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Chapter 142 - CXLI. RAPIDEZ

A Foles estava apenas começando a encher, por isso passamos o tempo jogando quatro cantos. Era só uma partida amistosa de um ocro por rodada e o dobro pela simulação, mas, pobre de moedas como eu estava, qualquer cacife era alto. Por sorte, Monet jogava com a precisão de um relógio de engrenagens: nada de truques, apostas arriscadas nem palpites.

Leif pagou a primeira rodada de bebidas e Monet, a segunda. Quando as luzes da Foles esmaeceram, Monet e eu estávamos com 10 mãos de vantagem, principalmente graças à tendência do Leif de elevar entusiasticamente a aposta. Embolsei o iyane de cobre com sombria satisfação. Um crimo e quatro.

Um homem mais velho subiu ao palco. Após uma breve apresentação do Radagon, ele tocou no bandolim uma versão pungentemente encantadora de O entardecer de Taet. Seus dedos eram leves, ágeis e seguros nas cordas. Mas a voz...

A maioria das coisas declina com a idade. As mãos e as costas se enrijecem. Os olhos perdem a atenção. A pele se torna áspera e a beleza esmaece. À única exceção é a voz. Bem cuidada, só faz tornar-se mais doce com a idade e o uso constante, e a dele era como vinho doce de mel. O músico terminou sua canção sob aplausos calorosos e, passado um momento, as luzes tornaram a clarear e o salão se encheu de conversas.

— Há intervalos entre os artistas, para que o pessoal possa conversar, circular e buscar suas bebidas — expliquei a Monet. — Nem Ardonai e todos os seus anjos serão capazes de garantir a sua segurança se você falar durante uma apresentação.

Monet bufou:

— Não tenha a preocupação de que eu o embarace. Não sou um bárbaro completo.

— Só estou avisando — falei. — Você me informa o que é perigoso na Artificiaria e eu lhe digo o que é perigoso aqui.

— O alaúde dele era diferente — disse Alastor. — Tinha um som diferente do seu. E também era menor.

Lutei contra a ânsia de rir e resolvi não criar caso.

— Aquele tipo de alaúde se chama bandolim.

— Você vai tocar, não vai? — perguntou Leif, remexendo-se na cadeira como um cãozinho ansioso. — Devia tocar aquela música que escreveu sobre o Drazno. — Cantarolou um pouco, depois entoou:

"Uma mula pode aprender mágicas, uma mula tem certa classe,

Porque, ao contrário do jovem nobre, ela é apenas meio asno."

Monet deu um risinho dentro do caneco. Alastor abriu um raro sorriso. 

— Não — respondi em tom firme. — Para mim, o Drazno é caso encerrado. No que me diz respeito, estamos quites.

— É claro — concordou Alas, com ar cínico.

— Estou falando sério — insisti. — Não há nenhum benefício nisso. Esse vaivém só faz irritar os professores.

— Irritar é uma palavra muito branda — disse Monet, em tom seco. — Não é exatamente a que eu escolheria.

— Você deve isso a ele — disse Leif, com os olhos faiscando de raiva. — E depois, eles não vão acusá-lo de Conduta Imprópria para um Membro do Arcano só por cantar uma música.

— Não — confirmou Monet. — Só vão aumentar a taxa escolar dele.

— O quê? — exclamou Leif. — Eles não podem fazer isso. A taxa é baseada na entrevista de admissão.

O grunhido de Monet ecoou em seu caneco, enquanto ele bebia outro gole:

— A entrevista é só uma parte do jogo. Se você pode pagar, eles apertam um pouquinho. O mesmo acontece quando você cria problemas — disse. Olhou-me com ar sério. — Você vai se dar duplamente mal dessa vez. Quantas vezes foi para o Chifre no último período?

— Duas — admiti. — Mas a segunda não foi realmente minha culpa.

— É claro — disse Monet, lançando-me um olhar franco. — E foi por isso que eles o amarraram e chicotearam até sangrar, não foi? Porque a culpa não foi sua?

Remexi-me na cadeira, incomodado, sentindo repuxarem as cicatrizes não inteiramente fechadas nas minhas costas.

— A maior parte não foi minha culpa — corrigi.

Monet descartou a ideia.

— A questão não é de culpa. Árvore não cria tempestade, mas qualquer idiota sabe onde o raio vai cair.

Alastor meneou a cabeça, sério.

— Lá na minha terra nós dizemos: o prego mais comprido leva a martelada primeiro — comentou, depois franziu o cenho. — Soa melhor em kiaru.

Leif pareceu inquieto.

— Mas a entrevista de admissão continua a determinar a maior parte da taxa, não é? 

Por seu tom, depreendi que ele nem havia considerado a possibilidade de que ressentimentos pessoais ou questões políticas entrassem na equação.

— A maior parte, sim — reconheceu Monet. — Mas os professores escolhem suas perguntas e todos eles dão o seu palpite — disse. Começou a contar nos dedos: — O Hilme não gosta de você e pode influir com o dobro do peso dele em ressentimentos. Você causou má impressão no Loran desde o início e conseguiu continuar assim. Você é criador de casos. Perdeu quase uma onzena de aulas no fim do último período. Sem aviso prévio nem explicação posterior — acrescentou e me deu um olhar significativo.

Baixei os olhos para a mesa, plenamente consciente de que várias das aulas perdidas tinham feito parte do meu período como aprendiz do Monet na Artificiaria.

Passado um momento, ele deu de ombros e continuou:

— Ainda por cima, dessa vez eles vão testá-lo como A'scor. As taxas vão ficando mais altas nos níveis superiores. Essa é uma das razões de eu ter permanecido como A'lun por tanto tempo.

Monet olhou bem para mim e concluiu:

— Sabe qual é meu melhor palpite? Você terá sorte se sair com menos de 10 crimos.

— Dez crimos — repetiu Leif, que assobiou por entre os dentes e balançou a cabeça com ar solidário. — Que bom que você está cheio da grana.

— Nem tanto assim — retruquei.

— Como pode não estar? — perguntou Leif. — Os professores multaram o Drazno em quase 20 crimos depois que ele quebrou o seu alaúde. O que você fez com todo o dinheiro?

Olhei para baixo e afaguei delicadamente o estojo do alaúde com o pé.

— Você gastou num alaúde novo? — indagou Leif, horrorizado. — Vinte crimos? Sabe o que você poderia comprar com esse dinheiro?

— Um alaúde? — perguntou Alastor.

— Eu nem sabia que era possível gastar tanto num instrumento — disse Leif.

— Pode-se gastar muito mais que isso — disse Monet. — Eles são como os cavalos.

Isso fez a conversa se atrapalhar um pouco. Alas e Leif viraram-se para ele, confusos.

Eu ri.

— Na verdade, é uma boa comparação.

Monet assentiu com ar sábio.

— Há uma grande diferença entre os cavalos, sabem? Pode-se comprar um velho cavalo de arado por menos de um crimo. Ou comprar um Volder puro-sangue por 40.

— Pouco provável - resmungou Alas. — Não um verdadeiro Volder.

Monet sorriu.

— Exatamente. Por mais que você saiba que alguém já gastou num cavalo, pode-se facilmente gastar isso comprando uma boa harpa ou violino.

Leif pareceu perplexo com isso:

— Mas uma vez o meu pai gastou 250 batidos num Kaekaen alto — disse.

Inclinei-me para um lado e apontei:

— Aquele louro ali, o bandolim dele vale o dobro disso.

— Mas os cavalos têm pedigree — argumentou Leif. — Você pode criar um cavalo para vender.

— Aquele bandolim tem pedigree — retruquei. — Foi feito pelo próprio Astoras. Existe há 250 anos.

Observei Leif absorver essa informação, olhando em volta para os instrumentos que havia no salão.

— Mesmo assim — disse ele. — Vinte crimos — e balançou a cabeça. — Por que você não esperou até depois da admissão? Podia gastar tudo o que sobrasse no alaúde.

— Eu precisava dele para tocar na Grilo — expliquei. — Tenho moradia e comida de graça como músico da casa. Se não tocar, não posso ficar lá.

Era verdade, mas não era toda a verdade.

O Grilo me daria algum tempo, se eu lhe explicasse minha situação. Mas, se houvesse esperado, eu teria tido que passar quase duas onzenas sem alaúde. Seria como perder um dente ou um membro. Seria como passar duas onzenas com a boca costurada. Seria impensável.

— E eu não gastei tudo no alaúde — acrescentei. — Também surgiram outras despesas.

Especificamente, eu tinha pago à agiota com quem fizera um empréstimo. Isso me custara seis crimos, mas me livrar da minha dívida com a Devi tinha sido como retirar um grande peso do peito.

Só que agora eu sentia o mesmo peso tornando a me oprimir. Se o palpite do Monet fosse parcialmente exato, eu estaria em pior situação do que havia imaginado.

Felizmente, as luzes se atenuaram e o salão ficou em silêncio, o que me poupou de ter que dar maiores explicações. Levantamos a cabeça enquanto Radagon levava a Maria ao palco. Enquanto afinava o violino, ele conversou com as pessoas da plateia que estavam mais perto e o salão começou a se acomodar.

Eu gostava da Maria. Ela era mais alta que a maioria dos homens, orgulhosa como um felino e falava pelo menos quatro línguas. Muitos músicos de Torrente faziam tudo o possível para usar uma imitação da última moda, na esperança de se imiscuírem com a nobreza, mas Maria usava roupas de bater; calças com que um homem poderia trabalhar um dia inteiro, botas que se poderia usar para andar mais de 30 quilômetros.

Não quero dizer que ela vestisse coisas de andar em casa, entenda bem. Apenas não ligava para modismos e afetação. Suas roupas eram obviamente feitas sob medida, bem ajustadas e lhe caíam bem. Nessa noite ela usava vinho e marrom, as cores de sua mecenas, lady Sanil.

Nós quatro fitamos o palco.

— Tenho que admitir que tive um bocado de consideração com a Maria — disse Alastor, baixinho.

Monet soltou um risinho gutural.

— Isso é uma mulher e meia — disse. — O que significa que ela é cinco vezes mais mulher do que qualquer um de vocês saberia como tratar.

Noutra ocasião, uma afirmação como essa poderia ter instigado em nós três um protesto cheio de bravata. Mas Monet a fez sem o menor indício de provocação na voz, por isso deixamos para lá. Sobretudo porque provavelmente era verdade.

— Para mim, não — disse Leif. — Ela sempre parece que está se preparando para uma luta corporal com alguém. Ou para domar um cavalo selvagem.

— É verdade — concordou Monet, com outro risinho. — Se vivêssemos numa época melhor, ergueriam um templo em volta de uma mulher como essa.

Fizemos silêncio quando Maria terminou de afinar o violino e deu início a um doce rondó, lento e delicado como uma brisa suave de primavera.

Embora eu não tivesse tempo para lhe dizer isso, Leif tinha bastante razão. Uma vez, na Toco de Carvalho, eu tinha visto Maria acertar um murro no pescoço de um homem por ter-se referido a ela como "aquela vaca violinista respondona". Maria também lhe dera um pontapé quando ele já estava no chão. Mas só uma vez e não num lugar que o ferisse permanentemente.

Ela continuou seu rondó, cujo ritmo lento e doce foi aos poucos crescendo, até atingir um trote animado. Era o tipo de melodia com que só pensaria em dançar quem tivesse pés excepcionalmente leves ou estivesse excepcionalmente bêbado.

Maria deixou a música crescer até ir além de qualquer coisa que um homem pudesse sonhar dançar. Agora ela já não se parecia em nada com um trote. Era uma disparada, veloz como um par de crianças disputando corrida. Fiquei deslumbrado com o som limpo e claro do dedilhado dela, apesar do ritmo frenético.

Mais rápido. Célere como um cervo correndo de um cão selvagem. Comecei a ficar nervoso, sabendo que era só uma questão de tempo ela deslizar, escorregar ou perder uma nota. Mas, de algum modo, Maria seguiu em frente, cada nota perfeita, nítida, forte e doce. Seus dedos chispantes formavam uma curva alta sobre as cordas. O pulso da mão que segurava o arco estava solto e preguiçoso, apesar da velocidade terrível.

Mais depressa ainda. O rosto de Maria estava concentrado. O braço do arco era um borrão. Ainda mais depressa. Ela se preparou, as pernas longas firmemente plantadas no palco, o violino encaixado com firmeza sob o queixo. Cada nota aguda como o canto dos pássaros de manhãzinha. E mais rápido.

Ela terminou numa disparada e fez uma reverência súbita, com um floreio, sem cometer um único erro. Eu suava como um cavalo depois de uma longa corrida, com o coração acelerado.

Não fui o único. Alas e Leif tinham um brilho de suor na testa.

Os nós dos dedos de Monet estavam brancos nas mãos agarradas à borda da mesa.

— Ardonai misericordioso! — exclamou ele, sem fôlego. — Eles têm música assim aqui toda noite?

Dei-lhe um sorriso:

— Ainda é cedo. Você não me ouviu tocar.

  1. rondó;
    1. É quando a música possui uma parte principal e várias partes contrastantes. (Tema D, Tema A", Tema E, Tema A"", etc…)