Chereads / Redentores / Chapter 1 - Prólogo

Redentores

🇵🇹Caelis_909
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Synopsis

Chapter 1 - Prólogo

      Tento evitar revelar as minhas emoções ao observar a lenta derrota a desvencilhar-se à minha frente. Sinto-me tolo com a minha mente a viajar num mar de estratégias, sabendo que todas são inúteis e ineficazes. Ponho uma cara de falsa confiança com o objetivo de enganar a minha irmã, mas ela não se abala de forma alguma. Pouso a minha carta mais valiosa na mesa, entre nós, e espero pelo melhor.

      Ela sorri e coloca uma carta fraca, dando-me um momento de esperança antes das seguintes rondas. Quase que dá a impressão que se aproveitou deste cenário para se livrar da carta que nem planeava usar mais tarde. Procede por olhar para mim com uma cara de adorável inocência que me irrita.

      Penso no que posso fazer para evitar a sua vitória quando um som atrás de mim me faz desviar a minha atenção, embora não tire os olhos das cartas ou mude a minha posição de conforto no cadeirão de pele. O ranger da porta seguido de botas a encontrar o chão com firmeza é um sonido facilmente identificável. Apanho um rasto de inquietação a surgir no rosto da minha irmã com cada passo dado.

      Eu suspiro, dando a entender que a sua presença me deixara incomodado, quando na verdade estou um tanto aliviado que o jogo fora interrompido.

      – Estás assim tão descontente de me ver ou só não queres trabalhar? – Questiona a voz rouca do General.

      – Um pouco dos dois. – Respondo, levantando-me.

      Atiro a minha mão para o meio do jogo de modo que as cartas se misturem umas com as outras.

      O general lança-me uma risada curta e seca antes de dar mais uns passos na nossa direção.

      – Os prisioneiros já acordaram.

      – "Prisioneiros"? Não era só um? – Pergunto, forçando as sobrancelhas a contorcer-se numa expressão confusa.

      O general olha para a minha irmã e assinala na sua direção com um leve movimento de cabeça, a sua voz com um discreto sinal de descontentamento que não passa por despercebido.

      – A novata aqui excedeu-se um pouco e acertou em dois deles. Eu bem disse que ela não estava preparada.

      Ela olha para baixo enquanto se deixa afundar um pouco no seu assento, as suas orelhas corando um pouco. Não percebo porque é que ela não me contou isto antes, mas não penso muito no assunto antes de me colocar à sua defesa.

      – Ei, foi a sua primeira vez em terreno. Conseguimos o rapaz, não foi? No final, a missão foi cumprida. Além disso, mais um Redentor até nos pode vir a ser útil.

      O general sossega-se por uns segundos. Procede por me gestuar para o seguir enquanto sai da sala de descanso pelo mesmo sítio por onde entrou, ordem à qual eu obedeço. Antes de passar a porta, olho para a minha irmã, lançando-lhe um sorriso com esperança de que seja reconfortante.

      Caminhamos pelos corredores monótonos e quase vazios pelos quais passeei muitas vezes ao longo dos anos, iluminados pelas chamas que queimam nas tochas nas paredes de pedra. Se seguíssemos em frente, iriamos dar à zona principal, onde outros agentes convivem nas salas quentes, com abundância de comida e lindamente decoradas, mas ao invés disso, viramos à direita. A iluminação enfraquece e as paredes apertam, de forma que se alguém vier da direção oposta, mal conseguiremos passar os dois.

      No caminho para a cela, decido ponderar nos meus próximos passos. Para facilitar a leitura de memória, terei de os fazer a favor de tal. Claro que poderia forçar a leitura e a entrada na mente deles, como faço tipicamente, mas este é um caso diferente do usual. A minha irmã apagou as memórias deles e já sei que demorará até que eles se voltem a lembrar de tudo, terei de lhes ler as memórias todos os dias a cada um para me certificar que não perco nada do que se possam lembrar, juntar o máximo de informação que conseguir antes de se revoltarem contra nós. A entrada forçada nas suas mentes será demasiado exaustiva se eu o tiver de fazer todos os dias, nunca o conseguirei.

       Paramos na zona onde estão as primeiras celas. Aparentemente, eles ficaram na zona com as melhores celas, que são largas e confortáveis.

      Dirijo-me para o guarda mais próximo.

      – Há quanto tempo acordaram?

      – Há cerca de uma hora. Nada de interessante aconteceu: entraram em pânico, tentaram sair, a rapariga chamou por ajuda...

      – O mais estranho é que eles agem como se não se conhecessem – opina o general –, especialmente considerando que ela parecia bastante protetora dele durante o ataque. A novata deve ter-se desleixado e apagado meses, senão anos, das suas memórias.

      Endireito-me, tentando entrar em personagem antes de prosseguir.

      – Tenho autorização para falar com eles?

      – Para que é que achas que te chamei? – revela o general. – Vai lá, faz-te de útil.

      O general faz um movimento com o braço de forma bruta na direção do arco que dá acesso à cela específica à qual me devo dirigir, indicando que esta é a minha deixa.

      – Eles já foram avisados de que lá iria alguém para falar com eles individualmente – avisa o guarda antes de eu passar o arco.

      Logo após o arco há umas escadas que descem até uma porta metálica. Destranco-a e entro com confiança.

      É larga e até bastante confortável, com camas grandes, sofás, mesas e até fruta e tapetes coloridos, embora não acredite que seja essa a ideia que passe aos dois Redentores no interior. Até um espelho tem e, quando me miro nele, vejo um rosto arreliado com uma pequena cicatriz a julgar-me de volta. Se quisessem, poderiam partir o vidro e usá-lo como arma quando eu entrasse, mas isso não importa agora. Foco-me nas outras caras presentes.

      Um deles é o alvo original, um rapaz alto e magrinho, quase esquelético, e bastante pálido, embora acredite que parte da palidez se dê à situação na qual se encontra. A outra é uma rapariga também por volta da sua idade. Perece estar em melhor forma e mais saudável, mas abraça as pernas e enterra o rosto nos joelhos. Mesmo assim, aparenta estar melhor que o rapaz. Eles não se comunicam entre si de todo, talvez já o tenham feito e não chegaram a conclusão alguma sobre o local onde se encontram ou o porquê de ali estarem, desistindo.

      Ambos os prisioneiros levantam o olhar na minha direção. O rapaz está tão branco como um fantasma, a cor da sua pele contrastando com os seus cabelos negros, como se estivesse prestes a desmaiar a qualquer momento. A rapariga, de cabelos ondulados e enleados, olha para mim com um traço de esperança a surgir nos seus olhos, o que me intriga.

       Ela não faz a menor ideia do que se está a passar. Afinal, que Redentor se veria numa situação destas e olharia assim para mim com tamanha expectativa? Não, ela não sabe dos Redentores ou os Chama-Branca. Se calhar nem sabe nada sobre os Exclaudere.

      Penso nas minhas opções. Se a rapariga realmente não se lembrar dos Exclaudere, será mais fácil conseguir a sua cooperação. Quanto ao rapaz, poderia aproveitar-me do seu estado instável para o manipular.

      Um longo arranhão no braço da rapariga salta-me à vista e interrompe a minha linha de pensamento. Aproximo-me dela e ajoelho-me ao seu lado para o examinar melhor. É feio. Mal parece ter sido tratada, se é que foi de todo.

      – Anda comigo – digo, acidentalmente soando um pouco mais agressivo do que pretendia.

      – Espera!

      Uma voz juvenil e fraca atrás de mim convence-me a virar. O rapaz está agora de pé, ainda um pouco afastado de mim. Uns desconfortáveis segundos depois, nos quais aguardo pacientemente que ele prossiga, ele baixa o olhar e quebra o silêncio, a sua voz soando ainda mais baixa do que antes.

      – Ah...peço desculpa, não é nada, achava que tinha visto...nada, esqueça.

      A rapariga apresenta uma expressão confusa, olhando-o a ele e depois a mim como quem procura uma reação que lhe dê respostas. Isto desperta a minha curiosidade imediata. Ela não se recorda dele, mas ele parece ter memórias dela, sejam elas quais forem. É um bom ponto de começo.

      Acompanho a rapariga até ao cimo das escadas, onde dou ao guarda ordens discretas para que a leve à enfermaria. Felizmente, embora confusa, ela mostra-se colaborativa.

      Quando volto, a inquietação na cara do rapaz é mais evidente do que nunca.

      – Não te preocupes com ela. – digo, tentando soar o mais simpático que me consigo forçar a ser – Vá, bora. Quero ter uma conversa contigo.

      Ele olha-me um pouco relutante.

      – Sobre o quê?

      Eu faço um esforço para não deixar o meu desagrado perante a sua resistência mostrar-se.

      – Não me ouviste? Só quero falar contigo. Anda lá.

      Ele abana a cabeça negativamente e dá um passo para trás. Estará à espera que eu peça "por favor"? Até diria que ele podia esperar sentado, mas, para seu azar, tenho pressa.

      Vou até ele, desta vez agarrando-o e puxando-o atrás de mim. Ele não diz nada, mas apresenta alguma resistência inicial. Não é que tenha algum efeito, dá para ver que ele não se está realmente a esforçar muito. Talvez esta seja uma tentativa de fingir fraqueza para eu baixar a guarda. Ou talvez eu é que o estou a sobrestimar.

      Levo-o para uma sala diferente, mais pequena, quase vazia, e numa área mais profunda, apenas com uma mesa e uma cadeira de madeira. Empurro-o para a cadeira e ele quase cai para trás com o impulso. Ups.

      Talvez precise de melhorar a minha hospitalidade.

      Fico de frente para ele, apoiando o peso do meu corpo na mesa, encostando-me.

      Tenho de o fazer acreditar que estou aqui para o ajudar ou pelo menos fazê-lo ficar a favor da leitura das memórias. Ele já sabe quem somos, senão não teria reagido como reagiu quando eu ia levar a rapariga comigo, não valerá a pena mentir sobre isso.

      Eu tento evitar um suspiro de frustração e forço os meus lábios a formar um leve sorriso e a minha voz a soar calma.

      – Desculpa, não era a minha intenção magoar-te. Como te sentes?

      Ele observa-me. Os seus olhos mostram nervosismo que ele tenta esconder com uma expressão de seriedade, mas a sua tentativa é tão terrível que até sinto pena.

      – Estou bem, obrigado.

      – Ótimo. – Continuo com esforço de aparentar amigável, na esperança de que a minha atuação seja melhor do que a dele.

      Retiro a folha no meu bolso, desdobro e pouso-a na mesa, mesmo à frente dele, juntamente com uma caneta que também carrego.

      – Importas-te de escrever o teu nome e a data? Se não souberes a data exata, escreve algo próximo ou adivinha.

      Com alguma incerteza, ele acena e agarra na caneta, escrevendo o seu nome e uma data. Quando ele pousa a caneta, eu pego no papel e leio em voz alta.

      – Iaromir Ramos, dois de setembro.

      Olho-o com um ar duvidoso. Esse não é o nome que me deram, embora semelhante. O meu contacto visual parece ter algum tipo de efeito, porque ele não demora a abrir a matraca e a justificar-se com um riso nervoso.

      – A minha mãe queria dar-me um nome único...é uma pancada, sabes? Mas podes chamar-me de Iaro, é o que todos me chamam...

      Era esse mesmo o nome que procurava. Desvio a minha atenção de volta para o papel, acenando afirmativamente e premindo os meus lábios juntos numa linha fina.

      A data que ele escreveu é que realmente importa. Quase um ano para atrás. Embora não o queira admitir, o general tem razão, a minha irmã excedeu-se.

      – Iaro, vou ser bastante direto nesta conversa. Eu sei quem tu és e tenho a impressão de que tu também sabes quem somos e onde estás.

      Ele sustém a respiração e observa-me atentamente. Levanto-me e começo a andar ao longo da pequena sala, prosseguindo.

      – O meu nome é Inventus. É um prazer conhecer-te, és um verdadeiro acontecimento revolucionário em carne e osso. O primeiro humano de nascença com capacidades de Exclaudere. Deveras impressionante.

      – O que queres de mim? – diz, finalmente respirando de novo.

      – Não é sobre o que quero de ti, mas sim o que te podemos dar para voltares para o nosso lado. Na verdade, foi precisamente para isso que fui chamado para falar contigo.

      – Voltar para o vosso lado? – o seu rosto contorce-se, revelando confusão.

      Concentro-me em não sorrir. Estamos num bom caminho, talvez o consiga enganar a acreditar numa mentira reles. Paro em frente dele e mantenho um rosto calmo e composto.

      – Tentar-te-ei fazer um breve resumo. Recentemente, deixaste os Redentores e vieste para o nosso lado, concordando juntares-te a nós. Infelizmente, em batalha, quando eles te tentaram recuperar, um dos nossos acertou-te com a sua Habilidade, deitando-te abaixo e apagando a tua memória até, pelos vistos, dia dois de setembro.

      O seu rosto parece estar em completo choque por uns momentos, mas recompõe-se mais rápido do que aquilo que eu esperava.

      – Parece-me bizarramente conveniente que as minhas memórias são apagadas e que me lançam para dentro de uma cela assim que me junto a vocês.

      Não é como se esperasse que ele acreditasse em mim de imediato. Se fosse assim, o mais provável seria que ele estivesse apenas a fingir para me tentar enganar. Prefiro suspeitas honestas do que cumplicidade falsa.

      – Não seria muito inteligente da nossa parte deixar-te à solta enquanto a tua última memória indica que ainda somos inimigos. Agora, em relação àquilo sobre o que te podemos dar em troca da tua lealdade de volta, queremos...

      Iaromir corta-me a meio da frase de forma seca.

      – Não estou interessado, obrigado.

      Noto como ele tem vindo a ganhar mais confiança ao longo da conversa, apesar do seu medo ainda estar claro e presente. Primeiro é irónico e agora interrompe-me. Se fosse um prisioneiro normal, cuja memória não tivesse sido apagada, já lhe teria partido um dedo ou pelo menos ameaçado de que o iria fazer. Só preciso dele vivo, as condições em que fica não são relevantes. No entanto, será mais conveniente manipulá-lo a confiar em nós ao longo do tempo, o que permitirá uma leitura mais fácil das suas memórias para aprender sobre os Redentores. Afinal, eles são melosos, se o tratar com alguma rispidez, apresentará ainda mais relutância.

      – Calma, rapazeco. Não te daremos nada material nem informações. Sabemos bem como os Redentores são mais leais e espertos do que isso. Apenas te retornarei algo que te pertence. As tuas memórias.

      Aproximo-me um pouco mais dele para ver se o consigo pressionar, nem que seja um pouco, e afetar a sua capacidade de raciocinar controladamente. Ele inclina-se para trás na cadeira e olha-me de baixo acima.

      – As minhas memórias?

      – Isso será suficiente para te convencer, não?

– E como farias isso? – Pergunta, não parecendo muito persuadido.

      – A minha Habilidade baseia-se em eu conectar-me às memórias de outra pessoa. Consigo fazê-la recordar-se das suas memórias mais recentes e recuperar as perdidas.

      Ele pensa por um pouco, quebrando o contacto visual.

      – Não – acaba por responder.

      A sua resposta era a esperada, mas eu sei qual é o seu medo.

      – Não te preocupes, não terei acesso às tuas memórias nem àquilo de que te recordas, só tu conseguirás visualizar tudo.

      Ele parece reconsiderar a proposta. Como é óbvio, eu só lhe estou a atirar com mentiras preguiçosas. Apesar do meu acesso às suas mentes estimular a recuperação de memórias, as recordações voltam às pessoas por si mesmas. Não só isso, mas eu também tenho ligação ao absoluto das suas lembranças. Qualquer coisa que leia no seu cérebro, consigo ver, sentir, ouvir e até cheirar e provar. É como estar a reviver os momentos no lugar da pessoa. Sei o que elas fizeram, sentiram e até pensaram.

      Ele não me responde. Olha-me e parece que irá dizer qualquer coisa antes de desistir e voltar à sua expressão pensativa.

      – Eu não sei...

      Eu não tenho tempo para isto.

      – Ouve, Iaro – pouso as minhas mãos nos braços da cadeira dele, forçando proximidade e que ele fixe o olhar em mim –, nós gostamos de ti e és bastante importante, mas não terás tratamento especial. Não sou um dos teus ex-colegas que te venera, por isso, não me testes a paciência. Se fosse a ti, colaborava antes que alguém superior decida que a tua inconveniência é maior que a tua utilidade. Queremos a tua ajuda, mas não te iludas a acreditar que dependemos ou sequer precisamos dela.

      Espero que a distância entre nós o pressione a aceitar, pois estou a ficar impaciente e é essencial começar a estudar as suas memórias ainda hoje. Os Redentores sabem que somos difíceis e exigentes, até entre nós, então isto não o fará duvidar de nós diretamente.

      – O-okay – a sua voz sai um pouco baixa e rouca outra vez, como no início da conversa. Dá-me algum prazer vê-lo perder a sua atitude espertinha e confiante.

      – Ótimo.

      Endireito a minha postura e ajeito o uniforme. Procedo por usar a mesa como cadeira e sento-me à frente de Iaromir.

      – O procedimento é indolor. Irei posicionar os meus dedos na tua nuca – explico, demostrando enquanto o faço – e irei pressionar com alguma força. Isto far-te-á entrar em algo semelhante a um sono profundo, no qual irás reviver as tuas últimas recordações e talvez algumas novas.

      – Como sei que não estarás ocupado a implantar falsas memórias? – Pergunta o Iaromir, continuando a expressar incerteza.

      – Andaste bastante bem escondido por bastante tempo. – Respondo, baixando os meus braços – Sendo que não foi possível estudar-te, seria quase impossível para mim implantar memórias que incluíssem as tuas rotinas e conhecidos. Confia em mim, tu irias perceber. Além disso, não sou capaz de o fazer.

      O que eu digo não é mentira de todo, mas consigo ver como a minha história até agora contém pequenas falhas. Infelizmente, foi o melhor que consegui arranjar no momento.

      – Claro... – diz Iaromir entre dentes.

      Ignoro o seu tom sarcástico e posiciono os meus dedos, sem contar com os polegares que se encarregam de endireitar o pescoço de Iaro, na nuca.

      – Pronto?

      Ele cerra os lábios com força e acena afirmativamente, mesmo que seja com hesitação.

      Pressiono os dedos contra a sua pele.