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Chapter 152 - CLI. CLAREZA

Ele levou apenas cinco minutos. Provavelmente, foi melhor assim.

Ouvi uma batida na porta.

— Sou eu — sua voz atravessou a madeira. — Está tudo bem aí?

— Sabe o que é estranho? — perguntei, ainda pela porta fechada. — Tentei pensar em algo engraçado para fazer enquanto você estava fora, mas não consegui — continuei, lançando um olhar pelo quarto. — Acho que isso significa que o humor está enraizado na transgressão social. Não consigo transgredir porque não sei o que seria socialmente inaceitável. Para mim, tudo parece igual.

— Talvez tenha razão — ele concordou. E então perguntou: — Mas, mesmo assim, fez alguma coisa?

— Não. Resolvi ser bonzinho. Você encontrou Faela?

— Encontrei. Ela está aqui, mas, antes de entrarmos, você tem que prometer que não fará nada sem me consultar primeiro, combinado?

Soltei uma risada suave.

— Tudo bem, só não me mande fazer coisas idiotas na frente dela.

— Prometo — disse Leif. — Por que não se senta? Por precaução.

— Já estou sentado.

Leif abriu a porta. Pude ver Faela espiando sobre seu ombro.

— Oi, Faela — falei. — Preciso trocar de horário com você.

— Primeiro — disse Leif —, você precisa vestir a camisa. Isso é mais ou menos dois.

— Ah, desculpe. Estava com calor.

— Você podia ter aberto a janela.

— Achei mais seguro limitar minhas interações com o mundo externo — retruquei.

Leif ergueu uma sobrancelha.

— Na verdade, essa é uma ótima ideia. Só te guiou um pouco na direção errada desta vez.

— Ele está falando sério? — perguntou Faela, com surpresa.

— Completamente sério — respondeu Leif. — Posso ser franco? Acho que não é seguro você entrar.

Vesti a camisa.

— Pronto — informei. — Se quiser, até fico sentado em cima das mãos para você se sentir melhor.

E foi exatamente o que fiz, prendendo-as sob as pernas.

Leif deixou Faela entrar e fechou a porta.

— Faela, você é simplesmente linda — falei. — Eu lhe daria todo o dinheiro que tenho para vê-la nua por dois minutos. Eu daria tudo. Exceto meu alaúde.

É difícil dizer qual dos dois ficou mais vermelho de vergonha. Acho que foi o Leif.

— Eu não deveria ter dito isso, não é?

— Não — respondeu Leif, tentando manter a compostura. — Isso é mais ou menos cinco.

— Mas não faz sentido — retruquei. — Mulheres aparecem nuas em quadros. As pessoas compram esses quadros, não? Elas posam para eles.

Leif balançou a cabeça.

— É verdade, mas, ainda assim... Apenas fique quieto por um minuto, está bem?

Assenti.

— Não consigo acreditar muito nisso — disse Faela, ainda ruborizada. — Parece que vocês estão pregando uma peça sofisticada.

— Quem me dera fosse isso — respondeu Leif. — Essa situação é perigosamente séria.

— Como ele lembra dos nus em pinturas, mas esquece que precisa usar camisa em público? — perguntou Faela a Leif, sem tirar os olhos de mim.

— Não me pareceu importante — respondi. — Tirei a camisa quando fui açoitado, e aquilo foi em público. Parece estranho me meterem em encrenca por isso.

— E você sabe o que aconteceria se tentasse esfaquear Drazno? — Leif perguntou.

Pensei por um segundo. Era como tentar lembrar o que comi no café da manhã, um mês atrás.

— Haveria um julgamento, suponho — disse, devagar. — E as pessoas me pagariam bebidas.

Faela abafou uma risada atrás da mão.

— E o que é pior: roubar uma torta ou matar Drazno? — perguntou Leif.

Pensei seriamente por um minuto.

— Torta de carne ou de frutas?

— Uau! — exclamou Faela, sem fôlego. — Isso é... quase arrepiante.

Leif sacudiu a cabeça, resignado.

— Esse é o efeito de um produto alquímico assustador, uma variação de um sedativo chamado poda de ameixa. Não é preciso ingerir, ele é absorvido pela pele.

— Como sabe tanto sobre isso? — perguntou Faela.

— O Mondrag fala sobre isso em todas as aulas de alquimia — Leif respondeu com um sorriso tímido. — Já ouvi a história umas 10 vezes. É o exemplo favorito que ele usa de como se pode abusar da alquimia. Um alquimista o usou para destruir a vida de várias autoridades do governo em Aturia, uns 50 anos atrás. Ele só foi apanhado porque uma condessa enlouqueceu completamente no meio de um casamento, matou uma dúzia de pessoas e... — Leif parou, balançando a cabeça. — Enfim. Foi terrível. Tão terrível que a amante do alquimista o entregou aos guardas.

— Ele teve o que merecia? — Faela perguntou.

— E mais um pouco — Leif respondeu, sombrio. — A questão é que a droga afeta cada um de maneira um pouquinho diferente. Não é uma simples redução das inibições. Há uma amplificação das emoções. Uma liberação de desejos ocultos, combinada com um tipo estranho de memória seletiva, quase uma amnésia moral. 

— Não estou me sentindo mal — falei. — Aliás, estou me sentindo muito bem. Mas fico preocupado com o exame de admissão.

— Está vendo? — Leif apontou. — Ele lembra do exame. Isso é importante para ele. Mas outras coisas... simplesmente desaparecem.

Faela me olhou, nervosa.

— Isso tem cura? Não devíamos levá-lo à Iátrica?

— Acho que não — Leif respondeu, tenso. — Eles poderiam tentar um purgativo, mas não é como se houvesse uma droga agindo no organismo dele. A alquimia não funciona assim. Ele está sob a influência de princípios sem restrições. Não dá para expelir isso do jeito que tentaríamos nos livrar do mercúrio ou do ophalo.

— Purgativo não soa nada divertido — acrescentei. — Se minha opinião conta.

— Eles poderiam achar que ele enlouqueceu pela tensão dos exames — Leif alertou. — E colocá-lo no Refúgio até terem certeza.

Levantei-me, cerrando os punhos.

— Prefiro ser feito em pedaços no inferno do que me enfiarem no Refúgio — declarei, com fúria. — Nem mesmo por uma hora. Nem por um minuto. 

Leif empalideceu, levantando as mãos defensivamente, mas sua voz era firme:

— Vanitas, estou ordenando três vezes. Pare.

Parei. Faela me observava, assustada.

Leif continuou, em tom firme:

— Vanitas, estou ordenando três vezes: sente-se.

Sentei.

De pé atrás dele, Faela olhou para Leif, surpresa.

— Obrigado — disse Leif, relaxando. — Concordo, a Iátrica não é o melhor lugar para você. Podemos ficar aqui até isso passar.

— Isso parece melhor — concordei.

— Mesmo que as coisas corressem bem na Iátrica — acrescentou Leif —, imagino que você ficasse mais inclinado que de hábito a dizer o que pensa. — Ele deu um sorrisinho irônico. — Os segredos são a pedra angular da civilização e eu sei que você tem um número um pouco maior que a maioria das pessoas.

— Acho que eu não tenho segredo nenhum — contrapus.

Leif e Faela caíram na gargalhada ao mesmo tempo.

— Acho que você acabou de comprovar a afirmação dele — disse Faela. — Eu sei que você tem pelo menos alguns.

— E eu também — disse Leif.

— Você é o meu parâmetro — comentei e dei de ombros. Depois, sorri para Faela e peguei minha bolsa.

Leif balançou a cabeça para mim.

— Não, não, não. Eu já lhe disse. Vê-la nua seria a pior coisa do mundo neste momento.

Os olhos de Faela se estreitaram um pouco diante disso.

— Qual é o problema? — indaguei. — Você tem medo de que eu a derrube no chão e a violente? — perguntei, rindo.

Leif me olhou.

— E você não faria isso?

— É claro que não.

Ele olhou para Faela e de novo para mim.

— Pode me dizer por quê? — perguntou, com ar curioso.

Pensei no assunto.

— É porque... — parei de falar e balancei a cabeça. — É... eu só não posso. Sei que não posso comer pedras nem atravessar paredes. É a mesma coisa.

Concentrei-me nisso por um segundo e comecei a ficar tonto. Pus uma das mãos nos olhos e tentei ignorar a vertigem repentina.

— Por favor, me diga que eu tenho razão nisso — pedi, subitamente assustado. — Eu não posso comer pedras, posso?

— Você tem razão — respondeu Faela depressa. — Não pode.

Parei de tentar vasculhar o interior da cabeça em busca de respostas e a estranha vertigem desapareceu.

Leif me observava atentamente.

— Eu gostaria de saber o que significou isso — comentou ele.

— Eu tenho uma boa ideia — murmurou Faela baixinho.

Tirei do bolso a ficha de marfim do exame de admissão.

— Eu só estava querendo trocar — disse-lhe. — A menos que você queira me deixar vê-la nua. — Levantei a bolsa com a outra mão e olhei nos olhos de Faela. — O Leif diz que é errado, mas ele é um idiota com as mulheres. A minha cabeça pode não estar tão bem atarraxada quanto eu gostaria, mas disso eu me lembro com clareza.