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Chapter 145 - CXLIV. AMOR PT.1

Radagon conduziu-me ao palco e trouxe uma cadeira sem braços. Depois, foi até o proscênio conversar com a plateia. Estendi minha capa no encosto da cadeira enquanto as luzes começavam a esmaecer.

Coloquei o estojo surrado do alaúde no chão. Estava ainda mais acabado que eu. Tinha sido muito bom um dia, mas isso fora anos e quilômetros atrás. Agora, as alças de couro estavam rachadas e duras e, em alguns pontos, o corpo estava desgastado e fino como pergaminho. Restava apenas um dos fechos originais, uma delicada peça de prata lavrada. Os outros eu havia substituído pelo que pudesse arranjar e por isso agora o estojo exibia fechos descasados de latão brilhante e ferro opaco.

Dentro dele, porém, a história era completamente diferente. Ali achava-se a razão para eu estar batalhando para arranjar a taxa escolar do dia seguinte. Eu pechinchara muito por esse instrumento e, mesmo assim, ele me custara mais do que eu jamais tinha gastado com qualquer coisa na vida. Tanto dinheiro que eu não pudera bancar um estojo que o acomodasse como convinha e tivera de me ajeitar forrando de trapos o estojo antigo.

A madeira era cor de café escuro, de terra recém-revolvida. A curva da caixa tinha a perfeição de um quadril de mulher. Ele era todo eco abafado, com corda e dedilhado luminosos.

Meu alaúde.

Minha alma tangível.

Ouvi o que os poetas escrevem sobre as mulheres. Eles fazem rimas, desmancham-se em elogios e mentem. Já vi marinheiros no cais, fitando emudecidos o lento inflar das ondas. Já vi velhos soldados de coração empedernido lacrimejarem ao contemplar a bandeira de seu rei, desfraldada ao vento.

Escute o que digo: esses homens nada sabem do amor.

Você não o encontrará nas palavras dos poetas nem no olhar saudoso dos marinheiros. Se quiser saber do amor, olhe para as mãos de um artista de trupe produzindo sua música. Ele sabe.

Olhei para minha plateia enquanto ela se aquietava aos poucos. Leif me fez um aceno entusiasmado e eu lhe retribuí com um sorriso. Nesse momento, vi a cabeleira branca do conde Augus perto da grade do segundo andar. Ele conversava, compenetrado, com um casal bem-vestido, gesticulando na minha direção. Ainda fazendo campanha por mim, embora nós dois soubéssemos que era uma causa perdida.

Tirei o alaúde do estojo surrado e comecei a afiná-lo. Não era o melhor alaúde da Foles. Nem de longe. Seu braço era ligeiramente torto, mas não arqueado. Uma das cravelhas estava frouxa e tendia a alterar a afinação.

Dedilhei um acorde suave e aproximei o ouvido das cordas. Quando ergui os olhos, vi o rosto de Alys, claro como a lua. Ela me deu um sorriso agitado e remexeu os dedos abaixo do nível da mesa, onde seu fidalgo não podia enxergar.

Toquei gentilmente na cravelha solta, deslizando as mãos pela madeira cálida do alaúde. O verniz estava gasto e arranhado em alguns pontos. Ele fora maltratado em tempos idos, mas isso não o tornava menos encantador por baixo do polimento.

Portanto, sim, ele tinha suas falhas, mas que importância tem isso, quando se trata de questões do coração? Amamos aquilo que amamos. A razão não entra nisso. Sob muitos aspectos, o amor insensato é o mais verdadeiro. Qualquer um pode amar uma coisa por causa de. É tão fácil quanto pôr um lumen no bolso. Mas amar algo apesar de, conhecer suas falhas e amá-las também, isso é raro, puro e perfeito.

Radagon fez um gesto largo na minha direção. Houve breves aplausos, seguidos por um silêncio atento.

Tangi duas notas e senti a plateia inclinar-se para mim. Fiz vibrar uma corda, afinei-a ligeiramente e comecei a tocar. Antes de soar um punhado de notas, todos haviam reconhecido a melodia.

Era "A raposa-guia", uma canção assobiada pelos pastores há 10 mil anos. A mais simples das mais simples. Uma melodia que qualquer pessoa com um balde seria capaz de carregar. Um balde já seria demais, na verdade. Um par de mãos em concha daria muito bem. Uma única mão. Até dois dedos.

Era, para ser honesto, música popular.

Uma centena de canções fora escrita com a melodia de "A raposa-guia". Canções de amor e de guerra. Canções de humor, tragédia e desejo. Eu não me importava com nenhuma delas. Nada de letra. Apenas a música. Apenas a melodia.

Levantei os olhos e vi Lorde Queixo-de-Tijolo inclinar-se para Alys e fazer um gesto de descaso. Sorri, enquanto ia arrancando cuidadosamente a melodia das cordas do meu alaúde.

Não muito depois, porém, meu sorriso ficou tenso. O suor começou a brotar da minha testa. Debrucei-me sobre o alaúde, concentrado no que faziam minhas mãos. Meus dedos correram, depois dançaram, depois voaram.

Toquei forte como uma chuva de granizo, como um martelo batendo no metal. Toquei suave como o sol sobre o trigo de outono, leve como o farfalhar de uma só folha. Não demorou muito, comecei a ficar sem fôlego com o esforço. Meus lábios desenharam uma linha fina e meu rosto esbranquiçou.

Ao avançar pelo refrão, balancei a cabeça para afastar o cabelo dos olhos. O suor espirrou num arco, tamborilando na madeira do palco. Respirei com esforço, meu peito trabalhando como um fole, esfalfando-se como um cavalo açoitado.

A canção ecoou, cada nota luminosa e transparente. Quase tropecei num momento. O ritmo falhou por uma fração infinitesimal de tempo... mas de algum modo me recuperei, segui adiante e consegui terminar a última linha, tangendo as notas com doçura e leveza, embora meus dedos fossem um borrão cansado.

E então, quando era patente que eu não conseguiria continuar por nem mais um instante sequer, o último acorde ressoou no salão e eu arriei na cadeira, exausto.

A plateia irrompeu em aplausos estrondosos.

Mas não toda ela. Espalhadas pelo salão, algumas dezenas de pessoas caíram na gargalhada, umas esmurrando as mesas e batendo com os pés no chão, gritando quanto se divertiam.

Os aplausos crepitaram e morreram quase de imediato. Homens e mulheres pararam, com as mãos cristalizadas em meio às palmas, encarando os membros risonhos do público. Alguns pareciam zangados, outros, confusos. Muitos ficaram francamente ofendidos por mim e alguns resmungos raivosos começaram a percorrer o salão.

Antes que uma discussão séria pudesse surgir, toquei uma simples nota aguda e ergui a mão, atraindo de novo a atenção de todos para mim.

Eu ainda não havia acabado.

Nem de longe.

Era de Ullien: "Tintatatorninin." Duvido que você já tenha ouvido falar dela. É uma espécie de esquisitice, comparada a outras composições de Ullien. Primeiro, não tem letra. Segundo, embora seja uma canção encantadora, nem de longe é tão chamativa ou comovente quanto muitas de suas melodias mais conhecidas.

O mais importante, contudo, é que é perversamente difícil de tocar.

Meu pai se referia a ela como "a melhor canção já escrita para 15 dedos". Ele me fazia tocá-la quando eu estava ficando muito cheio de mim e, na sua opinião, precisava de humildade. Basta dizer que eu a praticava com bastante regularidade, às vezes mais de uma vez por dia.

E assim, toquei Tintatatorninin.

Reclinei-me na cadeira e cruzei os tornozelos, relaxando um pouco. Minhas mãos correram indolentes pelas cordas. Depois do primeiro refrão, inspirei e soltei um breve suspiro, como um garoto preso em casa num dia ensolarado. Meus olhos começaram a vagar a esmo pelo salão, entediados.

Sempre tocando, remexi-me no assento, tentando em vão encontrar uma posição cômoda. Franzi o cenho, fiquei de pé e olhei para a cadeira, como se de algum modo a culpa fosse dela. Depois, tornei a me sentar e me remexi, com uma expressão incomodada no rosto.

Enquanto isso, as 10 mil notas de Tintatatorninin dançaram e fizeram cabriolas. Detive-me um instante entre um acorde e outro, para me coçar com indolência atrás da orelha.

Mergulhei tão fundo em minha pequena encenação que cheguei mesmo a sentir um bocejo se aproximando. Soltei-o todo, tão largo e prolongado que as pessoas da primeira fila puderam contar meus dentes. Balancei a cabeça, como que para desanuviá-la, e sequei com a manga os olhos lacrimejantes.

Tintatatorninin ia tropeçando no ar. Harmonia enlouquecida e contraponto se entrelaçando e se afastando aos saltos. Tudo impecável, doce e suave como respirar. Quando chegou o final, reunindo uma dúzia de fios emaranhados de canção, não fiz nenhum floreio. Simplesmente parei e esfreguei um pouco os olhos.

Nada de crescendo. Nada de reverência.

Nada.

Estalei os dedos, distraído, e me inclinei para repor o alaúde no estojo.

Dessa vez, as risadas vieram primeiro. As mesmas pessoas de antes, assobiando e batendo nas mesas, duas vezes mais alto que antes. Minha galera: os músicos. Deixei minha expressão de tédio desaparecer e lhes dei um sorriso entendido.

Os aplausos seguiram-se um instante depois, mas dispersos e confusos. Antes mesmo que as luzes da casa se acendessem, tinham-se desfeito numa centena de discussões murmuradas por todo o salão.

Maria correu para me cumprimentar quando desci os degraus, o rosto cheio de riso. Apertou minha mão e me deu um tapinha nas costas. Foi a primeira de muitos, todos músicos. Antes que eu ficasse preso ali, ela enlaçou o braço no meu e me levou de volta a minha mesa.