Minha taxa escolar foi fixada em nove crimos e cinco.
Melhor do que os 10 crimos que o Monet havia previsto, porém mais do que eu tinha na bolsa. Eu teria até a hora do almoço do dia seguinte para acertar o pagamento com o tesoureiro, ou seria obrigado a perder um período inteiro.
Ter que adiar meus estudos não seria uma tragédia. Mas somente os estudantes tinham acesso aos recursos da Academia, como o equipamento da Artificiaria. Isso significava que eu não só não poderia pagar minha taxa, como também seria impedido de trabalhar na oficina do Kelvin, o único emprego em que eu podia ter esperança de ganhar dinheiro suficiente para minha taxa escolar.
Parei no Estoque e o Jaxon sorriu quando me aproximei da janela aberta.
— Acabei de vender as suas lamparinas, hoje de manhã — informou. — Conseguimos empurrá-las por um dinheirinho extra, porque eram as últimas que restavam.
Ele folheou o livro de registro até encontrar a página apropriada.
— Os seus 60 por cento dão quatro crimos e oito iyanes. Tirando o material e os trabalhos avulsos que você usou... — correu o dedo pela página — Sobraram dois crimos, três iyanes e oito ocros.
Jaxon fez uma anotação no registro e escreveu um recibo para mim. Dobrei cuidadosamente o papel e o guardei na bolsa. Não tinha o peso gratificante das moedas, mas elevou o meu total para mais de seis talentos. Tanto dinheiro, mas ainda não era suficiente.
Se eu não tivesse perdido as estribeiras com o Hilme, a minha taxa escolar poderia ter sido bem mais baixa. Eu poderia ter estudado mais ou ganhado mais dinheiro, se não tivesse sido forçado a me esconder no quarto por quase dois dias inteiros, chorando e me enfurecendo, com aquele gosto de ameixa na boca.
Ocorreu-me uma ideia.
— Acho que eu deveria começar alguma coisa nova — comentei, com ar displicente. — Vou precisar de um cadinho pequeno. Três onças de estanho. Duas onças de bronze. Quatro onças de prata. Um rolo de arame fino de ouro. Cobre em...
— Espere um segundo — Jaxon me interrompeu. Correu de novo o dedo ao longo do meu nome no livro de registro. — Não tenho autorização para você tirar ouro nem prata — disse-me. Levantou a cabeça e perguntou: — Está errado?
Hesitei, não querendo mentir.
— Eu não sabia que precisava de autorização.
Jaxon deu-me um sorriso compreensivo.
— Você não é o primeiro a tentar uma coisa dessas — disse. — Taxa escolar pesada?
Confirmei com um aceno de cabeça.
Ele fez uma careta solidária.
— Lamento. O Kelvin sabe que o Estoque poderia transformar-se numa barraca de agiota se ele não tomar cuidado. — Fechou o registro e acrescentou: — Você vai ter que ir à casa de penhores, como todo mundo.
Levantei as mãos, mostrando-lhe as palmas e o dorso, para frisar a ausência de joias.
Jaxon se encolheu.
— É duro. Eu conheço um agiota decente no Paço da Prata, que só cobra 10 por cento ao mês. Ainda é como ter os dentes arrancados, mas é melhor que a maioria.
Balancei a cabeça e dei um suspiro. O Paço da Prata era onde os agiotas filiados à guilda tinham suas lojas. Eles não me dariam nem as horas.
— Com certeza é melhor do que arranjei no passado — falei.
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Refleti sobre a situação enquanto caminhava para Torrente, com o peso familiar do alaúde apoiado num ombro.
Eu estava num aperto, mas não dos terríveis. Nenhum agiota da guilda confraria dinheiro a um Therion órfão e sem garantias, no entanto eu poderia pedi-lo emprestado a Devi. Mesmo assim, gostaria de não ter chegado a esse ponto. Não só a taxa de juros dela era extorsiva, como eu me preocupava com os favores que ela exigiria de mim se algum dia eu deixasse de pagar o empréstimo. Duvidava que fossem pequenos. Ou fáceis. Ou inteiramente legais.
Eram esses os meandros de meus pensamentos quando cruzei a Ponte de Pedra. Parei na loja de um boticário e segui caminho para a Homem Esguio.
Ao abrir a porta, vi que se tratava de uma pousada. Não havia um salão comum onde as pessoas pudessem reunir-se e beber. Em vez dele, havia uma pequena sala de estar, ricamente decorada, inclusive com um porteiro bem-vestido que me olhou com ar de reprovação, se não de franca antipatia.
— Em que posso ajudá-lo, meu jovem senhor? — perguntou-me, quando cruzava a porta.
— Venho fazer uma visita a uma jovem senhora — respondi. — Pelo nome de Alicent.
Ele balançou a cabeça.
— Vou ver se ela está.
— Não se incomode — disse-lhe, dirigindo-me à escada. — Ela está me esperando.
O homem bloqueou minha passagem.
— Receio que isso não seja possível. Mas terei prazer em ver se a jovem está.
Estendeu a mão. Olhei para ela.
— Seu cartão de visita? — pediu. — Para que eu possa apresentá-lo à jovem senhora?
— Como é que você pode lhe dar o meu cartão se não tem certeza de que ela está?
O porteiro tornou a abrir seu sorriso. Era gentil, educado e tão contundentemente desagradável, que o observei com especial interesse, gravando-o na memória. Um sorriso como aquele era uma obra de arte. Havendo crescido no palco, eu era capaz de apreciá-lo em diversos níveis. Um sorriso assim era como uma faca, em certos ambientes sociais, e eu poderia necessitar dele um dia.
— Ah! — exclamou o porteiro. — A dama está — declarou, com certa ênfase. — Mas isso não significa, necessariamente, que esteja para o senhor.
— Pode dizer-lhe que o Vanitas veio visitá-la — falei, mais achando graça que me sentindo ofendido. — Eu espero.
Não tive de esperar muito. O porteiro desceu a escada com uma expressão irritada, como se houvesse ansiado por me jogar no olho da rua.
— Por aqui — disse-me.
Segui-o pela escada. O homem abriu uma porta e eu passei por ele com o que torci para ser uma dose irritante de autoconfiança desdenhosa.
Era uma sala de visitas com janelas largas, que deixavam entrar o sol do fim da tarde, ampla o bastante para parecer espaçosa, mesmo com as cadeiras e os sofás espalhados. Havia um saltério de martelos apoiado na parede oposta e um dos cantos da sala era inteiramente ocupado por uma enorme harpa sereniana.
Alys estava de pé no centro do cômodo, com um vestido de veludo verde. Tinha o cabelo penteado de modo a exibir favoravelmente o seu pescoço elegante, revelando os brincos de gotas de esmeralda e o colar que formava um conjunto com eles.
Ela conversava com um rapaz que era... a melhor palavra em que consigo pensar é "bonito", Tinha um rosto meigo e escanhoado, com olhos grandes e escuros.
Sua aparência era a de um jovem nobre que se encontrava numa maré de azar havia tempo de mais para que isso fosse algo temporário. Suas roupas eram finas, porém amarrotadas. O cabelo preto era cortado num estilo que obviamente pretendia ser encaracolado, mas não recebera cuidados nos últimos tempos. Os olhos eram fundos, como se ele não viesse dormindo bem.
Alys me estendeu as duas mãos e disse:
— Vanitas, venha conhecer o Lykhaos.
— É um prazer conhecê-lo, Vanitas — disse o rapaz. — A Alicent me falou muito a seu respeito. Você é uma espécie de... como se diz? Mago?
— Arcanista, na verdade — retruquei, com toda a cortesia possível. — Mago traz à mente um excesso de tolices de livros de histórias. As pessoas esperam que usemos mantos negros e atiremos entranhas de aves por todos os lados. E você?
— O Lykhaos é poeta — disse Alys. — E dos bons, embora o negue.
— Nego, sim — admitiu ele e seu sorriso desmanchou-se. — Preciso ir. Tenho um encontro com pessoas que não devo deixar esperando.
Deu um beijo no rosto de Alys, apertou minha mão calorosamente e se foi.
Alys observou a porta fechar-se atrás dele e comentou:
— É uma doçura de menino.
— Você diz isso como se o lamentasse.
— Se ele fosse um pouquinho menos meigo, talvez conseguisse guardar duas ideias na cabeça ao mesmo tempo. Talvez elas se roçassem e provocassem uma centelha. Até uma fumacinha já seria boa, porque aí, ao menos pareceria estar acontecendo alguma coisa lá dentro.
Ela deu um suspiro.
— Ele é mesmo tão obtuso assim? — perguntei.
Alys balançou a cabeça.
— Não. É apenas crédulo. Não tem uma gota de malícia e não tem feito outra coisa senão escolhas ruins desde que chegou aqui, um mês atrás.
Enfiei a mão em minha capa e tirei um par de trouxinhas embrulhadas em tecido, uma branca e outra azul.
— Eu lhe trouxe um presente.
Alys estendeu a mão para pegá-las, com ar levemente intrigado.
O que me parecera uma ótima ideia algumas horas antes nesse momento se afigurou uma grande tolice.
— São para os seus pulmões — expliquei, subitamente sem jeito. — Sei que às vezes você tem problemas.
Ela inclinou a cabeça de lado.
— E como sabe disso, tenha a bondade de me dizer?
— Você o mencionou quando estávamos em Nebron — respondi. — Andei fazendo umas pesquisas. — Apontei o dedo: — Com aquele você pode fazer um chá: ferrão-de-pluma, urtigão, lohatma... — Apontei para o outro: — Desse você ferve as folhas num pouco d'água e aspira o vapor que sobe.
Alys olhou para um pacotinho e para o outro.
— Escrevi instruções aí dentro, num pedaço de papel — acrescentei. — O azul é o que você deve ferver para aspirar o vapor. Azul de água, percebe?
Ela olhou para mim.
— Também não se faz chá com água?
Pisquei os olhos, enrubesci e comecei a dizer alguma coisa, mas Alys riu e balançou a cabeça:
— Estou brincando com você — disse-me, em tom gentil. — Obrigada. Essa é a coisa mais meiga que já fizeram por mim em muito tempo.
Foi até uma cômoda e guardou cuidadosamente as duas trouxinhas numa caixa de madeira entalhada.
— Você parece estar se saindo muito bem — comentei, com um gesto para a sala bem decorada.
Alys deu de ombros e correu um olhar indiferente pelo aposento.
— O Lykhaos é que vem-se saindo muito bem — disse. — Eu fico apenas no reflexo da luz dele.
Meneei a cabeça, compreensivo.
— Achei que talvez você tivesse encontrado um mecenas.
— Não é nada tão formal assim. O Lykhaos e eu temos andado juntos por aí, como dizem em Serenia, e ele tem-me ensinado um pouco de harpa. — Ela apontou com a cabeça o lugar do enorme instrumento que avultava num canto.
— Importa-se de me mostrar o que aprendeu? — pedi.
Alys balaçou a cabeça, embaraçada. O cabelo escorregou-lhe pelos ombros com esse movimento.
— Ainda não sou muito boa.
— Eu refreio a minha ânsia natural de aplaudir e assobiar — disse-lhe, em tom gentil.
Alys deu uma risada.
— Ótimo. Só um pouquinho.
Colocou-se atrás da harpa e puxou um banco alto em que se encostar. Depois, levou as mãos às cordas, parou por um bom momento e começou a tocar.
A melodia era uma variação de "A raposa-guia".
Sorri.
A interpretação dela foi lenta, quase majestosa. Muita gente pensa que a velocidade é a marca do bom músico. É compreensível. O que Maria fizera na Foles tinha sido admirável. Mas a rapidez com que se consegue dedilhar as notas é a menor parte da música. O verdadeiro segredo é o tempo certo.
É como contar uma piada. Qualquer um pode se lembrar das palavras. Qualquer um é capaz de repeti-las. Mas fazer alguém rir exige mais do que isso. Contar uma piada mais depressa não a torna mais engraçada. Como acontece com muitas coisas, a hesitação é melhor que a pressa.
É por isso que existem tão poucos músicos de verdade. Uma porção de gente é capaz de cantar ou arrancar uma melodia de um violino, como se fosse uma serra. Uma caixa de música pode tocar impecavelmente uma canção, repetidas vezes. Mas conhecer as notas não basta. É preciso saber como tocá-las. A velocidade vem com o tempo e a prática, mas ritmo, a pessoa nasce com ele. Ou o tem, ou não o tem.
Alys o tinha. Moveu-se lentamente pela melodia, mas não se arrastou. Tocou-a com o vagar de um beijo sensual. Não que eu soubesse algo sobre beijos, naquele ponto da minha vida. Mas, enquanto ela abraçava a harpa, com os olhos semicerrados de concentração e os lábios levemente franzidos, eu soube que um dia desejaria ser beijado com aquele cuidado lento e deliberado.
E ela era linda. Suponho que não deva causar surpresa eu ter uma queda particular por mulheres que trazem a música dentro de si. Mas, quando ela tocou, vi-a pela primeira vez nesse dia. Até então, estivera distraído com a mudança do seu cabelo, o corte do vestido. Mas, quando ela tocou, tudo isso desapareceu da visão.
Estou divagando. Basta dizer que ela foi impressionante, embora, obviamente, ainda estivesse aprendendo. Errou algumas notas, porém não se assustou nem se esquivou delas. Como dizem, o joalheiro conhece a pedra preciosa não lapidada.
E eu sou. E ela era. E muito.