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Chapter 160 - CLIX. PEIXE

Voltei de bom humor para a Academia, apesar do fato de minha nova dívida. Fiz umas compras, peguei meu alaúde e saí pelos telhados.

Por dentro, o Magnólio era um pesadelo para se caminhar: um labirinto de corredores e escadas irracionais que não levavam a lugar nenhum. Mas andar pela misturada dos seus telhados não poderia ser mais fácil. Cheguei a um pátio que, em algum momento da construção do prédio, tinha-se tornado completamente inacessível, aprisionado qual mosca no âmbar.

Hani não estava me esperando, mas esse era o primeiro lugar onde eu a havia encontrado e, nas noites claras, às vezes ela saía para contemplar as estrelas. Certifiquei-me de que as salas de aula que davam para o pátio estavam escuras e desertas, peguei o alaúde e comecei a afiná-lo.

Fazia quase uma hora que eu estava tocando quando ouvi um farfalhar no pátio coberto de folhagem, lá embaixo. Então Hani apareceu, subindo em disparada pela macieira malcuidada e chegando ao telhado.

Correu para mim, os pés descalços saltitando de leve sobre o piche, o cabelo esvoaçando às suas costas.

— Eu ouvi você! — exclamou, ao se aproximar. — Ouvi você lá embaixo, nos Saltos!

— Tenho a impressão de me lembrar — falei, lentamente — de que eu ia tocar para alguém.

— Eu! — disse ela, juntando as duas mãos no peito e sorrindo. Deslocou-se sobre um pé e o outro, quase dançando de ansiedade. — Toque para mim! Fui mais paciente que duas pedras juntas. Você chegou bem na hora. Eu não poderia ser paciente como três pedras.

— Bem — respondi, hesitante. — Acho que tudo depende do que você trouxe para mim.

Ela riu, elevando-se na ponta dos pés, as mãos ainda unidas junto ao peito.

— O que você trouxe para mim?

Ajoelhei-me e comecei a desatar minha trouxa.

— Eu lhe trouxe três coisas.

— Que tradicional! — disse ela, risonha. — Hoje você está sendo o perfeito jovem cavalheiro.

— Estou — concordei e levantei uma garrafa escura e pesada.

Ela a segurou com as duas mãos.

— Quem a fez?

— As abelhas. E uns cervejeiros.

Hani sorriu.

— Isso dá um abecê — disse, e pôs a garrafa ao lado dos pés.

Peguei uma broa fresquinha de cevada. Ela estendeu a mão e a tocou com um dedo, fazendo um aceno de aprovação.

Por último, peguei um salmão defumado inteiro. Só ele havia custado quatro ocros, mas eu tinha medo de que Hani não arranjasse carne suficiente quando eu não estava por perto. Faria bem a ela.

Hani baixou os olhos para ele com ar curioso, inclinando a cabeça para fitar seu único olho vidrado.

— Olá, peixe — disse. Depois, tornou a olhar para mim. — Ele tem um segredo?

Fiz que sim.

— Ele tem uma harpa no lugar do coração.

Hani tornou a fitá-lo.

— Não é de admirar que pareça tão surpreso.

Tirou o peixe das minhas mãos e o depôs cuidadosamente no telhado.

— Agora, levante-se. Eu tenho três coisas para você, como seria justo.

Fiquei de pé e ela me estendeu algo embrulhado num pedaço de pano. Era uma vela grossa que cheirava a lavanda.

— O que há dentro dela? — perguntei.

— Sonhos felizes. Eu os coloquei aí para você.

Revirei a vela nas mãos, enquanto se formava uma suspeita.

— Você mesma a fez?

Ela meneou a cabeça e deu um sorriso delicado.

— Fiz. Eu sou incrivelmente esperta.

Guardei-a com cuidado num dos bolsos da capa.

— Obrigado, Hani.

Ela ficou séria.

— Agora, feche os olhos e se curve, para eu poder lhe dar seu segundo presente.

Intrigado, fechei os olhos e dobrei o tronco, perguntando-me se ela também teria feito um chapéu para mim.

Senti suas mãos dos dois lados do meu rosto e então ela me deu um beijo minúsculo e delicado no meio da testa.

Surpreso, abri os olhos. Mas ela já estava de pé, a vários passos de distância, com as mãos nervosamente presas nas costas. Não consegui pensar em nada para dizer.

Hani deu um passo à frente.

— Você é especial para mim — disse, com ar sério e o rosto grave. — Quero que saiba que sempre cuidarei de você.

Estendeu a mão hesitante e enxugou minhas faces.

— Não, nada disto esta noite. Este é o seu terceiro presente. Se as coisas correrem mal, você pode vir ficar comigo nos Subterrâneos. É bom lá e você ficará a salvo.

— Obrigado, Hani — agradeci, assim que consegui falar. — Você também é especial para mim.

— É claro que sou — disse ela, sem rodeios. — Sou encantadora como a Lua.

Recompus-me enquanto Hani saltitava até um pedaço de encanamento de metal que se projetava de uma chaminé e o usava para abrir a tampa da garrafa. Depois, trouxe-a de volta, segurando-a cuidadosamente com ambas as mãos.

— Hani, os seus pés não sentem frio?

Ela os olhou.

— O piche é bom — disse, girando os tornozelos. — Ainda está quente do sol.

— Você gostaria de um par de sapatos?

— O que haveria neles?

— Os seus pés. Logo vai chegar o inverno. 

Ela deu de ombros.

— Seus pés vão ficar frios.

— Não venho para o alto das coisas no inverno. Não é muito bom.

Antes que eu pudesse retrucar, Elohkar contornou uma grande chaminé de tijolos, com a displicência de quem houvesse saído para um passeio vespertino.

Nós três nos olhamos por um instante, cada qual assustado à sua maneira. Elohkar e eu ficamos surpresos, mas, pelo canto do olho, vi Hani ficar absolutamente imóvel, como um cervo prestes a disparar para a segurança.

— Mestre Elohkar — falei, no meu tom mais gentil e amistoso, torcendo desesperadamente para que ele não fizesse nada que assustasse Hani e a levasse a fugir. Na última vez que voltara apavorada para os Subterrâneos, ela havia levado uma onzena inteira para reemergir. — Que prazer vê-lo.

— Olá, vocês — respondeu Elohkar, reproduzindo à perfeição o meu tom informal, como se nada houvesse de estranho em nós três nos encontrarmos num telhado no meio da noite. Se bem que, pelo que eu sabia, talvez não parecesse estranho para ele.

— Mestre Elohkar — disse Hani, pondo um pé descalço atrás do outro e puxando a bainha do vestido esfarrapado, numa pequena mesura.

Elohkar permaneceu na sombra enluarada da alta chaminé de tijolos. Retribuiu com uma reverência curiosamente formal. Não pude ver nenhum detalhe do seu rosto, mas imaginei seus olhos curiosos examinando a garota descalça, de ar desamparado e com uma nuvem de cabelos flutuantes.

— E o que traz vocês dois aqui nesta bela noite? — perguntou ele.

Fiquei tenso. As perguntas eram perigosas com Hani.

Por sorte, essa não pareceu incomodá-la.

— O Vanitas me trouxe coisas encantadoras — disse ela. — Trouxe-me cerveja de abelhas, pão de cevada e um peixe defumado com uma harpa no lugar do coração.

— Ah — exclamou Elohkar, afastando-se da chaminé. Apalpou a toga até achar alguma coisa num bolso. Estendeu-a para ela: — Receio que eu só lhe tenha trazido uma cidra.

Hani deu um passo minúsculo de bailarina para trás e não fez nenhum movimento para pegar a fruta.

— Trouxe alguma coisa para o Vanitas? — indagou.

Isso pareceu pegar Elohkar de surpresa. Ele ficou sem jeito por um momento, de braços estendidos.

— Receio que não — respondeu. — Mas imagino que o Vanitas também não tenha trazido nada para mim.

Os olhos de Hani se estreitaram e ela fez uma carinha fechada, carregada de reprovação.

— O Vanitas trouxe música — disse, em tom severo —, que é para todos.

Elohkar tornou a parar e tenho de admitir que gostei de vê-lo desconcertado com a conduta de outra pessoa, para variar. Ele se virou e fez uma meia mesura na minha direção:

— Minhas desculpas — disse.

Fiz um gesto cortês.

— Nem pense nisso.

Elohkar virou-se novamente para Hani e estendeu a mão pela segunda vez.

Ela deu dois passos à frente, hesitou, deu mais dois. Esticou o braço devagar, parou com a mão na frutinha, depois afastou-se com vários passos apressados, levando as duas mãos ao peito.

— Agradeço-lhe de coração — disse, fazendo outra pequena mesura. — Agora, o senhor poderá juntar-se a nós, se quiser. E, caso se comporte bem, poderá ficar e ouvir o Vanitas tocar — acrescentou. Inclinou de leve a cabeça, transformando sua fala numa pergunta.

Elohkar hesitou, depois fez que sim.

Hani disparou para o outro lado do telhado e desceu para o pátio pelos galhos desnudos da macieira.

Elohkar a observou afastar-se. Quando inclinou a cabeça, o luar era apenas suficiente para que eu visse uma expressão pensativa em seu rosto. Senti uma angústia súbita e aguda me dar nós no estômago.

— Mestre Elohkar?

Ele se virou para mim.

— Hum?

Eu sabia por experiência que só levaria três ou quatro minutos para que Hani buscasse o que pretendia trazer dos Subterrâneos. Eu precisava falar depressa.

— Sei que isto parece estranho, mas o senhor precisa ser cuidadoso. Ela é muito nervosa. Não tente tocá-la. Não faça nenhum movimento repentino. Isso a assustará e a fará fugir.

A expressão de Elohkar tornou a se ocultar na sombra.

— É mesmo? — perguntou.

— Barulhos altos também. Até uma risada alta. E o senhor não pode lhe perguntar nada que se assemelhe a uma questão pessoal. Ela sairá correndo, se o fizer.

Respirei fundo, com a mente em disparada. Tenho uma boa lábia e, havendo tempo suficiente, confio em minha capacidade de convencer praticamente qualquer um de qualquer coisa.

Mas Elohkar era simplesmente imprevisível demais para ser manipulado.

— O senhor não pode dizer a ninguém que ela está aqui.

A frase saiu mais imperiosa do que eu pretendia e lamentei imediatamente minha escolha das palavras. Eu não estava em condições de dar ordens a um professor, ainda que ele fosse mais do que meio doido.

— O que eu quero dizer — apressei-me a acrescentar — é que eu consideraria um grande favor pessoal se o senhor não a mencionasse a ninguém.

Elohkar deu-me um olhar demorado e especulativo:

— E por que razão, A'scor Vanitas?

Senti meu suor brotar ante o frio som de divertimento no tom dele.

— Vão enfiá-la no Refúgio — respondi. — E justamente o senhor... — Minha fala morreu e minha garganta ficou seca.

Elohkar me encarou, seu rosto pouco mais que uma sombra, mas pude sentir sua expressão carrancuda.

— Justamente eu o quê, A'scor Vanitas? Você tem a pretensão de conhecer meus sentimentos a respeito do Refúgio?

Senti toda a minha persuasão elegante e mal planejada desfazer-se em farrapos a meus pés. E tive a súbita sensação de estar de volta às ruas de Notrean, com o estômago contraído num nó apertado de fome, o peito cheio de um desamparo desesperado, enquanto agarrava as mangas de marinheiros e mercadores, implorando lumens, meios-lumens ou gusas. Implorando por qualquer coisa para arranjar algo que comer.

— Por favor — disse a ele. — Por favor, Mestre Elohkar, se eles a perseguirem, ela vai se esconder e não conseguirei achá-la. Ela não é muito certa da cabeça, mas é feliz aqui. E eu sei cuidar dela. Não muito, mas um pouco. Se a pegarem, isso seria pior ainda. O Refúgio a mataria. Por favor, Mestre Elohkar, farei o que o senhor quiser. Só não conte a ninguém.

Psssiu. Ela está vindo — disse Elohkar.

Esticou o braço para segurar meu ombro e o luar banhou seu rosto. Sua expressão nada tinha de furiosa nem dura. Havia apenas perplexidade e apreensão.

— Pelo senhor e pela senhora, você está tremendo. Respire fundo e faça a sua expressão do palco. Ela se assustará se o vir nesse estado.

Respirei fundo e fiz força para relaxar. A fisionomia apreensiva de Elohkar se desfez e ele deu um passo atrás, soltando meu ombro.

Virei-me a tempo de ver Hani vir correndo pelo telhado em direção a nós, com os braços carregados. Ela parou a uma pequena distância, olhando para nós dois, antes de percorrer o resto do caminho, pisando com o cuidado de uma bailarina, até o lugar onde estivera originalmente. Então, sentou-se com leveza no telhado, cruzando as pernas sob o corpo. Elohkar e eu também nos sentamos, embora nem de longe com a mesma graça.

Hani desdobrou uma toalha, estendeu-a com cuidado entre nós três e pôs uma grande travessa de madeira lisa no meio. Pegou a citra e a cheirou, correndo os olhos pelo alto da fruta.

— O que há aqui dentro? — perguntou a Elohkar.

— Luz do sol — disse ele, descontraído, como se esperasse a pergunta. — E de sol da manhãzinha, aliás.

Eles se conheciam. É claro. Por isso é que ela não havia fugido logo de início. Senti a trava sólida da tensão entre minhas omoplatas relaxar um pouco.

Hani tornou a cheirar a fruta e, por um instante, fez um ar pensativo.

— É encantadora — declarou. — Mas as coisas do Vanitas são ainda mais encantadoras.

— É evidente — disse Elohkar. — Imagino que o Vanitas seja uma pessoa mais agradável que eu.

— É desnecessário dizê-lo — retrucou Hani, com ar pomposo.

Ela serviu o jantar, dividindo o pão e o peixe entre nós três. Também trouxe um pote achatado de barro com azeitonas em salmoura. Fiquei contente ao ver que ela era capaz de prover o seu sustento quando eu não estava por perto.

Hani serviu a cerveja na minha conhecida xícara de porcelana. Elohkar recebeu um potinho de vidro, do tipo que se usa para guardar geleia. Ela encheu o copo do professor na primeira rodada, mas não na segunda. Fiquei me perguntando se ele simplesmente não estava num lugar fácil de alcançar ou se aquilo seria um sinal discreto do desagrado de Hani.

Comemos sem conversar. Ela com gestos delicados, dando mordidas miúdas, com as costas eretas. Elohkar com cautela, arriscando de vez em quando uma olhadela para mim, como se não soubesse muito bem como se portar. Depreendi disso que ele nunca havia compartilhado uma refeição com Hani.

Ao terminarmos todas as outras coisas, Hani pegou uma faquinha brilhante e dividiu a cidra em três partes. Mal cortou a casca, senti o cheiro da fruta no ar, doce e penetrante. Deixou-me com água na boca. A cidra vinha de muito longe e era simplesmente cara demais para gente como eu.

Hani me estendeu meu pedaço e eu o tirei delicadamente de sua mão.

— Eu lhe agradeço de coração, Hani.

— Por nada, de coração, Vanitas.

Elohkar correu os olhos entre nós, de um lado para outro.

— Hani?

Esperei que ele terminasse a pergunta, mas isso pareceu ser tudo.

Hani compreendeu antes de mim.

— É o meu nome — disse, com um sorriso orgulhoso.

— É mesmo? — indagou Elohkar, curioso.

Hani fez que sim.

— Foi o Vanitas quem me deu — explicou, com um largo sorriso na minha direção. — Não é maravilhoso?

Elohkar assentiu com a cabeça.

— É um nome encantador — disse, polidamente. — E combina com você.

— Combina — concordou ela. — É como ter uma flor no meu coração.

Olhou com ar sério para Elohkar e acrescentou:

— Se o seu nome estiver ficando muito pesado, o senhor deve fazer o Vanitas lhe dar um novo.

Elohkar tornou a balançar a cabeça e deu uma dentada em sua cidra. Enquanto mastigava, virou-se para me olhar.

À luz da Lua, vi seus olhos.

Estavam frios, pensativos e perfeitamente, completamente sãos.