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Chapter 134 - CXXXIII. VIOLAÇÃO

— Ele é muito, muito doido — disse eu a Leif e a Alastor horas depois, naquela tarde, na Grilo.

— Ele é professor — reagiu Leif com expressão serena. — Além disso, é seu orientador. E, pelo que nos contou, é a razão de você não ter sido expulso.

— Não estou dizendo que ele não é inteligente, e já o vi fazer coisas que nem sei começar a explicar. Mas persiste o fato de que é completamente destrambelhado na cachola. Ele fala em círculos sobre nomes e palavras e poder. Soa bonito enquanto fala, mas, a rigor, não quer dizer nada.

— Pare de reclamar — disse Leif. — Você passou à frente de nós dois ao chegar a A'scor, mesmo que o seu orientador seja pancada. E ainda recebeu mais de 20 moedas de prata por ter quebrado o braço do Drazno. Saiu livre feito um passarinho. Eu queria ter metade da sua sorte.

— Não exatamente livre feito um passarinho. Ainda serei açoitado.

— Como? — espantou-se Leif. — Pensei que você tinha dito que eles suspenderam isso, não foi?

— Suspenderam minha expulsão, não o açoitamento.

Leif ficou boquiaberto.

— Meu Deus, por que não?

— Violação das normas — disse Alastor em voz baixa. — Eles não podem deixar um aluno sair livre feito um passarinho depois de o julgarem culpado de violação das normas.

— Foi o que disse o Elohkar — comentei.

Bebi um gole. Bebi outro.

— Não me interessa — disse Leif, acalorado. — É uma barbaridade.

Martelou esta última palavra na mesa com o punho, virando seu copo e derramando uma poça escura de smutten em todo o tampo:

— Merda! — exclamou, levantando-se atabalhoado e tentando impedir com as mãos que o vinho caísse no chão.

Ri até ficar com lágrimas nos olhos e a barriga doendo. Senti um peso sair do meu peito quando finalmente recobrei o fôlego.

— Eu adoro você, Leif — declarei, falando sério. — Ás vezes acho que você é a única pessoa sincera que eu conheço.

Ele me deu uma olhadela geral:

— Você está bêbado.

— Não, é verdade. Você é uma boa pessoa. Melhor do que eu jamais serei.

Leif me olhou de um jeito que mostrou que não sabia dizer se eu estava ou não troçando dele. Uma das criadas aproximou-se com trapos molhados, limpou a mesa e teceu alguns comentários contundentes. Leif teve a decência de parecer suficientemente constrangido por todos nós.

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Quando cheguei de volta à Academia, havia escurecido por completo. Dei uma passada rápida na Grilo para buscar umas coisas e segui para o telhado do Magnólio. 

Surpreendi-me ao encontrar Hani à minha espera no telhado, apesar do céu claro. Estava sentada numa chaminé baixa de tijolos, balançando ociosamente os pés descalços. Seu cabelo produzia uma nuvem diáfana em torno do corpo miúdo.

Pulou da chaminé quando cheguei mais perto e deu um meio passinho de lado, quase como uma mesura.

— Boa-noite, Vanitas.

— Boa-noite, Hani. Como vai você?

— Maravilhosa — disse ela, com firmeza — e está uma noite maravilhosa — completou.

Levantou as duas mãos atrás das costas e ficou trocando de posição de um pé para outro.

— O que você me trouxe hoje? — indaguei.

Ela abriu seu sorriso ensolarado.

— O que você trouxe para mim?

Tirei uma garrafa estreita de baixo da capa.

— Eu lhe trouxe vinho de mel.

Ela o pegou com as duas mãos.

— Ora, esse é um presente principesco — comentou, espiando-o intrigada. — Pense em todas as abelhas embriagadas. — Tirou a rolha para cheirá-lo. — O que há dentro dele?

— Luz solar. E um sorriso, e uma pergunta.

Ela encostou o bocal da garrafa no ouvido e me sorriu.

— A pergunta está no fundo — esclareci.

— Uma pergunta pesada — disse ela, e me estendeu a mão. — Eu lhe trouxe um anel.

Era de madeira lisa e morna.

— O que ele faz? — perguntei.

— Guarda segredos.

Levei-o ao ouvido.

Hani abanou a cabeça com ar sério, o cabelo rodopiando a seu redor.

— Ele não conta segredos; guarda-os — disse. Chegou perto de mim, pegou o anel e o colocou no meu dedo. — É suficiente ter um segredo — repreendeu-me gentilmente. — Qualquer coisa além disso seria ganância.

— Ele cabe — comentei, meio surpreso.

— São seus segredos — fez ela, como se explicasse algo a uma criança. — Em quem mais caberiam?

Afastou o cabelo para trás e tornou a dar seu curioso passinho de lado. Quase uma mesura, quase uma dancinha.

— Estive pensando se você gostaria de me fazer companhia hoje no jantar, Vanitas — disse-me, com o rosto sério. — Eu trouxe maçãs e ovos. Também posso oferecer um adorável vinho de mel.

— Eu adoraria compartilhar o jantar com você, Hani — respondi em tom formal. — Eu trouxe pão e queijo.

Hani desceu correndo ao pátio e em poucos minutos voltou com uma delicada xícara de chá em porcelana para mim. Serviu o vinho de mel para nós dois, bebendo o seu numa série de golinhos refinados, numa canequinha feita de prata, pouco maior do que um dedal.

Sentei-me no telhado e compartilhamos nossa refeição. Eu tinha um pão grande e escuro de cevada e uma fatia de queijo branco e duro. Hani tinha maçãs maduras e meia dúzia de ovos com pintas marrons que, de algum modo, tinha conseguido cozinhar. Nós os comemos com sal que tirei de um bolso da capa.

Fizemos quase toda a refeição em silêncio, simplesmente desfrutando a companhia um do outro. Hani sentou-se com as pernas cruzadas, as costas eretas e o cabelo esvoaçando por todos os lados. Como sempre, sua delicadeza cuidadosa fez essa refeição meio improvisada em cima de um telhado parecer um jantar formal no salão de um nobre.

— Ultimamente, o vento anda levando folhas para o Subterrâneo — disse Hani, em tom de conversa, ao final da refeição. — Pelos ralos e túneis. Elas se acumulam no Plumeiro, por isso as coisas andam todas farfalhantes por lá.

— É mesmo?

Ela fez que sim.

— E uma mãe coruja se mudou para lá. Fez o ninho bem no meio dos Doze Cinzentos, atrevida que só ela.

— Então ela é uma espécie de raridade?

Hani balançou a cabeça:

— Com certeza. As corujas são sábias. São cuidadosas e pacientes. A sabedoria impede a audácia — disse. Bebericou de sua caneca, segurando elegantemente a alça entre o polegar e o indicador. — É por isso que as corujas dão maus heróis.

A sabedoria impede a audácia. Depois de minhas recentes aventuras em Nebron, não pude deixar de concordar.

— Mas essa é aventureira? Uma exploradora?

— Ah, sim — fez Hani, de olhos arregalados. — É destemida. Tem cara de Lua malvada.

Tornou a encher sua canequinha de prata com vinho de mel e esvaziou o resto em minha xícara de chá. Depois de virar inteiramente a garrafa de cabeça para baixo, franziu os lábios e soprou forte duas vezes no gargalo, produzindo um som de pio.

— Onde está minha pergunta? — indagou.

Hesitei, sem saber ao certo como ela reagiria a meu pedido.

— Estive pensando, Hani. Você se importaria em me mostrar o Subterrâneo?

Ela desviou os olhos, subitamente tímida.

— Vanitas, pensei que você fosse um cavalheiro — disse, puxando sem jeito a blusa esfarrapada. Curvou a cabeça, fazendo o cabelo esconder o rosto.

Prendi a respiração por um momento, escolhendo com cuidado minhas palavras seguintes para não fazê-la fugir assustada para o Subterrâneo. Enquanto eu pensava, ela me espiou pela cortina de cabelo.

— Hani — perguntei devagar —, você está brincando comigo?

Ela levantou a cabeça e sorriu.

— Sim, estou — respondeu, orgulhosa. — Não é uma maravilha?