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Chapter 156 - CLV. RAVIA

Meu cabelo ainda estava molhado quando atravessei um corredor curto e subi a escada para o palco de um teatro vazio. Como sempre, o salão estava escuro, exceto pela imensa mesa em forma de meia-lua. Desloquei-me até a borda da luz e aguardei educadamente.

O Reitor fez sinal para eu me aproximar e fui até o centro da mesa, estendendo a mão para lhe entregar minha ficha do sorteio. Em seguida, dei um passo atrás e parei no círculo de luz levemente mais forte, entre as duas pontas projetadas da mesa.

Os nove professores me olharam. Eu gostaria de dizer que tinham uma aparência dramática, como corvos pousados numa cerca, ou algo parecido. Mas, embora todos estivessem usando suas togas formais, eles eram diferentes demais para se assemelharem a uma coleção do que quer que fosse.

Além disso, pude ver neles as marcas do cansaço. Só então me ocorreu que, por mais que os estudantes detestassem o exame de admissão, provavelmente ele também não era nenhum mar de rosas para os professores.

— Vanitas, filho de Meridan — disse o Reitor, num tom formal. — A'scor — acrescentou. Fez um gesto para a ponta na extrema direita da mesa. — Fisiopata-Mor?

Armin baixou os olhos para mim, com um ar de avô no rosto, por trás dos óculos de aro redondo.

— Quais são as propriedades medicinais da manko? — perguntou.

— Anestésico potente — respondi. — Catatônico potente. Purgativo potencial — hesitei. — Tem também uma batelada de efeitos secundários complicadores. Devo listar todos?

Armin balançou a cabeça.

— Um paciente chega à Iátrica e se queixa de dores articulares e dificuldade para respirar. Tem a boca seca e diz estar sentindo um gosto adocicado. Queixa-se de calafrios, mas, na verdade, está suado e febril. Qual é o seu diagnóstico?

Respirei fundo, hesitando.

— Não faço diagnósticos na Iátrica, Mestre Armin. Eu chamaria um dos seus A'vór para fazê-lo.

Ele me deu um sorriso, os olhos franzindo-se nas extremidades.

— Correto — disse. — Mas, apenas a título de discussão, o que você acha que estaria errado?

— O paciente é estudante?

Armin ergueu uma sobrancelha.

— O que isso tem a ver com o preço da manteiga?

— Se a pessoa trabalhar na Ficiaria, pode ser o resfriado dos fundidores — respondi. Armin inclinou ligeiramente a cabeça e eu acrescentei: — Na Ficiaria é possível arranjar toda sorte de envenenamentos por metais pesados. Por aqui isso é raro, porque os alunos são bem treinados, mas qualquer um que trabalhe com bronze quente pode inalar vapores suficientes para se matar se não tomar os cuidados adequados.

Observei Kelvin assentindo com a cabeça enquanto eu falava e fiquei contente por não ter que admitir que a única razão de eu saber disso era que eu mesmo tinha-me arranjado um caso desses, um mês atrás.

Armin fez um suspiro pensativo, depois apontou para o outro lado da mesa.

— Aritmético-Mor?

Brandon estava sentado na extremidade esquerda da mesa.

— Supondo que o cambista leve 4 por cento, quantos lumens é possível obter com um crimo?

Ele formulou a pergunta sem levantar os olhos dos papéis à sua frente.

— Que tipo de lumen, Mestre Brandon?

Ele olhou para cima, de cenho franzido.

— Ainda estamos na República, se me lembro corretamente.

Fiz os cálculos de cabeça, trabalhando com base nas cifras dos livros que ele havia separado no Arquivo. Não eram as taxas de câmbio verdadeiras que se obteriam de um agiota, e sim as taxas de câmbio oficiais usadas pelos governos e financistas, para disporem de uma base comum com que mentir uns para os outros.

— Em lumens de ferro. Trezentos e cinquenta — falei e acrescentei: — Um. E meio.

Brandon baixou os olhos para os papéis antes mesmo de eu terminar de falar.

— A sua bússola diz ouro a 220 pontos, platina a 112 pontos e cobalto a 32. Onde você está?

Fiquei sem resposta.

A orientação por bússolas trimetálicas exigia mapas detalhados e uma triangulação trabalhosa. Só era praticada por comandantes de navios e cartógrafos e eles usavam mapas minuciosos para fazer seus cálculos. Eu só tinha posto os olhos numa bússola trimetálica duas vezes na vida.

Ou essa era uma pergunta listada num dos livros selecionados para estudo pelo Brandon ou fora concebida de propósito para travar minhas rodas. Considerando-se que Brandon e Hilme eram amigos, deduzi que fosse a segunda hipótese.

Fechei os olhos, abri mentalmente um mapa do mundo civilizado e dei meu melhor palpite:

— Em Notrean? Talvez em algum lugar de Cealdar? — indaguei. Abri os olhos. — Sinceramente, não faço ideia.

Brandon fez uma marca num pedaço de papel.

— Nomeador-Mor — disse, sem levantar os olhos.

Elohkar me deu um sorriso malicioso e entendido e, de repente, tive medo de que pudesse revelar minha participação no que ele fizera nos aposentos de Hilme naquela manhã.

Em vez disso, ele levantou três dedos, com ar dramático:

— Você tem três cartas de espadas na mão. E já foram jogadas cinco espadas — disse. Juntou os dedos em ponta e me olhou com ar sério. — Quantas espadas dá isso?

— Oito — respondi.

Os outros professores se remexeram um pouco nas cadeiras. Armin deu um suspiro. Kelvin deixou cair os ombros. Hilme e Brandon chegaram a ponto de revirar os olhos um para o outro. No conjunto, todos deram a impressão de uma exasperação resignada.

Elohkar fechou a cara para eles.

— O que foi? — perguntou, endurecendo a voz. — Vocês querem que eu leve esta palhaçada mais a sério? Querem que eu lhe faça perguntas que só um nomeador seria capaz de responder?

Diante disso, os outros professores ficaram quietos, com ar constrangido e se recusando a encará-lo. Hilme foi a exceção e o fuzilou com os olhos.

— Ótimo — disse Elohkar, virando-se para mim outra vez.

Seus olhos estavam escuros e havia uma estranha ressonância em sua voz. Ela não era alta, mas, quando ele falou, pareceu encher todo o prédio. Não restou espaço para nenhum outro som:

Para onde vai a Lua — perguntou, em tom sinistro — quando não está mais no nosso céu?

O salão pareceu anormalmente silencioso quando ele parou de falar. Como se sua voz houvesse deixado um buraco no mundo.

Esperei para ver se haveria algo mais na pergunta.

— Não faço a menor ideia — admiti. Depois da voz de Elohkar, a minha pareceu fina e insubstancial.

Ele deu de ombros, depois fez um gesto gracioso para o outro lado da mesa:

— Simpatista-Mor.

Lal Mirch era o único que parecia realmente à vontade em seu traje formal. Como sempre, sua barba negra e o rosto magro me fizeram pensar no mago maléfico de tantas peças aturianas ordinárias. Ele me deu uma olhadinha solidária e disse, com ar displicente:

— Que tal a Conexão da Atração Galvânica Linear?

Enunciei-a sem dificuldade.

Ele meneou a cabeça e indagou:

— Qual é a distância da Desintegração Insuperável do Ferro?

— Oito quilômetros, 850 metros — respondi, dando a resposta dos manuais, apesar de fazer algumas objeções ao termo "insuperável". Embora fosse verdade que deslocar qualquer quantidade significativa de energia por mais de 9,5 quilômetros fosse estatisticamente impossível, ainda assim se podia usar a simpatia para cobrir distâncias muito maiores com a vara rabdomântica.

— Depois que uma onça de água começa a ferver, quanto calor será preciso para que ela ferva até evaporar completamente?

Vasculhei tudo o que consegui lembrar das tabelas de evaporação com que havia trabalhado na Ficiaria.

— Cento e oito taumas — respondi, com mais segurança do que realmente sentia.

— Para mim está bom — disse Lal. - Alquimista-Mor?

Mondrag deu um aceno de descaso, com a mão salpicada de manchas.

— Passo.

— Ele é bom nas perguntas sobre o naipe de espadas — sugeriu Elohkar.

Mondrag franziu o sobrolho e disse:

— Arquivista-Mor.

Loran me olhou, com expressão impassível no rosto comprido.

— Quais são as regras do Arquivo?

Corei ao ouvir isso e baixei os olhos.

— Andar silenciosamente — respondi. — Respeitar os livros. Obedecer aos escribas. Nada de água. Nada de alimentos. — Engoli o seco. — Nada de fogo.

Loran assentiu com a cabeça. Nada em seu tom ou seu porte indicou qualquer tipo de reprovação, mas isso só piorou as coisas. Seus olhos se deslocaram pela mesa.

— Artífice-Mor.

Praguejei por dentro. Na última onzena, eu tinha lido todos os seis livros selecionados por Mestre Loran para serem estudados pelos A'scores. Só A queda do império, de Fatalmi Reiss, tinha-me tomado 10 horas. Havia poucas coisas que eu desejava mais do que ter acesso ao Arquivo e tivera a esperança aflitiva de impressionar Mestre Loran, respondendo a qualquer pergunta que ele pensasse em formular.

Mas não adiantava. Virei-me para Kelvin.

— Rendimento Galvânico do Cobre — trovejou por entre a barba o enorme professor ursino.

Dei a resposta até a quinta casa decimal. Eu tivera que usá-lo ao fazer meus cálculos para as lamparinas de convés.

— Coeficiente Condutor do Gálio.

Esse eu tinha precisado saber para lubrificar os emissores das lâmpadas. Estaria Kelvin me oferecendo perguntas fáceis? Dei a resposta.

— Bom — disse Kelvin. — Retórico-Mor.

Respirei fundo ao me virar de frente para Hilme. Fu tinha lido três livros dele, embora sentisse um nítido desprezo pela retórica e pela filosofia inútil.

Hilme fechou a cara para mim, seu rosto redondo parecendo uma Lua furiosa.

— Você pôs fogo nos meus aposentos, seu raviazinho bastardo?

A crueza da pergunta me pegou inteiramente desprevenido. Eu estava preparado para questões de uma dificuldade impossível, traiçoeiras, ou que ele pudesse distorcer para fazer com que qualquer resposta que eu desse parecesse errada.

Mas essa acusação súbita me pegou completamente desprevenido.

Ravia é um termo pelo qual nutro um desprezo especial. Um rebuliço de emoções ferveu dentro de mim e me trouxe à boca o gosto repentino de ameixa. Enquanto parte de mim ainda considerava a maneira mais gentil de responder, descobri que eu já estava falando:

— Não pus fogo nos seus aposentos — respondi, com honestidade. — Mas gostaria de ter posto. E gostaria que o senhor estivesse lá dentro, em sono profundo, quando o fogo começasse.

A expressão de Hilme passou da raiva para a perplexidade.

— A'scor Vanitas! — exclamou o Reitor. — Você vai manter um linguajar civilizado, senão eu mesmo o submeterei à acusação de Conduta Imprópria!

O gosto de ameixa desapareceu tão depressa quanto havia surgido, deixando-me meio zonzo e transpirando de medo e vergonha.

— Peço desculpas, senhor Reitor — apressei-me a dizer, baixando os olhos para os pés. — Falei por raiva. Ravia é um termo que a minha gente considera particularmente ofensivo. O uso dele faz pouco da matança sistemática de milhares de membros dos Therion.

Uma ruga de curiosidade surgiu entre as sobrancelhas do Reitor.

— Admito não conhecer essa etimologia, em particular — disse ele, pensativo. — Acho que farei dela a minha pergunta.

— Espere aí — interrompeu Hilme. — Eu não terminei.

— Terminou, sim — disse o Reitor, com voz dura e firme. — Você é tão malcomportado quanto o garoto e com menos justificativa. Demonstrou que não sabe se conduzir com profissionalismo, portanto feche a matraca e se considere com sorte por eu não exigir uma censura oficial.

Hilme ficou branco de raiva, mas mordeu a língua.

O Reitor virou-se para mim:

— Linguista-Mor — anunciou-se formalmente. — A'scor Vanitas, qual é a etimologia da palavra ravia?

— Ela vem dos expurgos instigados pelo imperador Alciyon — respondi. — Ele expediu uma proclamação dizendo que qualquer membro da ralé viajante das estradas estava sujeito a multas, detenção ou deportação sem julgamento. A expressão foi abreviada por ravia por ênclise metaplásica.

Ele ergueu uma sobrancelha ao ouvir isso.

— Foi mesmo?

Fiz que sim.

— Mas imagino que também haja uma ligação com o termo ravialento, que se refere à aparência maltrapilha das trupes de artistas em situação de aperto.

O Reitor fez um aceno formal com a cabeça.

— Obrigado, A'scor Vanitas. Vá sentar-se enquanto conferenciamos.