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Chapter 136 - CXXXV. FAVOR

Depois de emergir do Subterrâneo, segui meu cauteloso percurso passando por uma janela e uma porta fechada, até entrar na ala feminina do Cercado. Bati de leve à porta de Faela, pois não queria acordar ninguém acidentalmente. Os homens não podiam entrar sem escolta na ala feminina do Cercado, sobretudo às altas horas da noite.

Bati três vezes, até ouvir um movimento suave no quarto. Passado um momento, Faela abriu a porta, com o cabelo comprido todo despenteado. Ainda tinha os olhos semicerrados ao espiar o corredor com uma expressão intrigada. Piscou ao me ver parado ali, como se na verdade não esperasse encontrar ninguém.

Estava inequivocamente nua, com um lençol meio enrolado no corpo. Admito que a visão dela, deslumbrante e de seios fartos, seminua diante de mim, foi um dos momentos mais espantosamente eróticos de minha juventude.

— Vanitas? — disse ela, mantendo um grau admirável de compostura.

Tentou cobrir-se um pouco mais, sem grande sucesso, subindo o lençol até o pescoço e, em troca, expondo um pedaço escandaloso das pernas compridas e bem torneadas:

— Que horas são? Como você entrou aqui?

— Você disse que, se um dia eu precisasse de alguma coisa, poderia procurá-la para lhe pedir um favor — respondi, em tom urgente. — Estava falando sério?

— Bem, sim. É claro. Puxa, você está um desastre. O que aconteceu?

Baixei os olhos para mim e só então percebi o estado em que me encontrava. Imundo, com a frente do corpo toda suja de terra, de tanto rastejar. Tinha rasgado as calças num joelho e parecia estar sangrando por baixo. Ficara tão agitado que nem sequer me dera conta disso, nem tinha pensado em me lavar e me trocar, vestindo uma das roupas novas antes de procurá-la.

Faela deu meio passo atrás e abriu um pouco mais a porta, dando espaço para eu entrar. Ao abrir, a porta produziu um ventinho que fez o lençol grudar-se no corpo dela, delineando sua nudez num perfil momentâneo e perfeito.

— Você pode entrar? — perguntou-me.

— Não posso ficar — respondi sem pensar, lutando contra a ânsia de abrir a boca, francamente pasmo. — Preciso que você se encontre com um amigo meu no Arquivo amanhã à tardinha. Ao quinto sino, junto à porta das quatro chapas. Pode fazer isso?

— Eu tenho aula. Mas, se for importante, posso faltar.

— Obrigado — retruquei baixinho, recuando para a saída.

Diz muito sobre mim o que eu tinha encontrado nos túneis sob a Academia que, só depois de percorrer metade do caminho para meu quarto na Grilo, eu me apercebi de ter acabado de recusar um convite de Faela, seminua, para ficar com ela em seu quarto.

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No dia seguinte seria açoitado no amplo pátio calçado de pedras que um dia se chamara Casa do Vento. Pareceu-me estranhamente apropriado.

Como seria de se prever, houve um público impressionante no evento. Centenas de estudantes lotaram o pátio até transbordar. Olharam de janelas e portas. Alguns chegaram até a subir nos telhados para ter uma visão melhor. Não os censuro, na verdade. Diversão gratuita é difícil de dispensar.

Fui açoitado seis vezes nas costas, uma a uma. Não querendo decepcionar a plateia, dei-lhe algo de que falar. Uma reprise do espetáculo anterior. Não gritei, não sangrei nem desfaleci. Saí do pátio andando com meus próprios pés e de cabeça erguida.

Depois de Mila me dar 57 pontos caprichados nas costas, encontrei consolo numa ida a Torrente, onde gastei o dinheiro de Drazno num alaúde extraordinariamente requintado, duas belas mudas de roupas usadas para mim, um vidrinho com meu próprio sangue e um vestido novo e quente para Hani.

Pouco depois, Faela faltou à aula de Geometria Avançada e foi ao Arquivo. Desceu vários lances de escada e atravessou um labirinto de corredores e estantes, até encontrar o único pedaço de parede de pedra não recoberto de livros no prédio inteiro. Lá estava a porta das quatro chapas, silenciosa e imóvel como uma montanha: Valarnitas.

Faela olhou em volta, nervosa, apoiando-se ora num pé, ora noutro.

Após alguns instantes demorados, uma figura encapuzada saiu da escuridão e apareceu à luz avermelhada da lamparina portátil que ela segurava.

Faela deu um sorriso ansioso.

— Olá — disse baixinho. — Um amigo me pediu... — Fez uma pausa, curvando um pouco a cabeça, na tentativa de vislumbrar o rosto à sombra do capuz.

É provável que você não se surpreenda ao saber quem ela viu.

— Vanitas? — exclamou, incrédula, e olhou ao redor, subitamente em pânico. — Meu Deus, o que está fazendo aqui?

— Invadindo — respondi, com ar petulante.

Ela me segurou e me puxou por um labirinto de estantes até chegarmos a uma das salinhas de leitura espalhadas por todo o Arquivo. Empurrou-me para dentro, fechou a porta com firmeza atrás de nós e se encostou nela.

— Como entrou aqui? O Loran vai estourar uma veia! Você quer que nós dois sejamos expulsos?

— Eles não a expulsariam — respondi com desembaraço. — Você seria condenada por Conluio Voluntário, no máximo. Não podem expulsá-la por isso. É provável que se livrasse pagando uma multa, já que eles não açoitam mulheres. — Remexi um pouco os ombros, sentindo o puxão incômodo dos pontos nas costas. — O que me parece meio injusto, se você quer a minha opinião.

— Como você entrou aqui? — Faela repetiu. — Passou, pé ante pé, pela recepção?

— É melhor você não saber — esquivei-me.

Tinha sido pelo Enfurnado, é claro.

Depois de sentir no vento o cheiro de couro antigo e poeira, eu soubera estar perto. Escondida no labirinto de túneis havia uma porta que dava diretamente no nível mais baixo do Acervo. Ela existia para que os escribas tivessem acesso fácil ao sistema de ventilação. A porta estava trancada, é claro, mas portas trancadas nunca foram um grande estorvo para mim. É mesmo uma pena.

Mas não contei nada disso a Faela. Sabia que minha rota secreta só funcionaria enquanto permanecesse secreta. Contar a um escriba, mesmo a uma escriba que me devia um favor, simplesmente não era boa ideia.

— Escute — apressei-me a dizer —, é seguro como uma casa. Faz horas que estou aqui e ninguém sequer chegou perto de mim. Todos carregam suas próprias lâmpadas, por isso é fácil evitá-los.

— Você me deu um susto — disse Faela, afastando o cabelo escuro para trás dos ombros. — Mas tem razão, provavelmente é mais seguro aqui — concordou.

Entreabriu a porta e deu uma olhadela do lado de fora, para ter certeza de que não havia perigo:

— Os escribas verificam ao acaso as saletas de leitura periodicamente para se certificarem de que não há ninguém dormindo nem transando.

— O quê?

— Há muitas coisas que você não sabe sobre o Arquivo — disse ela com um sorriso, enquanto abria o resto da porta.

— É por isso que preciso da sua ajuda — salientei, enquanto nos dirigíamos ao Acervo. — Não consigo entender nada neste lugar.

— O que você está procurando?

— Umas mil coisas — respondi com franqueza. — Mas podemos começar pela história dos Mayr. Ou por qualquer texto não-ficcional sobre o Sombraim. Qualquer coisa sobre um ou outro, na verdade. Não consegui achar nada.

Não me dei ao trabalho de disfarçar a frustração na voz. Entrar finalmente no Arquivo, depois de tanto tempo, e não conseguir encontrar nenhuma das respostas que eu procurava era de enlouquecer.

— Pensei que as coisas fossem mais organizadas — resmunguei.

Faela deu um risinho gutural.

— E como você faria isso, exatamente? Eu me refiro a organizar tudo.

— Andei pensando nisso nas últimas horas. Seria melhor organizar tudo por assunto. Você sabe, livros de história, autobiografias, gramáticas...

Faela parou de andar e deu um longo suspiro.

— Acho que devemos acabar logo com isso — disse ela, tirando ao acaso um livro fino de uma prateleira. — Qual é o assunto deste livro?

Abri-o e dei uma espiada nas páginas. Fora escrito com a letra de um antigo escriba, cheia de rabiscos e difícil de decifrar.

— Parece um livro de memórias.

— Que tipo de livro de memórias? Como você o relacionaria com outras autobiografias?

Ainda folheando as páginas, vi um mapa cuidadosamente desenhado.

— A rigor, mais parece um livro de viagens ilustrado.

— Ótimo. E onde você o colocaria, na seção de autobiografias e livros de viagem?

— Eu a organizaria geograficamente — respondi, gostando da brincadeira. Folheei outras páginas. — Aturia, Serenia e... Mitreza? — li. Franzi o cenho e examinei a lombada do livro. — Quantos anos tem isso? O Império Aturiano absorveu Mitreza há mais de 300 anos.

— Mais de 400 anos — Faela me corrigiu. — E então, onde você põe um livro sobre viagens que se refere a um lugar que não existe mais?

— Na verdade, estaria mais para um livro de história — respondi, mais devagar.

— E se ele não for exato? — insistiu Faela. — E se for baseado em boatos e não na experiência pessoal? E se for pura ficção? Os romances sobre viagens estiveram em grande moda em Serenia, há uns 200 anos.

Fechei o livro e o repus lentamente na prateleira.

— Estou começando a perceber o problema — comentei, pensativo.

— Não, não está — objetou Faela em tom franco. — Está tendo apenas um vislumbre das bordas do problema — afirmou, apontando as estantes que nos cercavam. — Digamos que amanhã você se tornasse o Arquivista-Mor. Quanto tempo levaria para organizar tudo isto?

Olhei para as prateleiras incontáveis que desapareciam na escuridão.

— Seria um trabalho para a vida inteira.

— Os dados sugerem que leva mais do que apenas uma vida — foi a resposta seca de Faela. — Há mais de três quartos de milhão de volumes aqui, e isso nem leva em consideração as placas de cerâmica, os pergaminhos ou os fragmentos de Caluptenia.

Fez um gesto desdenhoso e prosseguiu:

— Assim, você passa anos elaborando o sistema perfeito de organização, que tem até um lugar conveniente para a sua autobiografia combinada com livro de viagens histórico-ficcional. Você e os escribas passam décadas identificando, separando e reordenando lentamente dezenas de milhares de livros. — Olhou-me de frente. — E aí você morre. O que acontece depois?

Comecei a perceber aonde ela pretendia chegar.

— Bem, num mundo perfeito, o Arquivista-Mor seguinte continuaria de onde eu tivesse parado.

— Viva o mundo perfeito! — disse Faela cheia de sarcasmo; depois virou-se e recomeçou a me conduzir por entre as estantes.

— Imagino que o novo Arquivista-Mor costume ter suas próprias ideias sobre como organizar as coisas, não é?

— Não é uma coisa costumeira — admitiu Faela. — Ás vezes uma sucessão deles trabalha com vista a um mesmo sistema. Só que, mais cedo ou mais tarde, aparece alguém que diz conhecer um modo melhor de fazer as coisas, e tudo recomeça do zero.

— Quantos sistemas diferentes já houve? — perguntei, avistando uma tênue luz vermelha que balançava junto a prateleiras distantes e apontando para ela.

Faela mudou de direção para nos afastar da luz e de quem a estivesse carregando.

— Depende da maneira de contá-los — respondeu, baixinho. — Pelo menos nove, nos últimos 300 anos. O pior foi há cerca de 50 anos, quando houve quatro novos Arquivistas-Mores a intervalos de cinco anos um do outro. O resultado foram três facções diferentes entre os escribas, cada qual usando um sistema de catalogação diferente, e achando que o dela era o melhor.

— Parece uma guerra civil — comentei.

— Uma guerra santa — disse Faela. — Uma cruzada muito silenciosa e circunspecta, na qual cada lado tinha certeza de estar protegendo a alma imortal do Arquivo. Eles furtavam livros que já tinham sido catalogados nos sistemas alheios. Escondiam livros uns dos outros, ou confundiam sua ordem nas prateleiras.

— Quanto tempo isso durou?

— Quase 15 anos. Talvez ainda continuasse até hoje, se os escribas de Mestre Thomen não tivessem finalmente conseguido roubar e queimar os livros de registro do Larko. Depois disso os adeptos de Larko não puderam continuar.

— E a moral da história é que as pessoas tornam-se passionais quando ficam perto de livros? — perguntei, implicando de leve com ela. — Daí a necessidade das verificações aleatórias das salinhas de leitura?

Faela me mostrou a língua.

— A moral da história é que as coisas são uma bagunça aqui. Efetivamente, "perdemos" quase 200 mil livros quando o Thomen queimou os registros do Larko. Eram os únicos registros em que esses livros podiam ser localizados. E então, cinco anos depois, o Thomen morreu. Adivinhe o que aconteceu.

— Um novo Arquivista-Mor ansioso por recomeçar do zero?

— É como uma fileira interminável de casas semiconstruídas — disse Faela, exasperada. — É fácil encontrar livros no sistema antigo; foi por isso que eles construíram o novo dessa maneira. Quem trabalha na casa nova fica roubando madeira da que tinha sido construída antes. Os antigos sistemas ainda existem, em pedaços e fragmentos dispersos. Até hoje continuamos a encontrar grupos de livros que os escribas esconderam uns dos outros anos atrás.

— Vejo que esse é um ponto sensível para você — comentei com um sorriso.

Chegamos a um lance de escadas e Faela se virou para mim:

— É um ponto sensível para todo escriba que dura mais de dois dias trabalhando no Arquivo. O pessoal dos Tomos reclama quando levamos uma hora para entregar o que eles querem. Não percebem de que não é simples como ir à prateleira de "História dos Mayr" e tirar um livro. Isso não existe.

Deu-me as costas e começou a subir a escada. Segui-a em silêncio, apreciando essa nova perspectiva.