— Você já foi muito além de "O esquilo no telhado de sapê" — comentei, em voz baixa, depois que ela tangeu as últimas notas da melodia.
Alys descartou meu elogio com um dar de ombros, sem me encarar.
— Não tenho muito o que fazer além de praticar. E o Lykhaos diz que levo algum jeito.
— Há quanto tempo você está estudando? — perguntei.
— Três onzenas? — disse ela, pensativa, depois meneou a cabeça. — Um pouco menos de três onzenas.
— Mãe de Deus! — exclamei, balançando a cabeça. — Jamais conte a ninguém a rapidez com que pegou o jeito. Os outros músicos vão detestá-la por isso.
— Meus dedos ainda não se acostumaram — disse ela, fitando-os. — Não consigo praticar tanto quanto gostaria.
Estendi o braço e segurei uma de suas mãos, virando a palma para cima a fim de ver as pontas dos dedos. Havia marcas de bolhas desaparecendo.
— Você...
Levantei a cabeça e vi como Alys estava perto. Sua mão era fria na minha. Ela me fitava com olhos enormes, negros. Uma sobrancelha ligeiramente levantada. Não desdenhosa, nem mesmo jocosa, apenas com delicada curiosidade. Meu estômago ficou estranho e fraco de repente.
— Eu o quê? — perguntou ela.
Percebi que não fazia ideia do que estivera prestes a falar. Pensei em dizer "Não faço ideia do que ia dizer". Aí me dei conta de que isso seria uma idiotice. Então, não falei nada.
Alys baixou os olhos e segurou minha mão, virando-a:
— As suas mãos são macias — declarou, e tocou de leve as pontas dos meus dedos. — Pensei que os calos seriam ásperos, mas não são. São lisos.
Já não tendo seus olhos fixados nos meus, recuperei um pouquinho do raciocínio.
— Só leva tempo — comentei.
Alys ergueu o rosto e deu um sorriso tímido. Minha cabeça ficou vazia como uma folha de papel em branco.
Passado um momento, ela soltou minha mão, passou por mim e voltou para o meio da sala.
— Gostaria de beber alguma coisa? — perguntou, acomodando-se graciosamente numa cadeira.
— Seria muita gentileza sua — respondi, por puro reflexo. Percebi que minha mão continuava pendendo estupidamente no ar e a deixei cair junto ao corpo.
Ela apontou para uma cadeira próxima e eu me sentei.
— Veja isto — falou, pegando uma sineta de prata numa mesinha próxima e a balançando de leve. Depois, ergueu uma das mãos, com os cinco dedos esticados. Dobrou o polegar, o indicador, e foi fazendo uma contagem regressiva.
Antes que dobrasse o mindinho, veio uma batida na porta.
— Entre — anunciou Alys e o porteiro bem-vestido abriu a porta.
— Acho que eu gostaria de tomar um chocolate — disse ela. — E o Vanitas...
Virou-se para mim, com ar questionador.
— Um chocolate parece ótimo — concordei.
O porteiro meneou a cabeça e desapareceu, fechando a porta ao sair.
— Às vezes eu faço isso só para fazê-lo correr — admitiu Alys, com ar encabulado, baixando os olhos para a sineta. — Não consigo imaginar como ele pode ouvir. Durante algum tempo, tive a convicção de que ficava sentado no corredor, com o ouvido na minha porta.
— Posso ver a sineta? — pedi.
Alys a entregou. À primeira vista, parecia uma peça normal, mas, quando a virei de cabeça para baixo, vi uns símbolos siglísticos minúsculos na superfície interna.
— Ele não está bisbilhotando — afirmei, devolvendo o objeto. — Há outra sineta lá embaixo que toca em uníssono com essa.
— Como? — perguntou Alys e respondeu à própria pergunta: — Mágica?
— Pode chamar assim, se quiser.
— Esse é o tipo de coisa que vocês fazem por lá? — indagou, apontando a cabeça na direção do rio e da Academia, mais além. — Parece meio... vulgar.
— É o uso mais frívolo da siglística que já vi — concordei.
Alys caiu na gargalhada.
— Você parece todo ofendido. É assim que se chama: siglística?
— A criação de uma dessas coisas chama-se artificiaria. A siglística é a escrita ou o entalhe das runas que a fazem funcionar.
Os olhos de Alys se iluminaram.
— Então, é uma mágica em que você escreve coisas? — perguntou, inclinando-se para a frente na cadeira. — Como funciona?
Hesitei. Não só por ser uma pergunta imensa, mas porque a Academia tinha regras muito específicas sobre partilhar os segredos do Arcano.
— É bem complicado — respondi.
Por sorte, nesse momento, houve outra batida na porta e o nosso chocolate chegou, fumegante. Minha boca se encheu d'água ao sentir aquele aroma. O homem pousou a bandeja numa mesinha próxima e se retirou sem dizer palavra.
Beberiquei e sorri ante a espessa doçura da bebida.
— Faz anos que não tomo chocolate — comentei.
Alys levantou a xícara e olhou ao redor da sala.
— É estranho pensar que algumas pessoas vivem a vida inteira assim — ponderou.
— Isso não lhe agrada? — indaguei, surpreso.
— Gosto do chocolate e da harpa. Mas poderia viver sem a sineta e de uma sala inteira só para ficar sentada — disse. Sua boca curvou-se nos primórdios de um sussurro. — E detesto saber que uma pessoa foi posta de vigia para me proteger, como se eu fosse um tesouro que alguém pudesse tentar roubar.
— Então, não se deve valorizá-la?
Alys estreitou os olhos por cima da borda da xícara, como se não soubesse ao certo até que ponto eu estava falando sério.
— Não gosto de ficar trancada — esclareceu, com uma nota sombria na voz. — Não me importo que me ofereçam aposentos, mas eles não são realmente meus se eu não tiver a liberdade de ir e vir.
Levantei uma sobrancelha ao ouvir isso, mas, antes que pudesse dizer alguma coisa, ela abanou a mão com displicência:
— Não é assim, na verdade — suspirou. — Mas não duvido que o Lykhaos seja informado das minhas idas e vindas. Sei que o porteiro lhe conta quem vem me visitar. É meio irritante, só isso. — Deu um sorriso matreiro. — Imagino que isso pareça terrivelmente ingrato, não é?
— De modo algum. Quando eu era menor, a minha trupe viajava por toda parte. Mas, todo ano, passávamos algumas onzenas na propriedade do nosso patrono, fazendo apresentações para seus familiares e convidados. — Balancei a cabeça ante essa lembrança. — O Barão Greenweed era um anfitrião cortês. Nós nos sentávamos à sua mesa. Ele nos dava presentes...
Minha voz foi morrendo, enquanto eu me lembrava de um regimento de soldadinhos de chumbo que ele me dera. Sacudi a cabeça para afastar essa memória.
— Mas o meu pai detestava isso — prossegui. — Subia pelas paredes. Não suportava a sensação de estar às ordens de alguém.
— Sim! É exatamente isso! — exclamou Alys. — Quando o Lykhaos diz que talvez me faça uma visita em determinada tarde, de repente eu me sinto como se estivesse com um pé pregado no chão. Se eu saio, estou sendo obstinada e grosseira, mas, se fico, sinto-me como um cachorro esperando junto à porta.
Passamos um momento calados. Alys girou distraidamente o anel em seu dedo, e a pedra azul-clara captou a luz do sol.
— Ainda assim — comentei, olhando em volta —, são belos aposentos.
— São bons quando você está aqui.