religião mais abastada nesta cidade e também no Leste de Xiria. Ambas tinham uma correlação e, por isso, sempre andaram de braços juntos.
Os primeiros movimentos da Igreja do Louco foram justamente na cidade de Kalia. Alguns anos depois, bem ao norte dali, mas especificamente em Rotspur, nascia a Igreja da Mãe do Sangue, também chamada de Fé ao Vermelho.
Esse espaço de tempo pequeno, se tratando de religiões, fez com que, no começo, elas tivessem certas rixas e desavenças. Claro, isso tudo até descobrirem que, no fim de tudo, a igreja da Mãe do Sangue cultuava uma deusa que, por sua vez, cultuava o Louco, tratando-se da 5ª cadeira ou 5º servo do Deus Louco.
Esse mal-entendido foi por parte da falácia das mulheres e esposas dos senhores e líderes de Kalia, que estavam iniciando ideais de uma maior presença feminina no topo da sociedade. Elas não mais queriam seguir a presença de um deus masculino. Para elas, o Louco representava a ambição do homem, e, com isso, criaram uma igreja e a figura da Mãe do Sangue, que representava a figura feminina e seu poder latente.
Lucius sabia que, no final, igrejas, deuses e mitos eram, no fundo, proeminentes apenas da falácia dos cidadãos e que, se um grupo não estivesse satisfeito com a religião que seguiam, eles apenas criariam uma nova ou apenas seguiriam pelo caminho de usurpar e distorcer aspectos de sua antiga. Era o caso das igrejas do Louco e da Mãe do Sangue.
Com a ascensão da Santa Juda na igreja da Mãe do Sangue e do então arcebispo do Louco, Sr. Peters, as igrejas se juntaram em uma espécie de correlação e harmonia; os dois eram amantes.
O fato de saber tanto, historicamente, sobre as igrejas e os aspectos sociais de Castelmar era graças aos livros e às viagens de estudo que ele fizera em sua faculdade.
Hoje em dia, ele pensava: que perda de tempo foi isso tudo. "-Ao invés de ficar enxugado em livros, eu poderia muito bem ter feito como os outros e ter arranjado uma namorada."
Ele ressentiu e seguiu virando apenas três ruas à direita, na Ocean North. Não demorou muito até ele ver as pequenas tendas de cores diversas espalhadas pela longa calçada da Ocean North West.
Os diferentes cheiros de temperos — misturas de alecrim, pimenta, sal rosa — e dos temperos únicos que vinham da barraca mais à direita, vermelha, com tecidos antigos. Uma senhora corcunda, que tinha por volta dos 60 anos e longos cabelos brancos, conversava animadamente com a cliente grávida.
Ele seguiu reto, pois temperos eram o que não faltava em sua casa, já que seu irmão os trazia regularmente do estreito de Norengard.
Lucius passou por barracas de frituras, de animais silvestres, barracas de doces artesanais e até mesmo por uma barraca de limões alaranjados.
Eles eram tão grandes quanto um palmo e, com toda certeza, eram os maiores que ele já viu em toda sua vida. O vendedor era um homem de cabelos laranja, assim como os limões, e observava os clientes curiosos.
Ele respondia a algumas dúvidas de seus clientes de vez em quando. Lucius ouviu uma dessas conversas com um homem de cabelos castanhos."-Você tem certeza de que esses limões são doces? Todos que são tão grandes assim tendem a ter um gosto horrível.
"O homem tinha um deles em sua mão e os olhava com desconfiança. O vendedor sorriu. "-Não são quaisquer limões... são os lendários limões da Casa Bakster."
O homem ficou ainda mais desconfiado sobre isso tudo.
"-Está falando da Casa Bakster? A lendária família do 7º servo do Deus Louco, Irian Bakster?"
Todos que estavam por perto voltaram suas atenções para os dois homens. Alguns riram, e outros fixaram seus ouvidos nos dois.