Horas depois, subi uma escada estreita atrás de um açougue. Havia um cheiro vago e penetrante de gordura rançosa que subia da viela, mas eu estava sorrindo. Uma tarde inteira com Alys só para mim era uma dádiva rara e meus passos foram surpreendentemente leves para quem estava prestes a fazer um trato com um demônio.
Bati na porta de madeira sólida no alto da escada e aguardei. Nenhum agiota filiado à guilda me confiaria um lumen quebrado, mas sempre há gente disposta a emprestar dinheiro. Os poetas e outros românticos os chamam de gaviões de cobre, ou de tubarões, mas o termo melhor é usurário. É uma gente perigosa de quem as pessoas sensatas ficam longe.
Abriu-se uma fresta na porta, depois ela se escancarou, revelando uma jovem de rosto de elfo e cabelo louro-avermelhado.
— Vanitas! — Devi exclamou. — Eu estava com medo de não vê-lo neste período.
Entrei e ela trancou a porta atrás de mim. O quarto amplo e sem janelas tinha um aroma agradável de citra e mel, o que era uma revigorante diferença da viela.
Um de seus lados era dominado por uma enorme cama de dossel, com as cortinas escuras fechadas. No outro, havia uma lareira, uma grande escrivaninha de madeira e uma estante com três quartos do espaço ocupados. Fui até lá dar uma espiada nos títulos, enquanto Devi passava o ferrolho e punha a tranca na porta.
— Esse exemplar do Malcaf é novo? — perguntei.
— É — disse ela, aproximando-se e parando ao meu lado. — Um jovem alquimista que não pôde quitar sua dívida me deixou fazer umas escolhas em sua biblioteca, para acertar as coisas entre nós.
Devi tirou cuidadosamente o livro da prateleira, revelando o título Visão e revisão, folheado a ouro na capa. Ergueu os olhos para mim, com um sorriso malicioso, e perguntou:
— Já o leu?
— Não — respondi. Eu tinha querido estudá-lo para o exame de admissão, mas não conseguira encontrar um exemplar no Acervo. — Só ouvi falar.
Devi ficou pensativa por um momento, depois me entregou o livro.
— Quando o tiver terminado, volte aqui e vamos discuti-lo. Ando deploravelmente desprovida de conversas interessantes nos últimos tempos. Se tivermos uma discussão decente, talvez eu o deixe levar outro emprestado.
Depois que o livro estava em minhas mãos, ela bateu de leve na capa com um dedo.
— Este livro vale mais do que você — disse, sem o menor indício de brincadeira na voz. — Se ele voltar danificado, haverá contas a prestar.
— Tomarei muito cuidado — prometi.
Devi assentiu com a cabeça, virou-se, passou por mim e foi para a escrivaninha.
— Pois muito bem, vamos aos negócios. — Sentou-se. — Está meio em cima da hora, não é? A anuidade tem que ser paga amanhã, antes do meio-dia.
— Eu levo uma vida perigosa e excitante — retruquei, aproximando-me e me sentando diante dela. — E, por mais encantadora que eu julgue a sua companhia, tinha a esperança de evitar os seus serviços neste período.
— Está gostando da anuidade de A'scor? — indagou ela, com ar entendido. — Até que ponto eles o afogaram?
— É uma pergunta bastante pessoal.
Devi lançou-me um olhar franco.
— Estamos prestes a fazer um acordo bastante pessoal — assinalou. — Estou longe de me sentir ultrapassando os limites.
— Nove e meio — respondi.
Ela deu um grunhido desdenhoso.
— Pensei que você fosse o suprassumo da inteligência. Nunca fui além de sete quando era A'scor.
— Você tinha acesso ao Arquivo — ressaltei.
— Eu tinha acesso a um vasto reservatório intelectual — retrucou ela, sem rodeios. — Além disso, sou uma bonequinha. — E deu um sorriso que fez surgirem covinhas nos dois lados de seu rosto.
— Você brilha como um lumen novo — admiti. — Homem nenhum tem esperança de resistir a você.
— Algumas mulheres também têm dificuldade de manter a calma — disse Devi. Houve uma leve mudança em seu sorriso, que passou de adorável a travesso e ultrapassou em muito a fronteira do malicioso.
Sem ter a menor ideia de como reagir a isso, tomei um rumo mais seguro:
— Acho que preciso pedir emprestados quatro crimos.
— Ah — assumindo um súbito ar pragmático, Devi cruzou as mãos sobre a escrivaninha e disse: — Receio ter feito algumas mudanças nos meus negócios, recentemente. No momento, só concedo empréstimos de seis crimos ou mais.
Não me dei o trabalho de tentar esconder minha desolação.
— Seis crimos? Devi, essa dívida extra será uma mó pendurada no meu pescoço.
Ela deu um suspiro que soou ao menos ligeiramente como um pedido de desculpas.
— O problema é o seguinte: quando concedo um empréstimo, eu corro certos riscos. Corro o risco de perder meu investimento se o devedor morrer ou tentar fugir. Corro o risco de que ele tente me denunciar. Corro o risco de ser levada a enfrentar a Lei Férrea ou, pior ainda, a guilda dos agiotas.
— Você sabe que eu nunca faria uma coisa dessas, Devi.
— Ainda assim — continuou ela —, meu risco é o mesmo, seja o empréstimo pequeno ou grande. Por que eu haveria de correr esses riscos por empréstimos pequenos?
— Pequenos? — repeti. — Eu poderia viver um ano com quatro crimos!
Ela bateu com um dedo na mesa e franziu os lábios.
— Garantias?
— O de sempre — respondi, dando-lhe meu melhor sorriso. — Meu encanto ilimitado.
Devi deu uma bufadela indelicada.
— Pelo encanto ilimitado e três gotas de sangue, você pode levar seis crimos, com meus juros de praxe. Cinquenta por cento por um prazo de dois meses.
— Devi — falei, em tom sério —, o que vou fazer com o dinheiro extra?
— Dê uma festa — sugeriu ela. — Passe um dia na Fivela. Arranje um bom jogo de pokket com o cacife alto.
— Pokket é um imposto cobrado de pessoas que não sabem calcular probabilidades.
— Então, seja a banca e cobre o imposto. Compre alguma coisa bonita para você e use-a da próxima vez que vier me visitar — disse, observando-me de cima a baixo com olhos perigosos. — Talvez aí eu me disponha a fazer negócio com você.
— Que tal seis crimos por um mês, a 25 por cento? — perguntei.
Devi abanou a cabeça, não sem gentileza.
— Vanitas, eu respeito o impulso de pechinchar, mas você não tem nenhuma contrapartida a oferecer. Está aqui porque se encontra num beco sem saída. Eu estou aqui para capitalizar nessa situação. — Abriu as mãos num gesto de desamparo e acrescentou: — É assim que eu ganho a vida. O fato de você ter um rostinho meigo não entra realmente nessa história.
Olhando-me com ar sério, acrescentou:
— Inversamente, se um agiota da guilda ao menos lhe desse bom-dia, imagino que você não viria aqui, pelo simples fato de eu ser bonitinha e você gostar da cor do meu cabelo.
— É uma cor encantadora — retruquei. — Nós, os tipos únicos, realmente deveríamos nos unir.
— Deveríamos — concordou ela. — Proponho que nos unamos em juros de 50 por cento num prazo de dois meses.
— Está bem — cedi, arriando na cadeira. — Você venceu.
Devi me deu um sorriso cativante, tornando a mostrar as covinhas.
— Só posso vencer se nós dois realmente estivermos jogando — disse. Abriu uma gaveta da escrivaninha e tirou um pequeno frasco de vidro e um alfinete comprido.
Estendi a mão para pegá-los, mas, em vez de empurrá-los pela mesa, Devi me lançou um olhar reflexivo:
— Pensando bem, talvez haja uma alternativa.
— Eu adoraria uma alternativa — admiti.
— Na última vez que conversamos — disse ela, devagar —, você deixou implícito que tinha um jeito de entrar no Arquivo.
Hesitei.
— É, deixei implícito.
— Essa informação teria um valor e tanto para mim — comentou ela, com demasiada displicência. Embora tentasse escondê-la, vi em seus olhos uma fome voraz, macilenta.
Fitei minhas mãos e não disse nada.
— Eu lhe dou 10 crimos agora mesmo — disse Devi, sem rodeios. — Não é empréstimo. Eu compro a informação, direto. Se for apanhada no Acervo, nunca terei sabido nada de você.
Pensei em tudo que eu poderia fazer com 10 crimos. Roupas novas. Um estojo para o alaúde que não estivesse caindo aos pedaços. Papel. Luvas para o inverno que se aproximava.
Suspirei e neguei com a cabeça.
— Vinte crimos — disse Devi. — E juros da guilda em qualquer empréstimo que você quiser no futuro.
Vinte crimos significariam meio ano de despreocupação com a taxa escolar. Eu poderia trabalhar nos meus próprios projetos na Ficiaria, em vez de batalhar feito um escravo fazendo lamparinas de convés. Poderia comprar roupas feitas sob medida. Frutas frescas. Poderia usar uma lavanderia, em vez de lavar a minha própria roupa.
Respirei, relutante.
— Eu...
— Quarenta crimos — ofereceu Devi, faminta. — Juros da guilda. E levo você para a cama.
Por 40 crimos eu poderia comprar para a Alys sua própria meia-harpa. Poderia...
Levantei a cabeça e vi Devi me encarando do outro lado da escrivaninha. Seus lábios estavam úmidos, os olhos azuis, febris. Ela movimentava os ombros para trás e para a frente, no movimento lento e inconsciente de um felino antes de saltar.
Pensei em Hani, segura e feliz nos Subterrâneos. O que ela faria se o seu pequenino reino fosse invadido por uma estranha?
— Sinto muito — falei. — Não posso. Entrar é... complicado. Envolve uma pessoa amiga e acho que ela não estaria disposta.
Resolvi ignorar a outra parte da oferta, já que não tinha a mínima ideia do que dizer sobre ela.
Houve um momento longo e tenso.
— Desgraçado — disse Devi, finalmente. — Você parece estar dizendo a verdade.
— Estou. É inquietante, eu sei.
— Maldição — praguejou ela, e fechou a cara ao empurrar o vidro e o alfinete pela mesa.
Espetei o dorso da mão e vi o sangue brotar, escorrer e pingar no vidro. Depois de três gotas, também espetei o alfinete no gargalo.
Devi espalhou um adesivo em torno da rolha e a pôs no vidro com raiva. Depois, enfiou a mão numa gaveta e tirou uma agulha de diamante.
— Você confia em mim? — perguntou, enquanto gravava um número no vidro. — Ou quer que isto seja vedado?
— Confio em você — respondi. — Mas gostaria que fosse vedado, assim mesmo.
Ela derreteu um pouco de cera no tampo do vidro. Pressionei-a com minha gaita do talento, deixando uma impressão reconhecível.
Pondo a mão na outra gaveta, Devi tirou seis crimos e bateu com eles na escrivaninha. O gesto teria parecido petulante se seus olhos não estivessem tão duros e raivosos.
— Vou entrar lá, de um modo ou de outro — disse, com um toque gelado na voz. — Fale com o seu amigo. Se for você a me ajudar, o seu tempo será recompensado.