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Chapter 153 - CLII. SEGURO

Eram quatro horas quando minhas inibições começaram a voltar e mais duas se passaram até se instalarem com firmeza.

Leif passou o dia inteiro comigo, paciente como um padre, explicando que não, eu não devia ir comprar uma garrafa de conhaque para nós. Não, eu não devia chutar o cachorro que estava latindo do outro lado da rua. Não, eu não devia ir a Torrente procurar a Alys. Não. Três vezes não.

Quando o sol se pôs, eu tinha voltado a ser meu eu regular e semimoral. O Leif me submeteu a um extenso questionário, antes de me levar de volta para o meu quarto na Grilo, de onde me fez jurar pelo leite materno que eu não sairia até de manhã. Jurei.

Mas nem tudo estava bem comigo. Minhas emoções continuavam acaloradas, explodindo diante de qualquer coisinha. Pior, minha memória não tinha simplesmente voltado ao normal: voltara com um entusiasmo vívido e incontrolável.

Não tinha sido tão ruim assim quando eu estava com o Leif. A presença dele era uma distração agradável. Mas, sozinho em meu quartinho do sótão na taberna do Grilo, fiquei à mercê da minha memória. Foi como se a minha cabeça estivesse decidida a desembalar e examinar cada coisinha contundente e dolorosa que eu já tinha visto.

Talvez você pense que as piores lembranças eram as de quando minha trupe foi assassinada. De como voltei ao nosso acampamento e encontrei tudo em chamas. Do formato antinatural dos corpos dos meus pais à tênue luz do crepúsculo. Do cheiro de lona queimada e sangue e cabelos em fogo. Lembranças daqueles que os mataram. Do Sombraim. Do homem que falara comigo, rindo o tempo todo. Do Grim.

Essas eram lembranças ruins, mas, no correr dos anos, eu as havia tirado da memória e manipulado tantas vezes que mal lhes restava alguma aresta cortante. Eu me lembrava do tom e do timbre da voz de Xehanort com tanta clareza quanto dos de meu pai. Podia trazer à mente sem esforço o rosto do Grim. Seus dentes perfeitos, sorridentes. Seu cabelo branco e ondulado. Seus olhos, negros como gotas de tinta. Sua voz, cheia da friagem do inverno, dizendo: Os pais de alguém andaram cantando o tipo inteiramente errado de canção.

Talvez você pensasse que essas seriam as piores lembranças.

Mas estaria errado.

Não. As piores lembranças eram as da minha infância. O rolar e chacoalhar lento das viagens na carroça, meu pai segurando frouxamente as rédeas. Suas mãos fortes nos meus ombros, ensinando-me a me postar no palco para que meu corpo dissesse orgulhoso, triste ou tímido. Seus dedos ajustando os meus nas cordas do seu alaúde.

Minha mãe escovando meu cabelo. A sensação dos braços dela à minha volta. O encaixe perfeito da minha cabeça na curva do seu pescoço. O modo como eu me sentava, aninhado no colo dela, junto da fogueira, à noite, sonolento, feliz e seguro.

Eram essas as piores lembranças. Preciosas e perfeitas. Cortantes como estilhaços de vidro enchendo a boca. Fiquei deitado na cama, retesado num nó trêmulo, incapaz de dormir, incapaz de voltar o pensamento para outras coisas, incapaz de me impedir de recordar. De novo. E de novo. E de novo.

Então houve uma batida leve na minha janela. Um som tão miúdo que só o notei quando parou. Aí ouvi a janela abrir-se suavemente atrás de mim.

— Vanitas? — disse Hani, baixinho.

Trinquei os dentes contra os soluços e fiquei o mais imóvel que pude, torcendo para ela achar que eu estava dormindo e ir embora.

— Vanitas? — chamou ela outra vez. — Eu lhe trouxe...

Houve um momento de silêncio e então ela disse:

— Oh.

Ouvi um som leve atrás de mim. O Luar mostrou sua sombra pequenina na parede quando ela entrou pela janela. Senti a cama mexer-se quando Hani se acomodou nela.

Uma mão pequenina e fria roçou o lado do meu rosto.

— Está tudo bem — disse ela, baixinho. — Venha cá.

Comecei a chorar baixo e ela desfez gentilmente o nó apertado dentro de mim, até deitar minha cabeça em seu colo. E murmurou com a voz tristonha, afastando meu cabelo da testa, as mãos frias sobre meu rosto quente:

— Eu sei. Às vezes é ruim, não é?

Afagou meigamente o meu cabelo, o que só me fez chorar mais. Eu não conseguia me lembrar da última vez que alguém me tocara de forma amorosa.

— Eu sei — repetiu ela. — Você tem uma pedra no coração e há dias em que ela fica tão pesada que não há nada que se possa fazer. Mas você não precisa ficar sozinho por causa disso. Devia ter me procurado. Eu compreendo.

Meu corpo se contraiu e, de repente, o gosto de ameixa tornou a me inundar a boca.

— Eu sinto saudade dela — falei, antes de me dar conta de estar falando. Aí, mordi o lábio, antes que pudesse dizer mais alguma coisa. Trinquei os dentes e balancei furiosamente a cabeça, como um cavalo lutando contra as rédeas.

— Você pode falar — disse Hani, com ternura.

Tornei a balançar a cabeça, senti o gosto de ameixa e, de repente, as palavras jorraram de dentro de mim:

— Ela dizia que eu cantei antes de falar. Dizia que, quando eu era só um bebê, ela tinha o hábito de cantarolar quando me segurava no colo. Não era nada parecido com uma canção. Só uma melodia descendente. Apenas um som para me tranquilizar. E aí, um dia, ela disse que estava passeando comigo pelo acampamento e me ouviu ecoar seu som. Duas oitavas acima. Uma minúscula terça chilreada. Ela dizia que foi minha primeira canção. Nós a cantávamos de trás para a frente um para o outro. Durante anos.

Engasguei e trinquei os dentes.

— Pode falar — disse Hani, mansinho. — Tudo bem se você falar.

— Eu nunca mais vou vê-la.

Desengasguei-me. E aí comecei a chorar de verdade.

— Está tudo bem — disse Hani, mansinho. — Eu estou aqui. Você está a salvo.