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Chapter 132 - CXXXI. NOVE

— Não sabíamos para onde levá-lo — disse Leif a Kelvin.

— Contem-me tudo de novo — pediu Kelvin calmamente. — Mas, desta vez, apenas um fala — acrescentou, apontando para Alastor. — Tente colocar todas as palavras numa sequência bem arrumada.

Estávamos no gabinete de Kelvin, com a porta e as cortinas fechadas.

Alastor começou a explicar o que havia acontecido. À medida que foi ganhando velocidade, mudou para o kiaru. Kelvin acompanhou tudo movendo a cabeça com ar pensativo. Leif escutou atentamente, interpondo uma ou outra palavra de vez em quando.

Fiquei sentado numa banqueta próxima, a cabeça num redemoinho de confusão e perguntas parcialmente formuladas. Minha garganta doía. Meu corpo estava exausto e cheio de amarga adrenalina. No meio daquilo tudo, bem no meio do meu peito, parte de mim ardia de raiva, como o carvão abanado de uma fornalha, vermelho e quente.

No caminho de volta sentia um enorme torpor, como se eu estivesse lacrado num vaso de cera com 25 centímetros de espessura. Não havia Vanitas, apenas a confusão, a raiva e o torpor que o envolviam. Eu parecia um pardal na tempestade, incapaz de encontrar um galho seguro ao qual me agarrar. Incapaz de controlar o movimento desnorteado de meu voo.

Alastor estava chegando ao fim da explicação quando Elohkar entrou na sala sem bater nem se anunciar. Alastor calou-se. Dei uma olhadela de relance para o Nomeador-Mor e tornei a contemplar o alaúde destroçado em minhas mãos. Ao girá-lo, uma de suas lascas finas cortou meu dedo. Inerte, observei o sangue brotar e pingar no chão.

Elohkar aproximou-se e parou bem em frente a mim, sem se dar ao trabalho de falar com mais ninguém.

— Vanitas?

— Ele não está bem, mestre — disse Leif, com a voz estrídula de preocupação. — Ficou todo entorpecido. Não fala nada.

Embora eu ouvisse as palavras, soubesse que elas tinham um significado, soubesse até os significados que lhes eram pertinentes, não conseguia extrair delas o menor sentido.

— Acho que ele bateu com a cabeça — disse Alastor. — Ele olha para a gente, mas não há nada dentro. É como se fossem os olhos de um cachorro.

— Vanitas? — repetiu Elohkar. Quando não reagi nem levantei os olhos do alaúde, ele estendeu a mão e levantou delicadamente o meu queixo até meus olhos encontrarem os seus. — Vanitas.

Pisquei.

Ele me fitou. Seus olhos escuros me equilibraram um pouco. Acalmaram a tempestade dentro de mim.

Aersedlev — falou. — Diga-o.

— O quê? — indagou Leif em algum lugar, num pano de fundo distante. — Vento?

Aersedlev — repetiu Elohkar pacientemente, os olhos escuros fixados em meu rosto.

Aersedlev — enunciei, apático.

Elohkar fechou os olhos por um instante, serenamente, como se tentasse captar uma vaga linha melódica bailando com suavidade na brisa. Sem poder ver seus olhos, comecei a divagar. Baixei de novo os meus para o alaúde quebrado nas mãos, mas, antes que meu olhar vagasse para muito longe, ele tornou a segurar meu queixo e inclinou meu rosto para cima.

Seus olhos captaram os meus. O torpor diminuiu, mas a tempestade continuou a rodopiar em minha cabeça. Então os olhos de Elohkar se modificaram. Ele parou de dirigir o olhar para mim, dirigindo-o para dentro de mim.

É só assim que sei descrevê-lo. Olhou para meu âmago, não para meus olhos, mas através de meus olhos. Seu olhar penetrou-me e se instalou solidamente em meu peito, como se suas duas mãos estivessem dentro de mim, apalpando a forma de meus pulmões, o movimento de meu coração, o ardor da minha ira, o padrão da tempestade que trovejava em meu íntimo.

Inclinou-se para a frente e seus lábios roçaram minha orelha. Senti seu hálito. Ele falou... e a tempestade acalmou-se.

Encontrei um lugar em que pousar.

Há uma brincadeira que as crianças experimentam fazer de vez em quando. A gente abre os braços e vai girando sem parar, vendo o mundo se transformar num borrão. Primeiro fica desorientada, mas, se continuar girando por tempo suficiente, o mundo se dissolve e a gente para de se sentir tonta, girando com o mundo transformado num borrão ao redor. Depois a pessoa para e o mundo gira, retomando aos poucos sua forma regular. A tonteira atinge o sujeito feito um relâmpago e tudo cambaleia e se move. O mundo se inclina ao redor dele.

Foi o que aconteceu quando Elohkar acalmou a tempestade na minha cabeça. De repente, com uma tonteira violenta, gritei e levantei as mãos, para não cair para o lado, para o alto, para dentro. Senti um par de braços me segurar quando meus pés se enroscaram no banco e comecei a despencar no chão.

Foi apavorante, mas passou.

Quando me recuperei, Elohkar tinha desaparecido.

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Leif e Alastor me levaram para meu quarto na Grilo, onde caí na cama e passei 18 horas atrás das portas do sono. Ao acordar no dia seguinte, senti-me surpreendentemente bem, considerando-se que havia dormido de roupa e minha bexiga se distendera até ficar do tamanho de um melão. 

A sorte me sorriu, dando-me tempo suficiente para uma refeição e um banho antes que um dos meninos de recados do Jamis me encontrasse. Precisavam de mim na Sala dos Professores. Eu iria para o Chifre dentro de meia hora.

Drazno e eu nos postamos diante da mesa dos professores. Ele me havia acusado de violação das normas. Em retaliação, acusei-o de furto, destruição de propriedade e Conduta Imprópria para um Membro do Arcano.

Depois de minha experiência anterior no Chifre, eu me havia familiarizado com o Rerun Codex, o regimento oficial da Academia. Lera-o duas vezes para ter certeza de como se faziam as coisas por lá. Eu o conhecia como a palma da mão.

Infelizmente, isso significava que sabia com exatidão o quanto estava encrencado. A acusação de violação das normas era grave. Se eles me julgassem culpado de ferir Drazno intencionalmente, eu seria açoitado e expulso da Academia.

Não havia dúvida de que eu o tinha ferido. Ele estava machucado e capengando. Um espalhafatoso arranhão vermelho coloria sua testa. Ele também usava uma tipoia, embora eu tivesse uma boa dose de certeza de que isso era um mero toque dramático que havia acrescentado por conta própria.

O problema é que eu não fazia a mínima ideia do que de fato havia acontecido. Não tivera oportunidade de falar com ninguém. Nem mesmo de agradecer a Elohkar por ter me ajudado na véspera, na oficina do Kelvin.

Os professores permitiram que cada um de nós usasse a palavra. Drazno portou-se com o melhor de seus modos, o que significa que foi muito educado nas poucas vezes em que se manifestou. Após algum tempo comecei a desconfiar que sua morosidade talvez viesse de uma dose excessivamente liberal de analgésico. Pela expressão vidrada de seus olhos, meu palpite era o láudano.

— Lidaremos com as queixas por ordem de gravidade — disse o Reitor, depois que cada um relatou sua versão da história.

Mestre Hilme fez um gesto e o Reitor o autorizou a falar.

— Devemos reduzir as queixas antes de votarmos — disse Hilme. — As queixas do A'lun Vanitas são redundantes. Não se pode acusar um estudante de furto e de destruição da mesma propriedade; é uma coisa ou a outra.

— Por que o senhor diz isso, Mestre? — indaguei polidamente.

— O furto implica a posse de propriedade alheia — respondeu Hilme tranquilamente. — Como é possível possuir uma coisa que se destruiu? Uma das duas acusações deve ser abandonada.

O Reitor olhou para mim.

— A'lun Vanitas, deseja renunciar a uma de suas queixas?

— Não, senhor.

— Nesse caso, proponho uma votação para que se deixe de lado a acusação de furto — disse Hilme.

O Reitor lançou-lhe um olhar furioso, repreendendo-o em silêncio por ter falado fora da sua vez, e tornou a se virar para mim.

— A teimosia diante da razão não é propriamente louvável, A'lun, e Mestre Hilme expôs um argumento convincente.

— Mestre Hilme expôs um argumento falho — respondi em tom firme. — O furto implica a retirada de propriedade alheia. É ridículo afirmar que não se possa destruir aquilo que se furtou.

Vi alguns professores balançarem afirmativamente a cabeça ao ouvir isso, mas Hilme persistiu:

— Mestre Loran, qual é o castigo pelo furto?

— O estudante não pode receber mais de duas chicotadas nas costas — recitou Loran. — E deve devolver a propriedade ou o preço da propriedade acrescido de uma multa de um crimo de prata.

— E a punição por destruição de propriedade?

— O estudante deve pagar a reposição ou o conserto da propriedade.

— Estão vendo? — indagou Hilme. — Existiria a possibilidade de ele ter que pagar duas vezes pelo mesmo alaúde. Não há justiça nisso. Seria puni-lo duas vezes pela mesma coisa.

— Não, Mestre Hilme — interpus. — Seria puni-lo pelo furto e pela destruição da propriedade.

O Reitor lançou-me o mesmo olhar que Hilme havia recebido por falar fora da sua vez, mas segui em frente:

— Se eu lhe houvesse emprestado meu alaúde e ele o tivesse quebrado, isso seria uma coisa. Se ele o tivesse furtado e deixado intacto, seria outra. Não se trata de uma nem de outra. São as duas.

O Reitor bateu com os nós dos dedos na mesa para nos silenciar.

— Então entendo que você se recusa a abrir mão de uma das acusações?

— Sim, senhor.

Hilme levantou a mão e obteve a palavra:

— Proponho que se vote a exclusão da acusação de furto.

— Todos a favor? — disse o Reitor, cansado. Hilme levantou a mão, assim como Brandon, Mondrag e Loran. — Cinco e meio contra quatro: a acusação permanece.

O Reitor seguiu em frente antes que alguém pudesse retardar o processo:

— Quem considera o Relar Drazno culpado de destruição de propriedade?

Todos levantaram as mãos, exceto Hilme e Brandon. O Reitor olhou para mim.

— Quanto você pagou por seu alaúde?

— Nove crimos e seis — menti, sabendo tratar-se de um preço razoável.

Drazno levantou-se diante de tal afirmação.

— Ora, vamos. Você nunca teve 10 crimos na vida.

Irritado com a interrupção, o Reitor bateu com os nós dos dedos na mesa. Mas Brandon ergueu a mão para pedir a palavra:

— O A'scor Drazno está levantando uma questão interessante. Como é que um estudante que chegou a nós na miséria obtém esse dinheiro?

Alguns professores me olharam com ar especulativo. Baixei a cabeça, como se estivesse embaraçado:

— Eu o ganhei jogando quatro-cantos, senhores.

Houve um murmúrio divertido. Elohkar soltou uma risada alta. O Reitor bateu na mesa.

— O A'scor Drazno deve ser multado em nove crimos e seis. Algum dos professores objeta a esta medida?

Hilme levantou a mão e foi derrotado nos votos.

— Quanto à acusação de furto. Número de chicotadas pretendidas?

— Nenhuma — disse eu, fazendo algumas sobrancelhas se erguerem.

— Quem considera o A'scor Drazno culpado de furto? — perguntou o Reitor. Hilme, Brandon e Loran mantiveram as mãos abaixadas. — O A'scor Drazno deverá ser multado em 10 crimos e seis. Algum professor objeta a esta medida?

Dessa vez Hilme manteve a mão abaixada, com ar taciturno.

O Reitor respirou fundo e soltou depressa o ar.

— Mestre Arquivista, qual é a punição por Conduta Imprópria para um Membro do Arcano?

— O estudante pode ser multado, açoitado, suspenso do Arcano ou expulso da Academia, dependendo da gravidade da acusação — respondeu Loran calmamente.

— Punição pretendida?

— Suspensão do Arcano — respondi, como se fosse a coisa mais sensata do mundo.

Drazno perdeu a compostura.

— O quê? — disse, incrédulo, virando-se para mim.

Hilme interveio:

— Azir, isso está ficando ridículo.

O Reitor me fitou com um toque de censura.

— Receio ter que concordar com A'scor Hilme, A'lun Vanitas. Estou longe de crer que isso constitua motivo para uma suspensão.

— Eu discordo — retruquei, tentando fazer valer toda a minha capacidade de persuasão. — Pense no que o senhor ouviu. Sem qualquer outra razão senão sua antipatia pessoal por mim, Drazno optou por fazer chacota de mim publicamente, e depois furtar e destruir a única coisa de valor que eu possuía. É esse o tipo de comportamento que um membro do Arcano deve exibir? — prossegui. — É essa a atitude que os senhores desejam cultivar nos demais estudantes na categoria de A'scor? Acaso a implicância mesquinha e o rancor são características que os senhores aprovem nos alunos que querem tornar-se arcanistas? Faz duzentos anos que não vemos um arcanista ser levado à fogueira. Se os senhores quiserem conceder guílderes a jovens mesquinhos como esse — e apontei para Drazno —, essa paz e segurança de longa data estarão terminadas num escasso punhado de anos.

Isso os fez mudar de opinião. Pude percebê-lo em suas faces. Drazno remexeu-se a meu lado, nervoso, correndo os olhos de um rosto para outro. Passado um momento de silêncio, o Reitor convocou a votação:

— Quem é a favor da suspensão do A'scor Drazno?

Subiu a mão de Armin, seguida pelas de Loran, Elohkar, Lal Mirch... Houve um momento tenso. Olhei de Kelvin para o Reitor, na esperança de ver a mão de um deles juntar-se às demais.

O momento passou.

— Punição rejeitada — disse o Reitor. Drazno soltou um suspiro. Fiquei apenas ligeiramente decepcionado. Na verdade, estava bastante surpreso por ter conseguido levar aquilo tão longe.

— Agora — prosseguiu o Reitor, como que se preparando para um enorme esforço —, a acusação de violação das normas contra o A'lun Vanitas.

— Quatro a quinze chicotadas e expulsão obrigatória da Academia — recitou Loran.

— Chicotadas pretendidas?

Drazno virou-se para me olhar. Vi as engrenagens de seu pensamento girando, na tentativa de calcular quão pesado era o preço que poderia me fazer pagar e, ainda assim, contar com a votação dos professores a seu favor.

— Seis.

Senti um medo pesado como chumbo instalar-se na boca do estômago. Eu não dava a mínima para as chicotadas. Aceitaria 12, se isso me impedisse de ser expulso. Se eu fosse banido da Academia, minha vida estaria acabada.

— Senhor Reitor? — chamei-o.

Ele me dirigiu um olhar cansado e bondoso. Seus olhos me disseram que ele compreendia, mas não tinha alternativa senão conduzir o processo a seu fim natural. A piedade meiga de sua expressão me assustou. Ele sabia o que ia acontecer.

— Pois não, A'lun Vanitas?

— Posso dizer algumas coisas?

— Você já teve sua oportunidade de defesa — ele respondeu, em tom firme.

— Mas nem sequer sei o que fiz! — explodi, deixando o pânico suplantar minha compostura.

— Seis chicotadas e expulsão — prosseguiu o Reitor num tom oficial, ignorando minha explosão. — Todos a favor?

Hilme levantou a mão.

Brandon e Armin o seguiram.

Senti uma desolação profunda ao ver o Reitor erguer a mão, depois Loran, e Kelvin, e Mondrag, e Lal Mirch.

O último de todos foi Elohkar, que deu um sorriso indolente e balançou os dedos da mão erguida, como se acenasse.

Todas as nove mãos contra mim.

Eu seria expulso da Academia.

Minha vida estava acabada.