Alastor pagou a rodada seguinte de bebidas e nossa conversa voltou-se para as fofocas da Academia. Monet rodava por lá havia mais tempo que metade dos professores e por isso conhecia mais histórias escandalosas do que nós três juntos.
Um alaudista de barba grossa e grisalha tocou uma versão comovente de En Faect Monak. Depois, duas mulheres encantadoras, uma na casa dos 40 e a outra jovem o bastante para ser sua filha, cantaram um dueto que eu nunca tinha ouvido sobre Lari Remoçada.
Marie foi chamada ao palco outra vez e tocou uma canção simples, com tanto entusiasmo que fez as pessoas dançarem nos espaços entre as mesas. Monet chegou até a se levantar no coro final e a nos surpreender, demonstrando um par de pés de leveza admirável. Nós lhe demos vivas e, quando tornou a se sentar, ele estava enrubescido e ofegante.
Alas pagou-lhe uma bebida e Leif se virou para mim, com um olhar animado.
— Não — falei. — Não vou tocá-la. Eu já disse.
Leif murchou, com uma decepção tão profunda que não pude deixar de rir.
— Vamos combinar assim: vou dar uma volta pela casa. Se eu vir o Augus, peço que ele a toque.
Fui andando devagar pelo salão lotado e, embora ficasse de olho para achar o Augus, a verdade é que estava à procura de Alys. Eu não a vira entrar pela porta da frente, mas, com a música, o jogo de cartas e a comoção geral, havia a possibilidade de que eu simplesmente não a tivesse percebido.
Levei um quarto de hora para percorrer metodicamente o salão principal lotado, dando uma espiada em todos os rostos e parando para conversar com alguns músicos no caminho.
Cheguei ao segundo andar no momento em que as luzes tornaram a diminuir. Instalei-me junto à balaustrada para ver um flautista sereniano tocar uma melodia triste e cadenciada.
Quando as luzes voltaram a se acender, vasculhei o segundo andar da Foles, um balcão largo em forma de crescente. Minha busca foi mais um ritual do que qualquer outra coisa. Procurar Alys era um exercício de inutilidade, como rezar para fazer bom tempo.
Mas essa noite foi a exceção à regra.
Quando eu passeava pelo segundo andar, avistei-a caminhando com um cavalheiro alto, de cabelos pretos. Mudei de trajeto entre as mesas, para interceptá-los como que sem querer.
Alys me viu meio minuto depois. Deu um sorriso alegre e animado e tirou a mão do braço do fidalgo, fazendo sinal para que eu me aproximasse.
O homem ao lado dela era orgulhoso como um falcão, além de bonito, com um queixo que parecia um tijolo. Usava uma camisa de seda de um branco ofuscante e uma jaqueta de camurça ricamente tingida na cor do sangue. Costuras prateadas. Prata na fivela do cinto e nos punhos. Tinha toda a aparência de um fidalgo sereniano. O custo de seu traje, sem nem mesmo contar os anéis, pagaria minha taxa escolar por um ano inteiro.
Alys desempenhava o papel de sua companheira encantadora e atraente. No passado eu a vira vestida em trajes muito parecidos com os meus: roupas simples, feitas para o trabalho e a viagem. Nessa noite, porém, ela usava um vestido longo de seda verde. O cabelo preto encaracolava-se com arte, emoldurando seu rosto, e descia pelos ombros. No pescoço, ela usava um pingente de esmeralda em forma de lágrima. Combinava tão perfeitamente com a cor do vestido que não podia ser coincidência.
Senti-me um pouco maltrapilho, se comparado a eles. Todas as minhas posses no mundo, em matéria de roupa, correspondiam a quatro camisas, dois pares de calças e algumas peças diversas. Tudo de segunda mão e meio puído, até certo ponto. Nessa noite eu usava o que tinha de melhor, mas você com certeza compreende que o que chamo de melhor não era particularmente bom.
A única exceção era minha capa, presente da Faela. Era quente e maravilhosa, feita sob encomenda para mim, em verde e preto, com numerosos bolsos no forro. Não era elegante, de modo algum, porém era a melhor coisa que eu possuía.
Quando me aproximei, Alys deu um passo à frente e estendeu a mão para que eu a beijasse, num gesto confiante e quase altivo. Para um observador descuidado, ela dava a perfeita impressão da dama aristocrática sendo gentil com um músico jovem e pobre.
Uma impressão perfeita, exceto pelos olhos. Estes eram escuros e profundos, cor de café e chocolate. Seus olhos bailavam de divertimento, cheios de riso. Parado atrás dela, o cavalheiro exibiu um leve indício de cenho franzido quando ela me ofereceu a mão.
Eu não sabia qual era o jogo de Alys, mas pude adivinhar meu papel.
Assim, curvei-me sobre sua mão e a beijei de leve, com uma reverência profunda. Eu fora treinado nos gestos da corte quando pequeno e sabia o que estava fazendo. Qualquer um pode se dobrar na cintura, mas uma boa reverência exige habilidade.
Essa foi graciosa e lisonjeira e, enquanto encostava os lábios no dorso da mão dela, abri a capa de lado, com um movimento delicado do pulso. Essa era a parte difícil e eu tinha empenhado várias horas de treinamento cuidadoso diante do espelho da casa de banho para fazer o gesto parecer suficientemente descontraído.
Alys fez uma cortesia, graciosa como uma folha que cai do salgueiro, e deu um passo atrás, colocando-se ao lado do cavalheiro.
— Vanitas, este é lorde Kallen Vanten. Kallen, Vanitas.
Kallen me olhou de cima a baixo, formando uma opinião completa a meu respeito mais depressa do que você conseguiria respirar e inspirar uma vez. Sua expressão tornou-se desdenhosa e ele me fez um aceno com a cabeça. O desprezo não me é estranho, mas fiquei surpreso ao ver o quanto essa demonstração particular me foi contundente.
— Às suas ordens, milorde — falei.
Fiz uma mesura e desloquei o peso do corpo, para que minha capa escorregasse do ombro e exibisse minha gaita de foles, com seus tubos de prata.
Ele já ia virando a cabeça, com estudado desinteresse, quando seus olhos captaram a peça reluzente de prata. Como joia, ela nada tinha de especial, mas era significativa naquele lugar.
Alastor tinha razão: na Foles, eu fazia parte da nobreza.
E Kallen sabia disso. Após um breve instante de consideração, retribuiu minha mesura. Ela mal passou de um aceno da cabeça, a rigor. Apenas baixa o bastante para ser educada.
— Às suas e de sua família — respondeu ele, num aturiano perfeito.
Tinha a voz mais grave que a minha, um baixo caloroso com apenas o bastante do sotaque sereniano para lhe conferir uma leve entonação musical.
Alys inclinou a cabeça na direção dele.
— O Kallen tem me ensinado um pouco de harpa.
— Estou aqui para conquistar minha gaita de foles — disse ele, cheio de certeza na voz grave.
Quando ele falou, as mulheres das mesas ao redor viraram-se para olhar em sua direção, com olhos famintos e pálpebras semicerradas. A voz de Kallen surtiu o efeito oposto em mim.
Ser rico e bonito já era ruim o bastante. Mas ter uma voz como mel no pão quente, ainda por cima, era simplesmente imperdoável. O som dela fez com que eu me sentisse como um gato agarrado pelo rabo e esfregado de trás para diante com a mão molhada.
Olhei para as mãos dele.
— Então, você é harpeador?
— Harpista — corrigiu ele, em tom rígido. — Toco uma Pindehale. É a rainha dos instrumentos.
Tomei meio fôlego, mas fechei a boca. A grande harpa sereniana tinha sido a rainha dos instrumentos 500 anos antes. Em nossa época, era uma curiosidade antiga. Deixei para lá, evitando a discussão em benefício de Alys.
— Pretende tentar a sorte esta noite? — indaguei.
Os olhos de Kallen se estreitaram ligeiramente.
— Não haverá nenhuma sorte envolvida quando eu tocar. Mas não. Hoje estou desfrutando a companhia de minha dama Alicia.
Levou a mão dela aos lábios e lhe deu um beijo distraído. Correu os olhos pela aglomeração murmurante ao seu redor, com ares de proprietário, como se fosse dono dos presentes.
— Creio que estarei numa companhia digna aqui — comentou.
Dei uma olhadela para Alys, mas ela evitava meu olhar. Tinha a cabeça inclinada de lado e brincava com um brinco antes escondido em seu cabelo, uma esmeralda miúda em forma de lágrima que combinava com o pingente em seu pescoço.
Os olhos de Kallen tornaram a me examinar brevemente. Minha roupa de mau caimento. Meu cabelo, curto demais para estar na moda, comprido demais para ser outra coisa senão rebelde.
— E você é... flauteador?
Era o mais barato dos instrumentos.
— Flautista — retruquei, descontraído. — Mas não. Prefiro o alaúde.
As sobrancelhas dele se levantaram.
— Você toca alaúde áulico?
Meu sorriso endureceu, apesar dos meus melhores esforços.
— Alaúde andarilho.
— Ah! — exclamou ele, rindo como se de repente tudo fizesse sentido. — Música popular!
Deixei passar também, embora com menos facilidade que antes.
— Vocês já têm onde sentar? — perguntei, em tom animado. — Vários de nós estamos com uma mesa lá embaixo, com uma boa visão do palco. Vocês serão bem-vindos, se quiserem nos acompanhar.
— A senhora e eu já temos uma mesa no terceiro círculo — respondeu Kallen, com um aceno na direção de Alys. — Prefiro a companhia de cima.
Fora do ângulo de visão dele, Alys revirou os olhos para mim.
Fiz uma cara séria e outra mesura polida para o homem, pouco mais que um menear da cabeça.
— Nesse caso, não os atrapalharei. — Virando-me para Alys, falei: — Milady. Posso fazer-lhe uma visita, um dia desses?
Ela deu um suspiro, com todo o ar de aristocrata explorada, exceto pelos olhos, que continuavam a rir de toda a formalidade ridícula do diálogo.
— Você certamente há de compreender, Vanitas. Estou cheia de compromissos para os próximos dias. Mas você pode visitar-me no fim da onzena, se quiser. Aluguei aposentos na Homem Esguio.
— É muita bondade sua — retruquei, fazendo-lhe uma reverência muito mais acentuada do que minha mesura para Kallen. Dessa vez, foi em relação a mim que ela revirou os olhos.
Kallen estendeu-lhe o braço, voltando-me o lado do corpo nesse processo, e os dois se afastaram. Ao vê-los juntos, deslocando-se graciosamente por entre a aglomeração, seria fácil supor que eram os donos do lugar ou que talvez estivessem pensando em comprá-lo para usar como casa de verão.
Só os nobres de berço movem-se com aquela arrogância displicente, cientes, no fundo, de que tudo no mundo existe apenas para fazê-los felizes. Alys fazia uma encenação maravilhosa, mas, para Lorde Kallen Queixo-de-Tijolo, aquilo era tão natural quanto respirar.
Observei-os até que chegassem à metade da escada para o terceiro círculo. Foi nesse ponto que Alys parou e pôs uma das mãos na cabeça. Em seguida, olhou para o piso em volta, com expressão ansiosa. Os dois trocaram algumas palavras rápidas e ela apontou para o alto da escada. Kallen meneou a cabeça e subiu, desaparecendo.
Num palpite, baixei os olhos para o chão e vi um lampejo de prata onde Alys estivera de pé, perto da balaustrada. Desloquei-me e parei naquele ponto, obrigando dois mercadores cealdamos a se desviarem para passar.
Fingi observar a multidão no térreo até Alys se aproximar e me dar um tapinha no ombro.
— Vanitas — disse ela, nervosa. — Desculpe incomodá-lo, mas acho que perdi um brinco. Você teria a bondade de me ajudar a procurá-lo? Tenho certeza de que estava com ele há um minuto.
Concordei e logo desfrutamos de um momento de privacidade, vasculhando decorosamente as tábuas do piso com as cabeças bem próximas. Por sorte, o vestido de Alys seguia o estilo sereniano, esvoaçante e solto em volta das pernas. Se tivesse uma fenda lateral, como ditava a moda do momento na República, a figura dela agachada no chão teria sido um escândalo.
— Pelo corpo de Deus, onde foi que você o achou? — murmurei.
Alys deu um risinho gutural.
— Fique quieto. Foi você quem sugeriu que eu aprendesse harpa. O Kallen é um ótimo professor.
— A harpa sereniana de pedal tem cinco vezes o seu peso. É um instrumento de salão, você nunca poderia carregá-la na estrada.
Alys parou de fingir que procurava o brinco e me lançou um olhar incisivo.
— E quem disse que nunca terei um salão onde tocar?
Tornei a olhar para o chão e tentei dar de ombros.
— Imagino que ela sirva para estudo. Está gostando, até agora?
— É melhor do que a lira — disse Alys. — Isso eu já posso perceber. Mas ainda mal consigo tocar O esquilo no telhado.
— Ele é bom? — perguntei, com um sorriso malicioso. — Com as mãos, quero dizer.
Alys enrubesceu um pouco e, por um segundo, pareceu prestes a me dar um tapa. Mas se lembrou a tempo do decoro e se conformou em apenas estreitar os olhos:
— Você é terrível. O Kallen tem sido um perfeito cavalheiro.
— Que Ardonai nos proteja de todos os perfeitos cavalheiros!
Ela balançou a cabeça.
— Estou falando num sentido literal. Ele nunca tinha saído de Serenia. Parece um gatinho numa gaiola.
— E agora você é Alicia? — perguntei.
— Por enquanto. E para ele — respondeu Alys, me olhando de soslaio com um sorrisinho evasivo. — Vindo de você, continuo a gostar mais de Alys.
— É bom saber disso — comentei e levantei a mão do piso, revelando a lágrima de esmeralda polida que era o brinco. Alys fez uma encenação, como se o descobrisse, levantando-o para captar a luz.
— Ah, aqui está ele!
Levantei-me e a ajudei a ficar de pé. Ela afastou o cabelo do ombro e se inclinou para mim.
— Sou toda desajeitada com essas coisas — disse. — Se importa?
Dei um passo em sua direção e parei bem perto, enquanto ela me entregava o brinco. Ela exalava um suave aroma de flores silvestres. Por baixo disso, porém, tinha cheiro de folhas de outono. Como o cheiro escuro de seu cabelo, que lembrava poeira de estrada e o ar antes de uma tempestade de verão.
— E ele é quem? — perguntei, baixinho. — O segundo filho de alguém?
Alys meneou quase imperceptivelmente a cabeça e uma mecha de seu cabelo caiu, roçando o dorso da minha mão.
— Ele é fidalgo por sua própria conta.
— Skheta te retae ven — praguejei. Tranquem seus filhos e filhas.
Alys tornou a rir baixinho. Seu corpo sacudiu com o esforço para prender o riso.
— Fique quieta — falei, enquanto segurava delicadamente sua orelha.
Ela inspirou fundo e soltou o ar, recompondo-se. Prendi o brinco no lóbulo de sua orelha e me afastei. Alys levantou uma das mãos para conferir a colocação, depois deu um passo atrás e fez uma mesura.
— Muito obrigada por toda a sua ajuda.
Tornei a me curvar para ela. Não foi uma reverência tão refinada quanto a anterior, porém foi mais sincera.
— Estou às suas ordens, milady.
Alys me deu um sorriso caloroso ao se virar para partir, os olhos rindo outra vez.