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Chapter 2 - Capítulo I - Iaromir

 Apercebo-me do que ele está prestes a fazer, mas o meu corpo não responde tão rápido quanto a mente. Com um golpe na minha única perna de apoio, perco o meu equilíbrio e tombo de costas no chão.

 Não me levando como de costume. Em vez disso, deixo-me ficar no solo por uns segundos, mirando o céu que escurece com o som da minha respiração irregular a encher o vazio.

 Já toda a gente terminou os treinos e toda a gente se foi embora, mas, como de costume, fui obrigado a ficar aqui. Não me atrevo a reclamar, mas estaria a mentir se dissesse que gosto destes treinos prolongados.

 – Sabes, se dormires agora, não terás sono logo à noite – Repreende Markus com um sorriso malicioso.

 Fico na mesma posição, incapaz de arranjar vontade para cumprir o que me é pedido. Desisto de recuperar qualquer tipo de motivação para continuar.

 – Já vai, dá-me uns minutos.

 – Ele dá um suspiro longo antes de se aproximar de mim, entrando no meu campo de visão e tapando a vista do céu.

 O que é que se passa contigo?

 – O quê?

 – Ultimamente, não tenho visto grande progresso da tua parte – diz Markus, um pouco mais sério do que o normal.

 – Quem precisa de progresso quando se tem um guarda-costas tão bom como tu? – Brinco, deixando-me rir levemente com o meu próprio comentário enquanto descolo as costas do chão e me sento, esperando que isso o acalme.

 – Lisonjeias-me – afirma –, mas durante quanto mais tempo serei eu o teu "guarda-costas"?

 Eu sei, eu sei... – resmungo – Estou a fazer o meu melhor.

 Markus encolhe os ombros e afasta-se.

 – É bom que estejas enganado.

 Possivelmente pensa no quão inoportuno lhe sou. Afinal, sei perfeitamente que ele cuida de mim por pura obrigação.

 – Vamos embora, então. Também estou a ficar com fome. – Diz Markus, a sua voz um pouco mais energética.

 Sorrio ligeiramente. Ele próprio parece cansado e algo satisfeito com a sua decisão.

 – Também só pensas em comida.

 – Deverias seguir o meu exemplo, lingrinhas.

 Ele estende a mão, oferecendo-me ajuda para eu me levantar. Aceito o seu gesto, agarrando-me com firmeza.

 Sinto-o puxar-me na sua direção com um leve impulso.

 Estou prestes a agradecer quando sinto um formigueiro nos meus dedos. Um arrepio atravessa a minha pele. Um frio chocante percorre o interior do meu corpo desde as unhas até à minha nuca antes do meu redor escurecer.

 O céu apresenta um tom cinza e folhas de diversas cores quentes caem graciosamente, cobrindo o chão em tal quantidade que não consigo distinguir se estou sobre uma calçada ou sobre terra batida. Admiro a paisagem com um horizonte infinito, aproveitando o sentimento de paz que me fornece.

 Dou um passeio, deixando a melodia reconfortante do vento fresco que brinca com as folhas e do som destas mesmas a estalarem debaixo dos meus pés fazerem-me companhia. Mantenho o olhar fixo nos meus pés, como se o meu redor fosse demasiado desinteressante para eu lhe dar qualquer atenção. Ando até os meus pés começarem a latejar.

 Levanto o olhar e deparo-me com uma pilha de livros. Livros de todos os tamanhos e grossuras a descansar uns sobre os outros de modo organizado. Dou a volta ao monte, na esperança de encontrar algo que me interesse, mas ao invés disso, uma rapariga que se senta de costas apoiadas ao monte surpreende-me.

 Nas suas mãos de dedos longos, um livro capta a sua atenção.

 Paro por uns instantes, inseguro sobre continuar ou abordar a tal figura, mas a curiosidade apodera-se de mim, conquistando-me como pão conquista alguém esfomeado.

 – Olá. Peço desculpa por te incomodar. Sou o Iaro.

 Não encontro resposta. No entanto, ao observá-la por mais uns instantes, reconheço os seus traços.

 Olhos verde-lima intensos, como os que só vi num rosto. Cabelos ondulados e despenteados, pele bronzeada, lábios finos e nariz longo. Reconheço a figura à minha frente que me persegue há tanto tempo. Tento acercar-me mais dela.

 – Markus? O que é que estás a fazer aqui?

 Quando levanta a cabeça e me olha, recuo um passo. Markus desapareceu e a rapariga retomou. Talvez me tenha confundido porque...porque partilham os mesmos traços. Apesar das semelhanças físicas, semelhanças a um nível perturbador, é óbvio que são pessoas diferentes.

 – Quem és tu? – pergunto.

 Ela sobe uma sobrancelha. Fecha o livro nas suas mãos, revelando a sua capa verde-broto com um homem de capuz em dourado. Um corvo negro aparece do ar, exaltando-me, e pousa sobre o livro que a rapariga segura.

 A rapariga fala para o pássaro como se fosse ele quem lhe tivesse feito a pergunta.

 – Na verdade, somos clientes habituais.

 Tento aproximar-me, pronunciar uma palavra, qualquer coisa, mas as folhas enrolam-se à volta dos meus pés como cordas e os meus lábios não se separam, como se cola os forçasse juntos.

 A minha cabeça fica leve e o meu corpo a pesar-me antes de me encontrar com o chão.

 O ar que entra nos pulmões não me é suficiente e o coração salta do meu peito como se tentasse escapar desesperadamente de uma jaula. A pele está coberta de um suor gelado e a minha cabeça lateja enquanto um som agudo se sobrepõe ao resto.

 Sou obrigado a aguardar uns segundos até que os sintomas acalmem e conseguir readquirir a habilidade de raciocinar ou ouvir os meus próprios pensamentos.

 Outra visão. Claro. Já não tinha nenhuma há umas semanas, até comecei a questionar se tinha perdido a minha Habilidade após este tempo todo. Não sei se a reafirmação de que está tudo normal me dececiona ou alivia.

 O forte odor de diversas ervas e plantas que invade ao meu nariz ajuda-me a identificar onde estou antes de precisar de analisar o meu redor. A casa de Amice.

 – Iaro! Iaro, estás bem? – pergunta uma voz preocupada e familiar.

 Um par de mãos pequenas e delicadas pousam sobre o meu braço. Abro completamente os olhos e sou recebido pela figura colorida do costume.

 – Amice? Ah, sim, sinto-me bem, não te preocupes... – minto.

 – O Markus disse que desmaiaste no final do treino. Tiveste outra visão?

 Não respondo de imediato, mais concentrado na enxaqueca do que no que nas questões que me faz. Sinto algo fresco e pegajoso à volta da minha cabeça. Alcanço-a com a minha mão e retiro-a, deixando um fluído viscoso para trás nos meus cabelos e testa. É uma folha longa de uma das plantas de Amice. Não sabia que as suas plantas podiam ser tão grunhentas.

 Mas, de facto, a enxaqueca pós-visão está menos intensa do que o costume. Talvez as plantas de Amice estejam mesmo cada vez mais eficazes.

 – Treino? – tento focar-me no que ela disse.

 Certo. Estava com a treinar antes de desmaiar e ter a visão sobre a rapariga.

 Faço um esforço para me levantar, ignorando a voz na minha cabeça que me grita para me voltar a deitar. Felizmente, as minhas pernas parecem dispostas a colaborar e levanto-me sem problemas.

 Procuro Markus com os olhos. O ridículo número de plantas no quarto de Amice dificulta a tarefa e Markus nunca se sentar no mesmo sítio não ajuda.

 – Espera! Senta-te e bebe um chá, não é suposto estares a fazer esforços! – Implora a voz de Amice atrás de mim. – Estás a ouvir-me?

 Ignoro-a por completo enquanto vagueio pelo quarto com o olhar à procura de Markus. Ele nunca me deixa sozinho quando desmaio e tenho uma visão, então ele deve estar por perto.

 Demoro meros segundos até o encontrar, sentado à beira da janela mais próxima a ler um livro. Nem me olha e não mostra preocupação perante o estado alarmante no qual acordei. Suponho que já esteja demasiado habituado.

 – Alguma coisa interessante? – Pergunta com um tom de falso entusiasmo.

 – Na verdade, sim. A visão era sobre ti! Bem, talvez não inteiramente sobre ti, mas tu estavas lá! ...Eu acho.

 A minha voz apresenta-se irrequieta, mesmo não sabendo bem o porquê, mas Markus não parece reciprocar o sentimento.

 – Viste-me rico? – pergunta.

 – O quê? Não! – Apresso-me a responder.

 – Pois, era demasiado bom para ser verdade – suspira.

 A sua reação choca-me um bocado. Claro que conheço bem a sua personalidade, mas não esperava que mostrasse tão pequena curiosidade perante uma visão sobre si. Já tive dezenas, se não centenas, de visões e ele nunca apareceu em nenhuma. Ignoro o seu comentário inoportuno e opto por proceder com a minha explicação.

 – Ouve, tenho o pressentimento de que esta visão foi mesmo importante. Estavas lá por um segundo e de repente eras uma rapariga.

 Ele olha-me com cara de algum desconforto.

 – Olha, não leves a mal, mas essa não é bem a minha cena, Iaro.

 Eu gemo e reviro os olhos com impaciência e frustração.

 – Não é nesse sentido. Estavas tu lá e depois estava lá uma rapariga no teu lugar.

 – Ela era gira? – questiona, finalmente mostrando algum interesse.

 – Gira? O quê? N-não, ela...isso não interessa, podes levar isto mais a sério?

 – Que pena... – responde Markus.

 – Lembras-te da aparência dela? – Pergunta Amice, aproximando-se até ao meu lado.

 – Como é que me poderia esquecer... – dou um riso curto e nervoso.

 Amice apresenta uma expressão de quem tenta decifrar o significado por detrás das minhas palavras.

 – Na verdade – prossigo, levando os dedos ao queixo –, acho que sei exatamente onde a encontrar.

 – Viste algo que te servisse de dica?

 – Sim. – confirmo à Amice – Livros e um corvo. Não te diz nada?

 Pelo olhar que trocam, sei que Amice e Markus se apercebem do que estou a falar ao mesmo tempo. Estranhamente, é possível que esta tenha sido a visão mais fácil de interpretar até hoje. Sinto-me anormalmente motivado.

 – Exato. Se tivermos sorte, ainda a apanhamos nos próximos dias. Eu vi folhas no chão, ainda estavam na 11º lua, estamos a tempo de ir lá falar com ela.

 – Sobre o quê? – Pergunta Markus.

 Olho-o com dificuldade em perceber exatamente o que me pergunta. Ao ver que não lhe respondo, continua.

 – O que é que ela fez na visão? O que é que lhe aconteceu?

 – Bem, não aconteceu nada, mas...

 – Pelo que percebi – retoma ele –, não a viste em perigo, não a viste a usar uma Habilidade, não a viste a fazer nada. Estava lá eu e depois ela, correto? O que é que ela disse? O que é que ela fez, o que é que lhe aconteceu que te faça ver isto como uma emergência? O que é que aconteceu que merece que gastemos tempo e recursos para a encontrar?

 Hesito, acabando por não responder. Não tenho motivo nenhum para estar tão irrequieto com este assunto a não ser pelas semelhanças que ela apresentava com Markus.

 Com um encolher de ombros, ele passa por mim e caminha até à porta.

 – Acho que isto toma o assunto por encerrado. Vamos comer, estou cheio de fome.

 Viro-me para ele e o meu nervosismo de contar a verdade desaparece mais rápido do que imaginava ser possível. Talvez graças ao medo de deixar este assunto por resolver.

 – Markus, espera! Tu não percebes, ela era extremamente parecida contigo, quase uma cópia tua!

 Ele para e, pela primeira vez, parece prestar atenção.

 – O que é que queres dizer com isso?

 – Ela era igual a ti. Até demasiado, foi um bocado assustador. Acho que ela pode estar relacionada contigo, talvez seja tua irmã ou prima?

 – Isso não muda nada.

 – De que é que estás a falar? Isso muda tudo!

 – Mesmo que, por uma chance escassa, seja alguém ligado a mim por sangue, como poderíamos provar isso? – Comenta com crescente desinteresse pelo assunto – Sabes bem que só trazemos pessoas que sejam chamadas ou que o Administrador peça diretamente.

 Ele tem razão, eu sei que sim, mas o meu pressentimento permanece.

 – Por favor, temos de falar com ela. Eu sei que ela vai ser importante, confia em mim. As minhas visões nunca são em vão, têm sempre um significado, tu sabes disso.

 Olha-me com atenção e algum desagrado.

 – Falarei com o Administrador sobre isto. Se ele disser que sim, seguiremos o teu plano "brilhante". Senão, abandonarás este assunto.

 – A sério? – exclamo, um pouco incrédulo.

 – Se for minha irmã ou algo parecido, será provável que ela seja uma Exclaudere. E nós bem precisamos de mais recrutas. Ainda acho que não o deveríamos fazer, mas colocarei a decisão nas mãos do Administrador. Além disso, não pararás de me chatear se eu disser que não.

 Tento evitar tornar o meu alívio óbvio, acenando com um pequeno sorriso como forma de agradecimento.

 – Já podemos ir comer? – Pergunta.

 – Claro, claro. Bora lá. Vens, Amice?

 – Já comi, obrigada. Mas não queres lavar o cabelo, antes de ires?

 Toco no meu cabelo, ainda viscoso.

 – Ele faz isso depois do jantar. Vá, vamos lá, até te dá algum charme – insiste Markus, empurrando-me sem me dar a hipótese de pensar no assunto.